Virando o jogo

Quer dizer, o ladrão tomou uma decisão. Ou vocês tomaram uma decisão. Vai depender muito de quem é o jogador e de como ele jogou. Nesse momento, nesse final depois do final, a grande artimanha de Prince of Persia vem à tona. Você olha para o deserto ao redor do templo e vê quatro árvores luminosas no alto de quatro pilares de pedra. A informação é muito clara. Se você cortar essas quatro árvores e depois cortar a Árvore da Vida no interior do templo, Elika será ressuscitada e Ahriman libertado, numa repetição exata dos aconteci­mentos que foram o estopim do jogo. Não se trata, porém, de uma decisão do jogador. É uma decisão do ladrão. Ele se apaixonou por Elika, e o jogo expressa claramente qual é a intenção dele.

Talvez essa não seja a sua intenção. Pode ser que você não esteja nem aí para Elika. Pode ser que não tenha se interessado por ela, que a personagem signifi­que apenas um recurso para auxiliar nos combates e salvar sua vida na execução das tarefas propostas pelo jogo. Mais provável: pode ser que você, como tantos jogadores, tenha de fato se apegado ou se apaixonado por ela, mas entenda que morrer para salvar o reino era a vontade sincera da princesa e que ressuscitá-la seria obsceno, significaria condená-la a uma nova vida de culpa e amargura e repetir um desastre que ela acaba de reverter com seu martírio.

A questão gerou reações opostas e extremas, rachando ao meio a comuni­dade de jogadores que comentou o final em sites, blogs e fóruns na internet. Houve quem defendesse que o programa deveria ter dado ao jogador a opção de ressuscitar ou não Elika. Mas não existe essa opção. Se você não concorda com a decisão do ladrão, com a decisão do programa, com o resultado deter­minado pelo algoritmo, só tem uma alternativa: ejetar o disco antes de concluir o jogo, guardá-lo na caixa e desligar o videogame. Uma pesquisa on-line rápida revelará que foi exatamente isso que muita gente fez.

Não é qualquer jogo que leva uma pessoa a desligar o console para não ser forçada a ver a história seguir um rumo com o qual não concorda. Mas, se existe alguma verdade no argumento de que o algoritmo antecede o enredo em ter­mos de importância narrativa nos jogos eletrônicos, a explicação para reações tão exacerbadas não pode estar só no respeito aos desejos de Elika. Na verdade, o que enfureceu muitos jogadores foi o fato de que Prince of Persia nos obriga a jogar fora tudo o que fizemos até então no nível procedimental. Você passou mais de uma dezena de horas interpretando as regras do jogo, entendendo como deveria proceder para vencê-lo, aprimorando suas habilidades com os coman­dos e ações para propulsionar a história e restaurar os malditos terrenos férteis, como martelaram na sua cabeça que você tinha que fazer – e você conseguiu, venceu o jogo, terminou, executou o algoritmo e chegou ao resultado proposto.

E então o programa lhe diz que não, sinto muito, o mocinho se apaixonou pela mocinha, portanto ressuscite-a e desfaça tudo. Desculpa aí, nada pessoal.20

Porque no fundo, caro jogador, você jamais decide nada. Mesmo quando tem a impressão de que pode decidir, tudo foi previsto e programado por alguém envolvido no desenvolvi­mento do jogo, em algum momento. Prince of Persia joga na cara de quem o jogou até o fim essa verdade nada romântica: a liberdade para intervir no jogo é ilusória. Você só executa uma coisa que já foi escrita.

Entretanto, para muitos outros jogadores, a decisão do ladrão parecerá correta. Elika não parece estar morrendo por nada que valha muito a pena. Pois se você reparar bem, esse mundo abandonado, a despeito da beleza natural e da arquitetura imponente, é estéril e triste. É visível que as pes­soas foram embora dele há muito tempo. E dane-se, o ladrão está apaixonado por ela, e você, de certa forma, também. Perdê-la não é uma opção. A essa altura, o pragmatismo do ladrão parece ser o antídoto perfeito para o idealismo tei­moso da princesa. Ahriman que faça bom proveito dessa terra amaldiçoada. E tanto melhor que o jogo nos obrigue a tomar essa atitude, pois na vida também é assim: as escolhas foram feitas há muito tempo, nós é que demoramos para entender o que escolhemos desde o início, ou o que escolheram por nós. Você não sentiu, nos primeiros minutos de jogo, que faria qualquer coisa para salvar a vida dessa garota?

Então saca a espada, desce as escadarias do templo e corre em direção ao pilar mais próximo. Mais uma vez, há casa­mento perfeito de agência e enredo quando você salta de um degrau em direção ao topo do pilar onde está a árvore lumi­nosa, pressiona, sem pensar, o botão que faz Elika arremes­sá-lo nos saltos mais longos e – ops, ela não está mais ali. Ela morreu. Você se esborracha no chão e sente de forma con­creta a perda da companheira. O acesso a cada uma das qua­tro árvores externas é arquitetado cuidadosamente para que o jogador experimente na pele a ausência de Elika em ações que só poderia levar a cabo com o auxílio dela. Agora você quer mais do que nunca trazê-la de volta à vida.

Depois de cortar as quatro árvores, você entra de novo no templo e corta a Árvore da Vida. Surge uma única esfera luminosa, que você carrega em silêncio até o altar. Elika revive como se despertasse de um pesadelo. Sentada sobre a laje de pedra, arfante, com o olhar perdido, ela diz com a voz aflita: “Por quê?”. A resposta é o silêncio do olhar que os dois compartilham. Você tem a impressão de que ela entendeu. Esse tratamento mudo da cena evoca o amadurecimento dos personagens. A verborragia adolescente é calada por uma eloquente circunspecção. Este também é, como tantos jogos, um conto sobre o início da vida adulta. A escuridão já corrompe o cenário ao redor. Ela desfalece de novo, você a toma nos braços e a leva embora. Na última e arrepiante cena, o ladrão está caminhando na sua direção, com Elika no colo, enquanto o templo desmorona ao fundo e a figura monstruosa de Ahriman assoma e voa por cima deles car­regando uma tempestade de areia sombria. Elika fala con­sigo mesma: “O que é um grão de areia no deserto? O que é um grão de areia na tempestade?” Ah, o doce fatalismo que casa tão bem com toda história de amor. Como não se deixar arrebatar por isso? E agora sim, é game over.21

Se no nível do enredo Prince of Persia é uma história de amor, no nível do algoritmo temos a história de um enredo virando o jogo. É um paradoxo que faz dele um jogo como nenhum outro: uma virada da história nega totalmente o valor da narrativa procedimental, mas só depois que o joga­dor cumpriu todas as etapas da narrativa procedimental é que o enredo é capaz de levar o jogo ao clímax dramático. A vitória excepcional do enredo só vem confirmar que a alma do jogo está no algoritmo.

4 respostas para Virando o jogo

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