Sobre Philip Guston

serrote #2, julho 2009

Sobre Philip Guston

PAULO PASTA

 

A pintura é impura. É o ajustamento de “impurezas” que força a continuidade da pintura. PHILIP GUSTON

 

É conhecida a história do impacto que Braque sofreu ao ver pela primeira vez a célebre tela de Picasso Les Demoiselles d’Avignon. Teria então dito: “É como se devêssemos trocar nossa dieta usual por uma de estopa e parafina”. Essa imagem surpreen­dente respondia bem à vocação provocadora da tela. Com essa metáfora, Braque assinalava a ocorrência de uma inversão de monta: por meio da internalização da materialidade na figura, o jovem cubismo transformava em uma quase virtualidade a tradicional materialidade da pintura, isto é, a conhecida pre­sença imediata dos materiais da criação plástica no ateliê do artista. Aquela nova materialidade da pintura pedia que esses materiais não fossem mais apenas manipulados ou contempla­dos, e sim engolidos. A coisa toda, desse modo, é nova e forte, mas também tóxica, parece dizer ainda a imagem de Braque.

Quando vi pela primeira vez as pinturas de Philip Guston (1913-1980), não conhecia ainda a frase de Braque. Porém, depois de conhecê-la, nunca mais deixei de relacioná-las. A última fase de Guston, quando ele retoma a figuração após anos de abstracionismo, é de algum modo uma reali­zação completa e, por que não, uma normatização daquela ingestão tóxica de que falava Braque.

As suas figuras, entre divertidas e bizarras, encerradas em uma claustrofobia de almanaque, as imagens construídas e simplificadas pelo pincel, feitas de tinta dúbia e, por isso, nos assombrando também com o enigma dos materiais que a construíram, parecem querer, na sua fatura oleosa e aderente, reconduzir nosso olhar para uma densidade incômoda, como se, antes mesmo de realizarmos a percepção da representação ali posta, a tinta já causasse náusea e a pintura fizesse mal.

Talvez o acontecimento mais inesperado para o observa­dor da carreira de Guston tenha sido a referida passagem da abstração (algo já normalizado em seu tempo) a um novo e surpreendente figurativismo. São conhecidas as explicações que deu para essa mudança. “Estava cansado de toda aquela pureza”, disse, referindo-se ao expressionismo abstrato. Ou ainda: “Estava subindo a montanha da abstração e percebi que tinha deixado algo para trás, por isso precisei descer”. Em ambas as frases, o que chama atenção talvez seja justa­mente a percepção de que o seu trabalho precisaria baixar mais ao chão, mais ao nível da rua, para poder estar, assim, mais próximo de si mesmo e de seus recursos criativos.

As duas frases trazem metáforas fortes a propósito do abs­tracionismo: este seria algo como uma montanha escarpada, pura, de ar rarefeito. Uma pergunta fica implícita: a figuração seria então, em contrapartida, algo impuro ou ordinário? Ou, ao menos para Guston, a figuração absorveria melhor essas características? Philip Roth, seu amigo, relata em Entre nós1 que ambos compartilhavam o gosto pelo que o pintor deno­minava crapola, neologismo derivado da palavra inglesa crap, algo como “porcaria” e que

Incluía outdoors, garagens, lanchonetes, lojas de antiguidades e oficinas de lanternagem, coisas que havia à beira da estrada e que às vezes íamos de carro até Kingston só para curtir – e que se estendia da fala direta e pedestre dos habitantes dos montes Catskill aos pronunciamentos insinceros e untuosos do presi­dente da república, sempre a suar abundantemente.

O escritor prossegue, dizendo também que, com isso e a exemplo dos sonhos de terror de Beckett e Kafka, o pintor descobriu “o terror que emana dos utensílios mais comuns do mundo da completa estupidez”. Talvez isso impressione ainda mais pelo fato de Guston representar essa “paisagem americana de terror” com um leve sorriso, nascido, quem sabe, da sua recusa à autocomiseração.

No entanto, a mencionada mudança no rumo de seu tra­balho não foi resultado de uma vontade arbitrária. Como para todo grande criador, importou muito o desejo de se autoconectar, como gosta de lembrar Sean Scully.2 Não lhe interessava naquele momento a sua reputação firmada de pintor abstrato. A maioria de seus amigos criticou a nova experiência. Ele mesmo dizia fazer um esforço muito grande para conviver com as novas pinturas. Sua filha, Musa Mayer, no livro de memórias Night Studio [Estúdio noturno], conta o episódio de uma visita ao ateliê, quando, depois de um silêncio constrangedor do visitante diante das telas, Guston dissera: “Sabe, as pessoas reclamam que é horrível. Como se fosse divertido para mim –— para mim, que sou obrigado a vir aqui todo dia e olhar para elas assim que entro. Mas qual é a alternativa? Estou tentando ver até onde consigo suportar.”

Se existisse alguma dúvida sobre a realidade das motiva­ções e do sofrimento que levou Guston a esse novo lugar no seu trabalho, essa frase bastaria para dissipá-la.

Penso que o tempo veio trazer maior entendimento para essas pinturas. Aliás, não faz tantos anos assim. Ele começou a criá-las em 1967 e prosseguiu até a morte, em 1980. Hoje, mais distanciados dos pressupostos do expressionismo abstrato, podemos compreendê-las melhor também pelo fato de nasce­rem de uma operação que parece inverter o que comumente entendemos ser a aspiração de um artista: Guston não quer subir, ele prefere descer. Ele não quer se tornar mais puro, mas se sujar.

Seria igualmente importante lembrarmos que, nos anos 1960, nos Estados Unidos, sobretudo em Nova York, a força do surgimento da pop art deixou a geração anterior com a sensação de estar sendo ultrapassada, deixada para trás. Isso provocou, além de ressentimentos, uma autocrítica em muitos daqueles artistas. Seria difícil dizer se a crise de Guston teve sua origem aí, como se ele precisasse res­ponder ao pop. O que sobrevive de maneira notável desse conflito é o exemplo de seu compromisso de artista, arris­cando reputação firmada, amigos, habilidades adquiridas, em nome da renovação do seu trabalho.

Não precisaríamos de muito esforço para perceber que a pop art também realizou uma transformação radical das relações entre os mundos da alta e da baixa cultura. Ela quis, como recurso crítico, unir-se ao vulgar, ao anó­dino das ruas, às linguagens pasteurizadas da publicidade, da TV e das his­tórias em quadrinhos, ou seja, àquilo que Guston chamava de crapola. Acre­dito que as forças que moveram os artistas nessa direção eram, em parte, parecidas com as que motivaram a mudança no trabalho de Philip Guston. Mas imagino que a diferença estaria no fato de que, para Guston, a própria “escola” pop, e não só o que ela escolhia como tema, era também crapola. Salvo engano, muitas das características marcadamente pessoais da pintura de Guston vieram dessa percepção.

O seu trabalho possui um travo que o faz muito diferente da assepsia pop. É igualmente mais lento, mais rumoroso. Parece querer repor em quali­dade pictórica o horror da vacuidade de um mundo destituído de qualquer essência. A sua fatura de pintor hábil, o seu arsenal técnico, Guston os trans­formava em linguagem e, assim, pintava o novo e abominável mundo como se fosse o primeiro pintor, uma espécie de primitivo de si mesmo. Ele é, assim, assumidamente direto e artesanal, distanciando sua técnica daquela da maioria dos artistas da pop art, que procuravam mimetizar as técnicas e imagens usadas pela indústria.

Talvez venha desse mesmo procedimento uma sugestão de distancia­mento, de descompasso entre as coisas que ele representa e o modo como ele as representa. Resultaria também dessa espécie de fissura grande parte de sua poesia e de uma certa atmosfera “literária” que perpassa muitos dos seus trabalhos. Eles nunca são violentos. São desoladores. Suas figuras muitas vezes parecem estar no limiar daquilo que as mantém ainda civi­lizadas. Sofrem dor, se viciam. E há muito, aí, de autorreferência, já que o espaço do ateliê, as tintas, os utensílios do pintor – às vezes o próprio pintor – surgem como temas.

Uma das preferências de Guston, leitor contumaz e até erudito, eram, entretanto, as histórias em quadrinhos, talvez uma de suas crapolas mais queridas. E, entre elas, apreciava especialmente as de Robert Crumb e as histórias de Mutt e Jeff. Estas possuem uma afinidade assumida com a elaboração de seu novo figurativismo. Vale a pergunta: por que será que Guston escolheu essa linguagem para auxiliá-lo na realização da sua nova empreitada? Acho que, além do gosto pelo desenho mesmo, ou seja, pelo que tem de simplificação gráfica, há também algo como a constatação do lugar difícil que teria a expressão de uma possível metafísica nesse mundo ordinário. Guston realiza, então, uma operação engenhosa: não sai desse mundo, mas usa-o como matéria de reflexão. Filtra o vazio, o desespero, o sem-sentido das coisas na representação caricatural e cínica que os comics fazem delas.

Existiria também, nessa operação, algo semelhante à já mencionada inversão que ele realiza com a técnica de pin­tura. O pintor experiente e informado caricaturiza do mesmo modo a si próprio, como se fosse ele mais uma das suas figu­ras fantasiadas. Encena, assim, a tragédia da vida, que pode ser igualmente a sua, usando um repertório de banca de jor­nal, carregado de autoironia. Não deixa, por isso, de ter um tom épico. Mas agora a consciência dessa grandeza difícil teria que nascer ao rés do chão, não mais das alturas de uma montanha. Mais uma vez, não estaríamos longe de Beckett, de Kafka e de toda a tradição de negatividade que atravessa grande parte de nossa contemporaneidade.

Ele se reinventou e, assim, mesmo expressando este mundo ordinário de mercadorias, mantém nos seus trabalhos uma alegria e um frescor que provêm dos momentos de descoberta e invenção – pois, mesmo que não soubesse o que fazia (ou qual era a verdadeira vocação daquelas experiências), é inegá­vel que se deixou conduzir por uma sensação de liberdade.

Em uma crítica de 1956, no período das pesquisas abs­tratas de Guston – ainda distante de sua reinvenção como pintor figurativo –, Leo Steinberg escreveu (e mais tarde recolheu em Outros critérios3):

As abstrações de Guston são exposições de carne entremeadas de nervos. É como se o vazio do corpo humano – marcado e man­chado pelo pecado e pela fome, pela dor e pela nicotina, aplanado como um cilindro desenrolado – tivesse sido dependurado no céu. Recordemos aquelas linhas de Eliot, tão perturbadoras em seu salto que desafia o cérebro: “Sigamos então, tu e eu,/ Enquanto o poente no céu se estende/ Como um paciente anestesiado sobre a mesa”. A nova imagem de Guston é esse recôndito.

Confesso que, ao ler essa passagem, precisei voltar à data do artigo para me certificar de que o autor não se referia aos últimos trabalhos de Guston, e sim aos do período abstrato anterior. Admira o alcance premonitório do crítico que antecipa a ambiência daquelas últimas pinturas. Pode-se inclusive imaginar que essa sugestão se teria gravado no próprio Guston, desde então.

Nesse mesmo estudo, Steinberg talvez nos dê a chave para compreender a coerência do pintor em diferentes fases. Ao fazer uma rápida leitura de toda a carreira do artista até a época da publicação do artigo, ele analisa os seus primeiros trabalhos, figu­rativos também, nos quais existia, além de uma metafísica inicial, um sim­bolismo misturado com a assimilação do cubismo e do muralismo mexicano. Vários dos temas pertenciam à esfera da infância: brincadeiras de rua, bata­lhas encenadas por garotos. Mas o tratamento era diferente. Sua fatura ainda não tinha adquirido a forma desenvolta e expressiva que iria ganhar depois. Respirava-se neles um ar de muita melancolia. Depois de analisar como, for­malmente, sua pintura se modifica, ganhando mais agilidade, até cruzar o limiar da abstração “por uma compulsão pessoal”, o crítico acrescenta: “Aí chegara a pé, percorrendo passo a passo cada mínimo trecho do trajeto”.

É conhecida a forma obsessiva como Guston construía seus trabalhos. Para que uma cor, uma forma, adquirisse o direito de estar onde finalmente viria a permanecer, ela também teria que ter percorrido passo a passo cada mínimo trecho da tela. Esse procedimento talvez encontre seu análogo na maneira de Guston direcionar suas pesquisas. Ele parece descobrir que, para o trabalho manter-se conectado a si, era preciso transformá-lo sempre, habitando brevemente os lugares conquistados. Olhando em perspectiva o conjunto de sua obra, fica patente que, nessa jornada, não existia um “algo” a ser encontrado – talvez apenas a constatação de que, se existisse algum tipo de “essência” a ser descoberta, ela consistiria na própria busca. Algo como uma aproximação entre ansiedade e espírito. E, se é assim, se não há nada a encontrar, do mesmo modo ganhar ou perder passariam a ter valo­res iguais. Penso que é dessa permuta –— uma tábua de valores idênticos para os contrários – que seus trabalhos retiram grande parte da sua força. Pode ser que, por isso, também eles tenham tido de testemunhar cada centíme­tro de seus próprios deslocamentos e transformações. Sem tal consciência, essa operação estaria destinada ao puro fracasso.

Não são de descartar, para a atitude de Guston em relação ao trabalho, substantivos como integridade e lucidez. De pureza, também, se poderia falar: uma certa pureza de propósitos, por exemplo. Mas fica difícil usar sem mais tal vocábulo no caso desse pintor que tanto lutou com seu significado ambivalente. A pureza, nele, talvez seja mesmo um ajustamento de impure­zas –— o trabalho de se arranjar com uma lauta refeição de estopa e parafina.

 

Um dos mais importantes pintores brasileiros contemporâneos, PAULO PASTA fez, nos últimos anos, duas grandes individuais: uma na Pinacoteca do Estado de São Paulo (2006), com curado­ria de Tadeu Chiarelli, e outra no Centro Cultural Banco do Brasil (2008), no Rio de Janeiro, com curadoria de Ronaldo Brito. Dois livros foram dedicados à sua obra: Paulo Pasta (coleção Artistas da EDUSP, 1998) e Paulo Pasta (organização de Tadeu Chiarelli, Cosac Naify/Pinacoteca do Estado, 2006). Fez mestrado na ECA-USP, em 2002. Nascido em Ariranha (SP) em 1959, vive na capital paulista. Sobre ele, Ronaldo Brito escreveu: “Em meio a tanto lixo, tanta banalidade e venalidade, nada mais saudável do que a visão de coisas puras, isto é, coisas que se empenham ao máximo em ser exatamente o que são”.

 

1. Lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2008. [N. do E.]

2. Sean Scully, “O momento que dura para sempre”, in Arte & ensaio, n. 12, 2005.

3. Lançando no Brasil pela Cosac Naify, em 2008. [N. do E.]

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