Virando o jogo

Sim, porque toda a força emocional dessa cena depende do algoritmo. A emoção só pode se instalar porque você esteve imerso em uma narrativa procedimental limitada por um conjunto definido de regras. Tendo interpretado, dominado e aplicado essas regras para perseguir o objetivo de restaurar o reino e aprisionar Ahriman, sua relação com o personagem não jogável de Elika chegou a tal ponto que você pode, pri­meiro, deduzir que o salto para a morte é a única maneira de fazê-la sair da armadilha; e segundo, ser emocionalmente afe­tado pelo que acabou de fazer e pelo resultado desse ato. Se é difícil imaginar a sensação aqui descrita e convencer-se de sua intensidade, é porque a transposição dessa experiência para o texto é impossível. Nessa cena, Prince of Persia dá um exemplo acabado de algo que só é possível num videogame. Uma emo­ção que só pode surgir porque você jogou.

A maioria dos gamers nem se dá conta de que a narra­tiva procedimental é o que realmente os absorve e fascina enquanto dedicam horas a seus jogos favoritos. Isso não quer dizer que os personagens e o enredo sejam desprezíveis – ao contrário, são essenciais para disfarçar o fato de que estamos interpretando e executando um algoritmo. O enredo entra para nos fornecer tudo o que o algoritmo não pode: uma moti­vação, um início e um fim coerentes, um dilema moral, uma chave para asso­ciar a narrativa procedimental a um universo fantasioso ou a um episódio específico do mundo real. Mas o que jogamos é o jogo. O que nos move, em última instância, é o prazer proporcionado pela interpretação desse conjunto específico de regras, pela descoberta das maneiras como podemos interagir com esse mundo fictício, pelo aprendizado e pela habilidade progressivos que nos permitem, dependendo do jogo, fazer nossa parte para conduzir o programa a seu estado final, à conclusão da história, à obtenção de um desempenho distinto, ao recorde de pontos, ao esgotamento das possibili­dades, à exploração de todo o espaço de jogo, ao uso criativo das variáveis. É por isso que tantos enredos de jogos parecem esquemáticos e artificialmente colados ao programa, e é por isso que as transposições de filmes para jogos eletrônicos e vice-versa resultam em péssimos jogos e péssimos filmes. Para Wark: “Enquanto as outras mídias apresentam o mundo como algo a ser olhado, o mecanismo do jogo apresenta o mundo como algo que não deve ser só olhado, mas sobre o que devemos agir de determinada maneira”. O enredo serve ao algoritmo. Não é à toa que, ao consultar alguém a respeito de um novo jogo que ainda não conhecemos, a pergunta mais comum não seja “Sobre o que é o jogo?” ou “Do que trata o jogo?”, e sim “Como é o jogo?” ou “O que você tem que fazer nesse jogo?”.

Por trás de uma leveza aparente, estabelecida sobretudo nas falas enga­nosamente banais do ladrão, o enredo de Prince of Persia é na verdade bas­tante rico, contendo camadas e sutilezas que podem escapar ao jogador desinteressado. Tudo o que Elika desejava era salvar o reino. Ela não pediu para voltar à vida e quer reverter o dano que causou. No fim do jogo, depois de restaurar todos os terrenos férteis, voltamos ao templo e encontramos o rei já totalmente dominado pelas forças corruptoras de Ahriman. “Eu te per­doo”, ela diz ao pai, que sacrificou tudo para ressuscitá-la, e ele, já conver­tido em advogado de Ahriman, responde: “Então, deixe-nos viver. Liberte­-nos. Não há o que temer.” Elika protesta: “Você se apoderou da minha vida. Arruinou todas as coisas pelas quais eu vivia!” A voz do rei se mistura à voz tenebrosa de Ahriman, e os dois seguem tentando convencer a princesa a deixá-los partir, mas Elika ataca o pai, e a luta final tem início. Controlamos o ladrão/Elika na batalha, mas vemos a ação do ponto de vista de Ahriman. Não é a primeira vez que o jogo tentará forçar o jogador a colocar-se no lugar do deus da escuridão, como se procurasse criar uma brecha para uma compai­xão perversa. Em vários momentos, ouvimos a voz de Ahriman sussurrando coisas como “Não te fiz nada que você não tenha feito a mim”. É curioso notar ainda que a divindade do bem, Ormazd, parece frouxa e omissa ao figurar nos episódios da história dos Ahura que são contados por Elika ao longo do jogo. Detalhes desse tipo nos levam a suspeitar que a visão de Elika a respeito de Ahriman possa ser apenas uma entre outras. Visto como um todo, o jogo parece sugerir uma possibilidade que bate de frente com as convicções de Elika: a de que o mal é parte integrante do mundo, e tentar mantê-lo preso pode custar caro demais. Nada disso é colocado de maneira explícita, mas as pistas estão lá, e cada jogador lhes dará a importância que preferir. Para a interpretação do jogo aqui proposta, essas especulações terão um papel importante.

Finalmente, depois de um longo enfrentamento defensivo, Elika entra na bocarra de Ahriman e libera a energia azul que destrói a besta. Atordoado, você levanta e vê a pequena e luminosa Árvore da Vida. “Conseguimos! Elika, nós conseguimos!”, você exclama, exultante, enquanto vê Elika se erguendo ao lado da árvore. Mas seu sorriso se desfaz e dá lugar à inquietação. A voz de Ahriman ressoa no ambiente: “Escolha a vida…”. Outra voz, mais feminina, presumivelmente de Ormazd, sugere o oposto: “Escolha a morte…”. Não deixa de ser irônico, o deus da escuridão incitando a princesa à vida, o deus da luz condenando-a à morte. Mas ela já sabia desde o início o que ia fazer, e de certa forma o ladrão também devia ter intuído, e o jogador – e o leitor deste texto – também.

Elika transfere suas últimas gotas de energia para a Árvore da Vida, apri­siona Ahriman e morre. Você se deu conta do que ia acontecer no último cen­tésimo de segundo antes de poder impedi-la. Agora você a ergue nos braços com delicadeza. Parece o fim, mas, inesperado, o jogo coloca você no controle de novo, só que com movimentos limitados: você só pode caminhar devagar-zinho, carregando o corpo de Elika. Vemos as costas do seu avatar, os cabelos maleáveis e os pés descalços da princesa balançando, inertes. A sequência espelha aquela do início, em que você a carrega logo após descobrir que ela tem poderes mágicos, e o mesmo sentimento de agência que antes significava o começo de uma parceria é associado agora ao término de uma relação vivida. Talvez você pense: “Essa garota estava morta o tempo todo. Ela não poderia viver com o peso de toda aquela destruição. Tão linda, boa e misteriosa.” Você sentirá falta dela. Sua morte podia estar escrita, mas o apego que surgiu entre vocês dois não estava. Você precisa carregar Elika por um corredor que parece interminável enquanto os créditos do jogo rolam na tela como os de um filme. É cruel. Mas fazer o quê? Fim.

Mas então você sai do templo, e o que chama a atenção imediatamente não é a vista do deserto rochoso, e sim o altar de pedra diante do portão. Os créditos do jogo terminaram de rolar, você perde de novo o controle e, numa sequên­cia não interativa, o ladrão posiciona cuidadosamente o corpo de Elika no altar. Então ele tem uma visão: a conversa do rei com Ahriman, a barganha em que a vida da filha foi trocada pela liberdade do demônio. A visão termina, e nos vemos do alto, o cadáver de Elika à nossa frente no altar. A perspectiva corta para uma tomada frontal, o ladrão olhando demoradamente para o rosto de Elika, seus dedos arrumando uma mecha dos cabelos da princesa. Por fim, você bate as mãos na pedra do altar. Você tomou uma decisão.

4 respostas para Virando o jogo

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