Os duplos de Sebald – por Luciano Gatti

Os duplos de Sebald

LUCIANO GATTI

No aniversário de dez anos de sua morte, a rapidez com que W.G. Sebald passou da consagração ao desaparecimento ainda é uma questão difícil de assimilar. Escritor tardio, este acadêmico de profissão estreou na vida literária como um narrador amadurecido e, em menos de uma década, publi­cou os quatro livros que o destacariam entre os romancis­tas contemporâneos. Poucos meses após a publicação de Austerlitz, seu trabalho mais complexo, um infarto ao volante numa estrada inglesa resultou em sua morte prematura. Antes que o público tivesse a chance de habituar-se à sua figura, ele já se afastava como escritor de uma época passada.

Essa rapidez contrasta com uma das marcas de seu tra­balho ficcional. Dificilmente ele inicia uma narrativa com a história a ser contada. Esta só vai aparecer lá adiante, depois de longos preâmbulos dedicados aos percalços do narrador. É comum encontrá-lo num quarto de hotel, na sala de espera de uma estação de trem ou caminhando pelas ruas de uma cidade estrangeira. Esse narrador nunca estáem casa. Duplodo próprio Sebald, com o qual partilha inúmeros traços bio­gráficos, ele também abandonou a Alemanha quando jovem para fixar-se como professor de literatura em uma universi­dade inglesa de periferia. Muitos dos expatriados que con­taram suas histórias a esse duplo descobriram no país de exílio o ponto final de uma viagem. Ele, ao contrário, um personagem em trânsito, jamais extraiu dali um estímulo ao sedentarismo. Seu vínculo profissional é apenas um ponto de conexão entre um número indefinido de deslocamentos.

Os laços afrouxados com o local de residência se justificam por com­promissos de trabalho ou por algum processo terapêutico. Ainda que mereçam uma breve menção, os detalhes que colocam esse narrador em movimento são discretamente evitados. Toda a atenção é dada à elabora­ção da distância de casa como um estado de convalescença. No início de Os anéis de Saturno, o narrador revela como uma viagem pela paisagem desolada do leste da Inglaterra deveria ajudá-lo a superar o enorme vazio sentido após a conclusão de um trabalho desgastante. Poderíamos supor, arriscando aproximar o narrador e Sebald, que se trata de um de seus livros anteriores, mas não temos como saber ao certo. A sensação de pro­fundo desapego em suas caminhadas solitárias tem um efeito revigorante sobre seu estado emocional debilitado, mas não salva este viajante esco­lado de outros contratempos. Assim que retorna, ele mergulha em novo estado melancólico. Seus pensamentos embaralham as belas recordações de mobilidade e o horror das múltiplas associações de destruição desper­tadas pela paisagem percorrida. Em extrema agitação, ele se recolhe num quarto de hospital, onde passa o aniversário de sua partida e decide iniciar o registro da viagem. Um ano após a internação, ao passar o texto a limpo, a estadia no hospital já está incorporada ao relato como parte do engendramento da narrativa.

Antes de cada viagem, de cada relato, antes que ele se encontre no local que posteriormente o transformará em narrador dos próprios pas­sos, Sebald alude a uma experiência infeliz. O tema já havia ocupado seus ensaios sobre literatura austríaca, mas seus romances lhe dão outro teor ao transformá-lo em estágio de formação do narrador. Mais importante que os eventuais detalhes de sua vida pregressa, que, de resto, nem fica­mos sabendo, é a linha, traçada nesses estados de perturbação, entre a experiência pessoal e a postura como narrador viajante. A contemplação tradicionalmente atribuída à melancolia não corre aqui o risco da parali­sia. O melancólico de Sebald tem pernas de atleta. No início de Vertigem: sensações — o primeiro livro —, após a narrativa das desilusões amorosas de Stendhal, posteriormente transformadas em ensaio literário sobre o objeto frustrado (Do amor), e marcando o início de seu relato, o autor confere a essa experiência a função de ensejo narrativo: “…na esperança de superar com a mudança de ares uma fase particularmente difícil de minha vida”.1 Na frase seguinte ele já percorre as ruas de Viena, distante dos dias rotineiros, mas aparentemente não mais feliz do queem casa. Os dias longos, ainda vazios, começam então a ser preenchidos com a peregrinação narrativa por esse e outros destinos, pela sua própria história na história de outros.

Ainda em Vertigem, o espelhamento de duas narrativas explicita algo importante a respeito da formação desse nar­rador. Na forma de ensaio histórico-biográfico, uma delas relata uma viagem empreendida por Kafka a cidadezinhas do norte da Itália. Em outra, encontramos o duplo de Sebald retomando os passos de Kafka — e também dessa tradição da viagem à Itália. Rastreando os vestígios da trajetória do Dr. K., Sebald se apresenta nas pegadas de um estrangeiro solitário. Ele não constrói cenas nem diálogos com outros personagens pelo caminho. Quando estes se fazem presentes por alguma necessidade prática, recebem o tratamento do discurso indi­reto livre. O cerne do relato é tecido pelas associações entre os dados da observação e as evocações de personagens e acon­tecimentos passados. Ele passeia por obras de arte, cidades, bares, hotéis e bibliotecas como um detetive no encalço de outras épocas. Como a escrita toma a seu serviço a memória topográfica do narrador, ela assimila não só os passos do dr. K, mas também uma viagem anterior do narrador, empreendida com a mesma finalidade, mas interrompida abruptamente por uma necessidade inexplicável de partir.

Ainda na Itália, um episódio em torno da perda acidental de seu passaporte chama a atenção pela artimanha da com­posição. Valendo-se do recurso a diversos personagens e da observação acentuada das situações, o relato é coroado por reproduções de um documento de livre trânsito emitido pela polícia local e do novo passaporte solicitado ao consulado ale­mãoem Milão. Notamoslogo que os papéis trazem o nome e a foto do próprio Sebald. A interposição de fotografias ao texto é uma de suas peculiaridades narrativas. Mas nem sempre o caráter documental do registro fotográfico, como reprodu­ções de documentos, endereços ou mesmo bilhetes e contas de restaurantes, é indicador de uma correspondência real. Muitas vezes são pistas falsas. Ao acentuar o contraste entre a reprodução imediata da realidade e os recursos narrativos, o episódio do passaporte explicita a relação entre ficção e reali­dade proposta pela prosa de Sebald: o documento é um regis­tro fidedigno que só encontra lugar no texto por meio de um arranjo altamente elaborado de artifícios literários. Conexões semelhantes aproximam o narrador da viagem do Dr. K. A fic­cionalização da pesquisa, da escrita e até do autor é parte inte­grante do ensaio histórico-biográfico. Ao fazer que o objeto histórico surja no bojo de um processo ficcionalizado, Sebald não pretende diluir as fronteiras entre o real e o ficcional, mas tensionar os vínculos subterrâneos do narrador com seu material narrativo. A cumplicidade entre o narrador de Sebald e cada personagem dos livros seguintes será construída sobre a base dessa mesma noção de experiência compartilhada.

Não seria difícil localizar o duplo de Sebald entre as mui­tas aparições explícitas do narrador na história do romance. Desde o romance setecentista em primeira pessoa de Fielding e Sterne, o narrador introduz e interrompe a narrativa com o intuito de comentar os eventos apresentados ou mesmo fazer graça com sua própria credibilidade. O romance em terceira pessoa do século 19, por sua vez, tendia à eliminação da refle­xão do narrador. Em Flaubert, essa tendência se configura de modo mais forte e coerente, de maneira que a subjetividade do narrador recua para arquitetar, sem interferência, a ilusão da representação. Não é à toa que Adorno a comparou ao palco italiano: “O narrador ergue uma cortina e o leitor deve parti­cipar do que acontece como se estivesse presente em carne e osso”.2 Quando a reflexão retorna ao romance moderno, seu feitio já não é o mesmo daquele apresentado pelo romance setecentista. Ela foi privada do exibicionismo original para se configurar, antes de tudo, como uma tomada de partido contra o que o mesmo crítico denomina a “mentira da exposição”. A distân­cia do narrador onisciente e onipresente é contestada em nome de recursos narrativos problematizados. Nem leitor nem autor são mais observadores privilegiados das situações imitadas. Cada um, à sua maneira, é cada vez mais confrontado com a fragilidade do ato que instaura um mundo ficcional.

Muitos narradores das últimas décadas foram construídos a partir de duplos do autor. Detalhes biográficos, experiências comuns ou mesmo referências a livros publicados são recursos empregados com o intuito de recolocar o problema da autoria para o narrador contemporâneo. É certo que Marcel, o herói de Em busca do tempo perdido, de Proust, já emprestava até o nome do autor, mas a persona pública do escritor consagrado ainda não estava disponível a um personagem inseguro da própria vocação lite­rária. Narradores recentes, por sua vez, reapropriam-se do escritor consti­tuído em livros anteriores. Logo no início de O sobrinho de Wittgenstein, o narrador de Thomas Bernhard recebe da enfermeira do sanatório em que está internado um exemplar de Perturbação, livro de Bernhard. Mais tarde, durante um de seus passeios com o “sobrinho”, o narrador comparece a uma cerimônia para receber um prêmio literário outorgado ao escritor. Os episódios da vida literária, com seu cortejo de vaidades e honrarias, são objetos recorrentes do sarcasmo mobilizado por Bernhard para discutir os artifícios da literatura. Mas também servem à construção de um labirinto de conexões possíveis com a vida dupla de Bernhard, construída nesse livro graças à amizade com o “sobrinho”, ele mesmo um duplo do tio filósofo e também de outro duplo, mais distante, sobrinho como ele, mas do Rameau, de Denis Diderot.

Seria um equívoco identificar no recurso aos duplos uma brincadeira pós–moderna com identidades esfumaçadas. Ao contrário, além de revelar-se fértil em inovações formais, esse recurso tem se mostrado eficaz em proble­matizar os choques da vivência íntima do autor com a experiência coletiva. O extraordinário alcance histórico dos romances escritos por Philip Roth nos anos 1990 seria impensável sem o reaparecimento de Nathan Zuckerman, seu duplo de longa data, em Pastoral americana. A mesma década já havia sido aberta, em Operação Shylock, com a caçada de um duplo impostor pelo duplo homônimo de Roth. Já o Zuckerman de fim de século não ocupa o cen­tro da ação. Ele não é mais aquele protagonista de Zuckerman Bound, mas um coadjuvante abatido pela retirada da próstata e pela incontinência urinária. Como um articulador em segundo plano, assemelha-se aos duplos de Sebald ao permanecer nos bastidores da narrativa. Testemunha de histórias alheias e narrador de lucidez implacável, Zuckerman é um dos recursos mobiliza­dos por Roth para reinventar as potencialidades épicas do romance e se rein­ventar como grande narrador da vida americana, antes de sua amarga des­pedida na década seguinte, em O fantasma sai de cena, uma época de retiro e concentração, se comparada à exuberância dos romances da década anterior.

Nessas mesmas décadas, J.M. Coetzee, que emprestou muitas de suas ideias à heroína Elizabeth Costello, escreveu três romances de memórias a partir de um ou mais duplos. No último deles, Verão, um biógrafo mobi­liza dois cadernos de diários e cinco entrevistas com o intuito de traçar um relato do escritor Coetzee, logo após sua morte. Do mesmo modo como a autobiografia se embebe de recursos romanescos, a ponto de desconfiarmos se o Coetzee de quem se fala é o mesmo registrado como autor na capa do livro, romances ainda mais recentes, como Diário de um ano ruim, apresen­tam uma autoria cindida, assimilando ao gênero do romance a meditação política, o registro de diário e a maleabilidade do ensaio. Essa cisão aparece graficamente registrada na disposição do texto na página. No alto, lemos as “opiniões fortes” sobre os mais diversos temas da vida pública, do ter­rorismo ao apartheid, encomendadas por um editor alemão a uma versão fisicamente decadente do próprio Coetzee; no rodapé, acompanhamos o entrelaçamento dos pensamentos íntimos de Coetzee e da vizinha contra­tada para datilografar suas “opiniões”. Enquanto o próprio Coetzee se exa­mina pela observação alheia, suas opiniões políticas, para além do conteúdo em si, revelam o drama de quem toma a palavra para se impor como autor. A possibilidade de ritmos e registros de leitura diversos realça os desloca­mentos de ponto de vista nesse estudo das dimensões pública e privada da responsabilidade do narrador.

Por mais diversos que sejam, esses exemplos, com exceção de Zuckerman, convergem ao fazer do duplo um protagonista. O duplo do escritor, ao cons­truir o foco narrativo por meio de interferências entre ficção e realidade, é também o indivíduo problematizado em sua capacidade de tomar a palavra e narrar a própria experiência. Justamente aqui o projeto de Sebald des­toa desse panorama. Ainda que a experiência pessoal do narrador seja um dado importante, ele não está preocupado em transformá-lo em fio condutor da narrativa. Seus percalços iniciais, mergulhado ou à deriva em sua melan­colia, seus autorretratos de caneta em punho, tudo faz parte de uma intrin­cada artimanha destinada a trazer à tona histórias de pessoas e lugares, na maior parte das vezes sem vínculo explícito com a experiência pessoal. Salvo a última história de Vertigem ou o retrato do tio distante em Os emigrantes, Sebald se ocupa em desvendar histórias das quais ele mesmo parece não ter noção nenhuma até deparar com os protagonistas.

Ele não inicia as narrativas com a história a ser contada porque sabe que a posição de narrador é um posto a ser alcançado. Não é por coqueteria que o narrador suspeita do sucesso desse esforço. Ele se retrata escrevendo nas horas vagas, durante uma viagem ou nos intervalos da rotina universitária, sem saber se conseguirá levar a bom termo a tarefa almejada. A imagem do nar­rador em trânsito é análoga àquela do narrador debruçado sobre as inúmeras anotações, tentando ordenar as investigações a respeito dos lugares que visita ou das histórias ouvidas de inúmeros interlocutores. São imagens essenciais à construção do foco narrativo, pois realçam o quanto a autoridade de narrador precisa ser pacientemente conquistada, assim como a confiança dos persona­gens que irão relatar a ele, às vezes ao longo de muitos anos, suas histórias pas­sadas. O narrador não é um mediador neutro que está ali apenas para tomar nota e produzir o relato que, em sua forma acabada, mimetizaria o fluxo nar­rativo do interlocutor.

A metamorfose de Sebald em narrador cumpre aqui a função tradicional de registrar as histórias que lhe são comunicadas por estranhos. Sua singula­ridade perante a tradição, contudo, está na desproporção entre a dimensão pública e coletiva da inscrição histórica de tais relatos — todos se inserem no contexto das catástrofes e dos deslocamentos provocados pelas duas guerras mundiais – e a dificuldade com que eles vêm à tona do mais íntimo de uma experiência pessoal ameaçada de esvaecimento. No contexto em que a cons­tituição da experiência é um processo danificado, contar a história de alguém exige o relato prévio do encontro com o narrador, de modo a reconstituir o caminho — histórico e literário — percorrido por essa história até o momento da transmissão. A construção de uma relação pessoal de confiança com o pintor da última narrativa de Os emigrantes ou com o personagem-título de Austerlitz exige do narrador deslocamentos ao longo de décadas de contato pessoal, sem contar o recurso a fontes documentais, cartas e diários, posteriormente organi­zados e relatados pelo autor. Nada poderia estar mais longe daquela figura do narrador tradicional descrita por Walter Benjamin, que recolhia as histórias da tradição oral e as transmitia às gerações futuras. Para os personagens de Sebald, as gerações se sucedem em meio a abismos de silêncio. Seu narrador, percor­rendo a Europa nas últimas décadas do século 20, é indissociável da história das catástrofes que devastaram a paisagem europeia na primeira metade do século.

Esse vínculo da literatura com a experiência das duas guerras mundiais é um tema caro a Sebald desde os ensaios sobre literatura alemã. No início dos anos 1980, ele publicou um texto em que discutia os percalços da literatura do pós-guerra em vista da tarefa de apresentar a destruição das cidades pelos bombardeios aéreos. Ainda que devamos tomar cuidado com o contrabando de suas observações de crítico para a interpretação de sua obra ficcional, o texto é exemplar na apresentação das preocupações literárias do autor. Seu juízo a respeito da produção recente é severo. Com exceção de dois roman­ces elaborados ainda durante a Segunda Guerra Mundial, o cenário literário alemão teria que esperar até a publicação do segundo volume das Novas his­tórias, de Alexander Kluge, em 1977, para ver devidamente representado o que Sebald denomina de “experiência coletiva da destruição dos domínios da vida”. Até então, os romances do pós-guerra haviam se ocupado apenas dos sentimentos e negócios particulares dos protagonistas. Em relação à realidade objetiva da época, especialmente a destruição das cidades e o comportamento dos moradores, Sebald insiste que havia pouca informação digna de valor.

Informação e representação objetiva: os termos não deixam dúvida de que a questão de Sebald é da ordem do realismo literário. Mas a ênfase no trabalho de Kluge indica que a resposta almejada ultrapassa em muito as técnicas do realismo burguês do século 19, tateando na direção de um questionamento mais profundo a respeito dos laços avariados entre a literatura e a represen­tação da experiência histórica. O desafio dessa noção expandida de realismo não é pequeno, pois Sebald acredita que a história a ser representada – a des­truição maciça das cidades pelo bombardeio aéreo – também demoliu os ali­cerces da ficção realista, a mesma que fizera das relações sociais que media­vam a subjetividade dos personagens o objeto por excelência do gênero épico. A onisciência do narrador e a confiança autoral nos poderes da representação não são mais que ruínas na paisagem histórica perscrutada por Sebald.

É nessa mesma paisagem que Sebald assinala os méritos de Kluge por reconstituir os vínculos de histórias pessoais com a dimensão coletiva. Para tanto, Kluge assinala um acontecimento singular e o transforma em ponto de convergência de sua história pregressa e dos desenvolvimentos poste­riores. Formalmente, essa estratégia se traduz no desafio à segmentação dos gêneros e à distinção rígida entre documentação histórica e registro ficcional. É por essa via que o recurso ao gênero da entrevista, por exem­plo, se torna um expediente narrativo eficaz para expor os motivos estrate­gicamente injustificáveis da destruição das cidades. Por meio da montagem de material de origem diversa, ele não hesita em incorporar à narração o esforço para construir um foco narrativo. São técnicas literárias de van­guarda com o intuito de conhecer e representar a realidade. Um realismo para além das convenções realistas, do qual ele aproveitaria inúmeras con­sequências em seu trabalho cinematográfico.

Não é de menor importância para Sebald que as narrativas de Kluge sejam registros tardios. Cerca de 30 anos as afastam dos acontecimentos retrata­dos. Sebald interpreta o tempo de maturação como intrinsecamente asso­ciado à natureza dos eventos. Sua hipótese é que a rapidez e a totalidade da destruição impedissem sua conversão imediata em experiência, que só poderia ocorrer posteriormente por meio de um processo que ele chama de “desvio pelo aprendizado”. A incapacidade de elaborar a experiência, ou seja, de transformar o acontecimento histórico em experiência subjetiva do mundo, tem seu contrapeso no aprendizado retrospectivo das condições de destruição. Kluge esperava que o aprendizado correto da catástrofe arquite­tada fosse o primeiro passo para o que ele denominava organização social da felicidade. A investigação literária dos bombardeios assumia então a tarefa de discutir as razões por trás de um impacto que milhões de pessoas expe­rimentaram como um golpe irracional do destino. O mérito de Kluge residia em ter encontrado formas literárias capazes de apreender uma experiência histórica que desafiava seu próprio conceito. Nesse aspecto, o tom didático de sua narrativa aparece como produto do descompasso entre a destruição em larga escala e a experiência que cada um é capaz de realizar na vida cotidiana.

Sebald enfrenta o mesmo desafio de formular o gênero adequado à tarefa que assume como narrador. O relato de viagem, o tratado de ciência natu­ral, a memorialística, o ensaio histórico, o perfil biográfico: vestígios desses gêneros e de suas respectivas tradições são cadenciados pela prosa maleável do romance e do ensaio, gêneros por excelência de transgressão e reformulação dos gêneros. O romance aproxima-se do ensaio, desestabilizando as conven­ções realistas, mas sem negligenciar a dimensão ficcional da constituição do narrador. Concebê-lo como testemunha de um processo histórico ao qual ele mesmo não teve acesso é uma formulação original para o problema do acesso à história coletiva a partir do prisma de uma experiência singularizada. Ao fazer com que essa experiência emirja das conexões entre o relato oral, a escuta autorizada e o registro escrito, Sebald explicita as mediações presentes nessa relação de confiança e cumplicidade que une narradores, ouvintes e escritores.

O recurso ao duplo se justifica aqui pela necessidade de construção dessa posição do ouvinte autorizado. Paciência e obstinação são os lastros de sua autoridade. Sebald retoma uma questão da literatura de testemunho ao evi­denciar a necessidade de contar algo que resiste até mesmo ao conceito de experiência. Embora seus personagens não sejam sobreviventes dos campos de concentração, são pessoas afetadas pela mesma dinâmica histórica que gerou expulsão e morte. Daí a caracterização do narrador como uma espécie singular de testemunha. Ele não é o indivíduo presente aos fatos que poste­riormente relata a experiência passada, mas alguém que se debruça sobre his­tórias alheias e, num gesto de cumplicidade com a experiência alheia, recolhe e reúne os fragmentos ouvidos a distância, não raro por meio de uma cadeia de narradores aos quais ele mesmo tem apenas acesso precário. O problema dos laços avariados entre esses indivíduos e a dinâmica aterradora da histó­ria coletiva encontra apresentação literária eficaz na sucessão de narradores mobilizados para a composição de um relato.

Austerlitz é o registro mais complexo dessa teia de narradores e ouvintes. Quando o duplo de Sebald o conhece por acaso nos anos 1960, na sala de espera da estação central de Antuérpia, o próprio Austerlitz, um jovem histo­riador da arquitetura, pouco sabe de sua origem. Uma conversa casual sobre a arquitetura da estação dá início a encontros que se estendem por várias décadas, tensionando dois eixos narrativos. Na sucessão de experiências trau­máticas, como a morte dos pais adotivos e um colapso nervoso, Austerlitz se empenha em uma investigação a respeito de sua vida, que termina por levá-lo a descobrir tanto o destino da mãe, uma judia morta em um campo de con­centração, de quem ele não se lembra mais, quanto o seu próprio, o do filho único enviado a Londres às vésperas do início da Segunda Guerra Mundial.

Fragmentos dessa história são comunicados ao narrador de maneira entrecortada, em conversas sucessivas. À medida que os relatos ganham dimensão, também aumenta a cum­plicidade do narrador com a história pessoal de Austerlitz, demandando um trabalho literário mais exigente de organiza­ção e comentário das informações coletadas pelo protagonista a respeito de seu passado. Como símbolo da confiança entre ambos, o narrador tem acesso aos documentos pessoais e ao material de pesquisa reunido por Austerlitz para um plane­jado e depois abandonado livro sobre a arquitetura europeia. São incorporados ao texto não só fragmentos desse material, inclusive uma foto de Austerlitz quando criança, mas também o trabalho de outros narradores, como a amiga da família e também sua antiga babá, com quem ele se encontra em Praga antes de seguir a Terezín atrás de vestígios da mãe e retornar a Paris, local da última conversa com o narrador.

Por meio de uma rede de remissões e correspondências entre diversas vozes, o romance esboça uma paisagem da his­tória europeia muito semelhante às intenções do trabalho historiográfico abandonado por Austerlitz. Desde a primeira conversa com o narrador, em Antuérpia, ele chamava a aten­ção para a monumentalidade da alta arquitetura burguesa: das estações de trem aos prédios públicos, impõe-se o mesmo descompasso com a escala humana. Nas últimas páginas, esse contraste é realçado pela visita à nova biblioteca nacio­nal francesa, um monumento à grandiloquência, segundo Austerlitz, e uma contrapartida soturna da dimensão acolhe­dora das abóbadas da sala de leitura da antiga biblioteca da rue de Richelieu. Do alto de uma das torres da nova biblioteca, Paris aparece a Austerlitz como um monumento à destruição.

Dolf Oehler já chamou a atenção para as correspondências entre Austerlitz e o trabalho de Benjamin sobre Paris .3 Em um de seus ensaios sobre Baudelaire, Benjamin recorda o relato de Paul Bourget sobre o momento em que o escritor Maxime du Camp teria vislumbrado Paris como uma cidade da Antiguidade. Na intuição do curso devastador do tempo, trazido à luz pelo contraste entre a Paris monumen­tal de Napoleão iii e o vislumbre momentâneo da ruína, Benjamin encon­trou a mesma inspiração que orientaria as alegorias de Baudelaire. Também pela justaposição da imagem da Paris moderna à recordação da velha Paris, Baudelaire criou imagens da precariedade da grande cidade, erguida sobre os túmulos da revolução de 1848. Por um vínculo subterrâneo com o nome do protagonista, a nova biblioteca retoma de modo sinistro essa tradição de repressão popular. Situada ao lado da gare d’Austerlitz, ela também se situa no antigo bairro de Austerlitz, cenário de perseguição e deportação de judeus durante a ocupação nazista.

Austerlitz não é a única das narrativas de Sebald a conferir aos lugares visitados um tratamento tão atencioso quanto àquele destinado aos perso­nagens. Tal como a montagem de imobilidade e destruição vislumbrada por Austerlitz do alto da biblioteca, o costume do narrador de percorrer cidades como se pesquisasse um sítio arqueológico tende a explicitar uma compre­ensão muito particular da história. Para 0 narrador, a história passada foi retirada do domínio da ação efetiva dos homens e, privada dos vínculos com a vida prática, cifrou-se na paisagem. É por esse motivo que os personagens de Sebald não se destacam pela inserção nos acontecimentos. Não é mais pela vida prática que os eventos históricos os afetam. Seria ainda mais acertado dizer que, posteriormente, pela recordação, escuta e narração, esses indi­víduos se descobrem como atingidos pela história. O desconhecimento de Austerlitz a respeito de sua origem é um exemplo notável, mas não se res­tringe à sua singularidade biográfica. Como notamos em Vertigem, na visita que realiza à sua cidade natal, essa forma de contato com a dinâmica histó­rica atinge também o narrador.

A última das narrativas de Os emigrantes fornece um exemplo notável des­sas relações ao fazer a história transparecer no cenário de uma conversa:

“Na tarde de verão de 1966, nove ou dez meses depois de minha chegada a Man­chester, Ferber caminhava comigo pela margem do Ship Canal, passando pelos bairros de Eccles, Patricroft e Barton upon Irwell, situados do outro lado da água preta, na direção do sol poente e dos subúrbios desfigurados, onde ocasionalmente se abriam vistas que davam uma ideia dos charcos e pântanos que ali se estendiam até meados do século 19. […] Em face da imobilidade e do silêncio tumular que agora pairavam sobre o canal, já era quase impossível imaginar, disse Ferber enquanto olhávamos a cidade lá atrás emergindo das sombras notur­nas, que ele próprio ainda vira passar ali, nos anos seguintes à última guerra, cargueiros de dimensões descomunais.”4

Sob a imagem crepuscular do sol poente, o passado e o presente da industrialização que desfigurou as cidades inglesas se depositam na paisagemem alto-relevo. Nessemomento, poucos meses antes do primeiro encontro de outro duplo de Sebald com Austerlitz, na estação de Antuérpia, o narrador ainda é um iniciante. Recém-chegado a Manchester, esse jovem depara com uma conjunção his­tórica que parece resistir à ação humana, mas que conti­nua a desafiar a credulidade de quem topa com ela. Sebald poderia deter-se longamente nas associações que essa pai­sagem evoca, caso não tivesse assumido a tarefa de escavar a história de cada um dos terrenos por onde passa. Em sua meditação histórica, o tempo presente não se faz sem esses vestígios em vias de desaparecimento. Não é por outro motivo que sempre o vemosem trânsito. Eleensina quanta obstinação é necessária para pegar um trem e honrar um compromisso. O tema benjaminiano do encontro marcado com as gerações passadas conquista uma nova e irrecusável urgência quando esse narrador se põe a caminho. Ele sabe que é esse compromisso que o impele a seguir adiante.

 

LUCIANO GATTI (1977) é professor de filosofia da Universidade Federal de São Paulo. Formado em filosofia e direito pela usp, é doutor pela Unicamp e autor de Constelações: crítica e verdade em Benjamin e Adorno (Edições Loyola). Com “Os duplos de Sebald” foi o vencedor da primeira edição do Prêmio de Ensaísmo serrote.

 

1. W.G. Sebald, Vertigem: sensações. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 31.

2. Theodor W. Adorno, “Posição do narrador no romance contemporâneo”, in Notas de literatura 1. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 60.

3. Dolf Oehler, “Alucinações e alegorias. W.G. Sebald se recorda de W. Benjamin, leitor de Paris”. Tradução de Vera Lins. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 89, mar. 2011.

4. W.G. Sebald, Os emigrantes. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 166-167

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