A arte de falar mal – por Paulo Roberto Pires


Joseph Epstein não é uma cobra, é uma medusa. Em cada cabeça, uma sentença, peçonhenta, dirigida indistintamente a contemporâneos e antepassados, nomes consagrados e controversos. Aos 75 anos, é mestre na armadilha que Cynthia Ozick associa ao bom ensaio: sua voz tem autoridade e insolência para lançar o leitor numa lógica que não raramente contraria suas convicções mais profundas e que o persuade a assistir à demolição de pessoas e argumentos que lhe são caros. É uma estranha ideia de diversão essa de ler Joseph Epstein, de se sentir constrangido, pelo menos por um tempo, por suas próprias opiniões.

Em Essays in biography, que acaba de ser publicado nos EUA, pode-se ler os seguintes afagos:

“Susan Sontag pertence menos à história da literatura do que à da publicidade”.

“Walter Benjamin está certamente entre os autores mais superestimados do século XX. Paris, Berlim, Moscou, Karl Kraus – Benjamim pode tornar árido os temas mais apetitosos”.

“Nas revistas em que são publicados, os ensaios de Gore Vidal são o equivalente intelectual dos quadrinhos”.

“Em Lucking Out, as memórias dos anos 1970 de James Wolcott, descobrimos que o autor é um homem de origem pobre. E começou sua vida profissional de forma ainda mais pobre, como crítico de rock do Village Voice. Na hierarquia da crítica de arte, a crítica de rock fica ligeiramente abaixo da critica de mármores”.

“Joseph Mitchell era um sulista escrevendo sobre os encantos de Nova York essencialmente como um refinado e simpático turista”.

A antologia pode prosseguir indefinidamente. Epstein, que só teve lançado no Brasil “Inveja” (Arx, 2004), é um entertainer perverso que mantém o público ocupado com vitupérios estridentes enquanto destila silenciosamente um conservadorismo feroz, talvez difícil de engolir sem os seus confeitos da maldade. E é justamente aí que, ao lê-lo, penso na recorrência entre os ensaístas – e entre alguns dos melhores deles – desta atitude que combina o desprendimento do sarcasmo com o apego, às vezes demasiado, a valores tradicionais. Como se conjugassem a prática de incendiário com a cabeça de bombeiro.

William Pritchard resume bem a questão ao resenhar Essays in biography para o Boston Globe. Epstein, diz, tem como alvo preferencial o que ele, o resenhista, chama de “sistemas salvacionistas contemporâneos”, ou seja, os discursos que de forma mais ou menos inteligente completam com certezas as equações de dúvidas de nossos dias. Atitude que conduz à linha de fogo, quase naturalmente, determinado pensamento de esquerda e a jargonite acadêmica.

Por terem levado vidas estridentes e combativas, Gore Vidal e Susan Sontag são especialmente vulneráveis a este tipo de ataque. Para encorpar seu argumento, Epstein evoca as causas mais precárias de cada um, usando e abusando de hipérboles, no limite da injustiça. O que é bom e ruim. Se, por um lado, expurga a cordialidade excessiva das discussões e faz com que o pau quebre para valer, por outro faz com que Epstein seja cooptado por todo tipo de conservadorismo e não raramente pelo anti-intelectualismo que hoje força a barra em diversos fronts, tanto lá como cá.

Quando Tom Wolfe dizia que grafite é arte na cidade dos outros ou Nelson Rodrigues levantava a suspeita de que Guimarães Rosa não passava de um Coelho Neto, ambos estavam investidos da insubmissão típica do gênero. Estavam, cada um a seu tempo, espetando os bem pensantes de forma saudável; mas, no mesmo movimento, levando água para o moinho do conservadorismo em arte e literatura. Um paradoxo inevitável, que não requer pouco esforço para ser enfrentado.

A marca da maldade de Epstein é perfeita, por exemplo, na leitura de Malcolm Gladwell, a quem chama de Jack-out-the-Box, um trocadilho que só se traduz indiretamente, pois diz de sua onipresença  – assim como a cadeia de fast food Jack-in-the-Box – e também da difusão em seus livros de lugares-comuns contemporâneos como a expressão “pensar fora da caixa”. Este é o confeito. O conceito é mais embaixo: ao tentar explicar racionalmente uma série de fenômenos sociais num inusitado mix de informações e interpretações, Gladwell faz, segundo Epstein, um tipo específico de “ciência social de segunda mão” – aquela que sempre oferece um final feliz para os impasses do capitalismo, da explicação sobre o desenvolvimento do talento individual aos métodos de controle da criminalidade.

Mas antes que o grito “Reaça!” ecoe na platéia, convém dar uma olhada no ensaio dedicado a um dos heróis intelectuais de Epstein, Dwight Mcdonald, o célebre intelectual de esquerda, editor decisivo da Partisan Review e autor do histórico “Masscult and midcult”, exploração pioneira da cultura de massas e o nascimento de um gosto médio cultivado como verniz intelectual. Em Mcdonald, Epstein exalta precisamente a integridade intelectual de quem sustentava a difícil posição política de ser anti-stalinista, anti-estatista e, com igual energia, anti-capitalista – um de seus célebres troféus era a frase atribuída ao próprio Trotsky: “Todo mundo tem o direito de ser estúpido, mas o camarada Mcdonald abusa desse direito”.

Para Epstein, ele foi o intelectual par excellence, “o que significa dizer que, sem qualquer conhecimento especializado, ele estava preparado para falar sobre tudo, ruidosamente e sempre com o que parecia uma inabalável confiança”.  Trata-se, lembra Epstein, do “puro amador”, o que não é demérito, lembra, quando pensamos “até onde nos trouxeram os profissionais”.

Joseph Epstein elegeu uma frase de Macdonald como epitáfio para a combativa carreira de seu herói. Mas que ficaria muito bem como epígrafe deste novo e de todos os seus livros: “Quando digo ‘não’ estou sempre certo e quando ‘sim’ estou quase sempre errado”.

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