Nu na banheira, encarando o abismo – por Lars Iyer

Nu na banheira, encarando o abismo – por Lars Iyer*

* Leia aqui a entrevista com o autor para o Blog do IMS.

MONTANHA ABAIXO
Num tempo muito, muito distante, os escritores eram como deuses e viviam nas montanhas. Eram ou eremitas desamparados ou aristocráticos lunáticos e escreviam somente para comunicar-se com os mortos ou com os não nascidos – ou com ninguém. Nunca tinham ouvido falar do mercado, eram enigmáticos e antissociais. Apesar de possivelmente lamentarem sua vida – marcada pela solidão e pela tristeza –, viveram e respiraram o reino sagrado da literatura. Escreveram drama, poesia, filosofia e tragédia, e cada forma era mais devastadora que a outra. Seus livros – quando os escreviam – atingiam o público postumamente e por meio dos caminhos mais tortuosos. Era difícil encarar seus pensamentos e histórias, como os ossos de um animal que deixou de existir.

Mais tarde, surgiu outro tipo de escritores, aquele que morava nas florestas abaixo das montanhas. Apesar de ainda sonhar com as alturas, precisava viver nos limites da floresta, mais perto da cidade, onde de vez em quando se arriscava a dar uma volta na praça. Ele reunia multidões, atiçava as mentes, causava escândalo, tomava parte na política, e em duelos, e instigava revoluções. Às vezes, partia para longas viagens de volta às montanhas, e, quando retornava, o povo estremecia com suas novas declarações. Os escritores haviam se tornado heróis: afortunados, ousados e faustosos. E alguns dos indolentes ao redor da praça começaram a pensar: “Também sou assim! Posso tentar fazer igual.”

Em pouco tempo, escritores começaram a morar em apartamentos na cidade e arrumaram empregos – na verdade, cidades inteiras eram estabelecidas e ocupadas por escritores. Pontificavam sobre qualquer assunto debaixo do sol, davam entrevistas e publicavam na editora local, a St. Mountain Books. Alguns até conseguiam viver da venda de seus livros e, quando esta minguava, ensinavam sobre a escrita no Olympia City College; e quando a faculdade deixava de empregar na área de humanidades, escreviam suas memórias sobre “a vida na montanha”. Tornaram-se astutos em publicidade, pois ficou evidente que a indústria de publicações era um braço da indústria de publicidade, e os mais espertos trabalhavam primeiro em propaganda, um bom local para treinar o ofício. Os escritores começaram então a superar o público em número, e passou a ficar claro que o público era só uma alucinação, no final das contas – assim como a importância da escrita era, sobretudo, um delírio. 

Hoje, você se senta diante da escrivaninha, sonhando com literatura, passando os olhos pela página “romance” na Wikipedia, enquanto come salgadinhos e assiste a vídeos de gatos e cachorros no celular. Atualiza seu blog e tuíta as coisas mais profundas que consegue pensar para tuitar, labuta em um comentário sobre um trending topic, tentando torná-lo significativo. Sussurra nomes como um devoto: Kafka, Lautréamont, Bataille, Duras, na esperança de invocar o espírito de algo que mal entende, algo ilógico e obsoleto e que, ainda assim, lhe causa uma preocupação diária. E se pega rindo, a despeito de si próprio, rindo, impotente, rindo de si mesmo, à beira das lágrimas. Você clica em “novo documento” e fica lá, tremendo, olhando fixo para a tela do computador, imaginando que diabos deve escrever agora.

A MARIONETE CADÁVER

Dizer que a literatura está morta é, ao mesmo tempo, empiricamente falso e intuitivamente verdadeiro. Segundo a maior parte dos indicadores estatísticos, o prognóstico é positivo. Existem mais leitores e escritores do que nunca. A ascensão da internet marcou também, de certo modo, a ascensão de uma profunda cultura letrada. É mais provável que mandemos mensagens em vez de falar com o outro. Mais que nunca, estamos propensos a comentar ou escrever em vez de assistir ou ouvir. É constantemente citado o fato de haver mais graduados em programas de escrita do que pessoas vivas na Londres da época de Shakespeare. Como Gabriel Zaid escreve em Livros demais!, a proliferação exponencial de autoria significa que, em breve, o número de livros publicados irá eclipsar a população –  haverá mais livros que o total de pessoas que já viveram na Terra. Temos bibliotecas no telefone, livros (em circulação ou não) acessíveis ao toque de um dedo. A poderosa Amazon, o feed infinito, a interminável agregação de dados, a sabedoria Wiki, as recomendações, os “curtir”, as listas, a crítica, os comentários. Vivemos em um inaudito mundo de palavras.

E ainda assim… em outro sentido, por outros critérios, a literatura é um cadáver que já esfriou. Sabemos intuitivamente que essa é a verdade – sentimos, suspeitamos, tememos e admitimos. O sonho dissipou-se, nossa e nossa reverência desapareceram, nossa crença na literatura ruiu. Em algum momento dos anos 1960, o grande rio da cultura, a tradição literária, o cânone de obras grandiosas começaram a entrelaçar-se e dividir-se em uma miríade de afluentes, fluindo lentamente nas planícies do delta cultural. Em uma cultura sem verticalidade, a literatura sobrevive como uma cartilha para o efeito de realidade, 1 ou como um diploma menos importante nas recém-privatizadas universidades. O que era literatura? Era a literatura de Diderot, Rimbaud, Walser, Gógol, Hamsun, Bataille e, acima de tudo, a de Kafka: revolucionária e trágica, profética e solitária, póstuma, incompatível, radical e paradoxal, uma morada para oráculos e outsiders, era desafiadora e patética, buscava romper e alterar, descrever, sim, mas, ao descrever, despedaçar, era estar de fora da cultura olhando para dentro, e de dentro da cultura olhando para fora. Obras dessa natureza, desse espírito, não existem mais. Ou melhor, ainda existem, mas somente como uma paródia do antigo formato. A literatura tornou-se uma pantomima de si mesma, e seu significado cultural sofreu uma hiperinflação, com suas unidades infinitesimais compradas e vendidas como ações ridiculamente baratas. Qual a causa desse grande declínio? Podemos apontar o desaparecimento das antigas classes e das estruturas de poder. O declínio da Igreja, da aristocracia, da burguesia destruiu esses grandes antagonistas do empreendimento modernista. Como a pomba de Kant – em voo livre, cortando o ar –, o escritor precisa sentir uma espécie de resistência por parte da literatura, necessita trabalhar contra algo enquanto luta por algo. E contra o que se deve trabalhar, já que não existe mais um antagonista? Podemos falar em globalização, na incorporação sofrida por todo planeta, tornando-se um só mercado global, cujo efeito é o enfraquecimento dos modelos culturais do passado e das literaturas nacionais. Presenciamos a ascensão do indivíduo a um lugar onde a própria idiossincrasia tornou-se um lugar-comum, onde o eu, a alma, o coração e a mente são jargões demográficos. Não existe sequer uma tradição a ser combatida – nenhum agon ou autoria que associamos aos escritores do passado. Podemos apontar o populismo da cultura contemporânea, a dissolução das antigas barreiras entre alta e baixa cultura, e também o enfraquecimento de nossas suspeitas em relação ao mercado. Os escritores trabalham agora lado a lado com o capitalismo, em vez de se armarem contra ele. Você não é nada, a menos que venda, que seu nome seja conhecido, a menos que grupos de admiradores compareçam em suas sessões de autógrafos. Podemos apontar também a banalidade das democracias liberais, que toleram tudo, incorporam tudo; nosso sistema político não permite nenhuma licença poética. A arte, certa vez, lidou com a oposição, mas agora é consumida pelo aparato cultural, e a própria seriedade reduziu-se a uma espécie de kitsch para as gerações x, y e z. Os assuntos a serem tratados com seriedade não foram esgotados – a atmosfera ferve, as reservas de água secam, a dinâmica política desafia a imaginação para autorizar a catástrofe –, mas os meios literários para registrar a tragédia se esgotaram. A globalização achatou a literatura em um milhão de nichos de mercado, e a prosa tornou-se outro produto: deleitável, notável, janota, laborioso, respeitado, mas sempre pequeno. Nenhum poema fomentará revolução, nenhum romance mudará a realidade – não mais.

A história da literatura é como um som em uma câmara de eco, que fica mais fraco a cada reiteração. Ou, para usar outra metáfora, pode ser dito que a literatura era, no final das contas, um recurso não renovável – como o petróleo, a água – que foi drenado e consumido a cada nova manifestação. Se a história da literatura é a história de novas ideias sobre o que a literatura pode ser, então chegamos a um ponto em que o modernismo e o pós-modernismo encontraram o poço seco. O pós-modernismo – que certamente é apenas o modernismo com um nome mais desesperado – deu a cartada final: tudo está disponível, e nada é surpreendente. No passado, cada grande frase continha um manifesto, e cada vida literária propunha uma heterodoxia; agora tudo se resume a xerox, notas de rodapé, encenação. Até a originalidade não tem mais condição de nos surpreender. Presenciamos tantas jogadas formais e estilísticas que até algo original, em todas as suas partes constituintes, contém a metaqualidade da inovação e, paradoxalmente, é instantaneamente reconhecível.

Alguém pode até tocar a antiga trombeta, clamando por um retorno às antigas formas, exigindo que a cultura retorne à sua carruagem e que restaure a importância da autoria literária, mas suas grandiosas demandas são percebidas com dúvida, escárnio, ou não são percebidas. Os “clássicos”, da antiguidade até o presente, são todos apresentações rotineiras, como O quebra–nozes no Natal. O prestígio literário existe apenas de maneira litúrgica; tão singular quanto uma freira no metrô. Quem, a não ser o mais pomposo entre os escritores da terceira onda,2 consegue levar-se a sério como autor? Quem pode sonhar em arquivar seus e-mails e tuítes para uma grata posteridade? A reclusão de Blanchot tornou-se impossível, bem como o exílio de Rimbaud e a morte precoce de Radiguet. Ninguém mais é rejeitado ou ignorado, não quando todos são publicados instantaneamente, sem qualquer esforço ou prudência. A autoria evaporou e foi substituída por uma legião de operários das teclas, caminhando lado a lado com publicitários e desenvolvedores de aplicativos.

É possível argumentar que deveríamos ser gratos a essa nova ordem. Não é bom, no final das contas, emergir de seu quintal como um romancista incipiente? Para que os outros possam lê-lo: que surpresa! As pessoas ainda leem ficção: da mesma forma, uma surpresa. Seus amigos e sua família também gostam da ideia. Então você publicou um romance! As pessoas ainda os leem? Mas que ótimo! Para seu círculo de amigos, o fato de ter publicado um romance é mais importante que tudo o que ele possa conter. O fato de que seu nome aparecerá numa pesquisa do Google junto de algo mais que suas fotos, nu na banheira, já é alguma coisa. Então o prestígio da autoria dá lugar ao prestígio de um tipo efêmero de carreirismo literário, aquele que é rapidamente esquecido.

O que, então, é tão terrível? Os estábulos do mercado literário fornecem um fascinante falatório, um ruído branco para uma existência bem ajustada. Que todos os tipos de flores desabrochem3 etc. Talvez a morte da literatura marque o fim de certa necessidade. Talvez devamos desistir de seu fantasma. Afinal, para que precisamos do espectro pantomímico do poète maudit, a perniciosa sombra de Rimbaud ou Lautréamont com sua garrafa de absinto e seus olhos injetados? Para os pragmáticos, o fim da literatura é simplesmente o fim de um modelo melodramático, de uma falsa esperança que partiu, bem como a psicanálise, o marxismo, o punk rock e a filosofia. Mas, para os menos pragmáticos, percebe-se – experiencia-se – o que foi perdido. Sem literatura, perdemos a tragédia e a revolução, e essas são as duas modalidades da esperança. E, quando a tragédia desaparece, afundamos nas trevas, em uma vida cuja vasta tristeza é ser menos que trágica. Rogamos pela tragédia, mas onde a encontraremos, se ela deu lugar à farsa? Vergonha e desprezo são agora a única resposta em leituras de manifestos literários. Todos os esforços são agora tardios, todas as tentativas são embustes. Sabemos o que queremos dizer e ouvir, mas nossos novos instrumentos não conseguem acompanhar a melodia. Não podemos tentar de novo ou make it new,4 já que ambas as ações têm se engavetado em direção à equivalência – somos como palhaços de circo que não conseguem se espremer dentro do carro. As palavras de Pessoa ecoam em nossos ouvidos: “Já que não podemos extrair beleza da vida, busquemos ao menos extrair beleza de não poder extrair beleza da vida”. Essa é a tarefa que nos cabe, nossa última e melhor chance.

 

DOENTE DE LITERATURA

Qualquer um que escreva está exilado da escrita, que é o país – ele próprio – onde não se é um profeta.

Maurice Blanchot

 

Como em qualquer morte, qualquer calamidade, nosso primeiro – e perverso – impulso é a negação. Amamos demais nossos gênios literários para admitir que seus dias estejam contados. Dançamos em volta do mastro do Bloomsday e provamos a palavra de Camus em nossas línguas como a eucaristia. Com pompa e circunstância, as premiações concedem, de modo vão, medalhas de grandeza para romances que vagamente emulam o que seria, em nossa desbotada memória, uma obra-prima. A fascinação, as ruínas, o corpo da literatura permanecem, mesmo que seu espírito tenha ido embora. Apenas poucos escritores conseguiram dominar a medonha natureza da literatura atual. Apenas poucos escritores escrevem verdadeiramente sobre as circunstâncias em que nos encontramos e sobre os obstáculos que nos confrontam. O trabalho deles é doentio e canibalístico, absurdo e desesperado, mas também, paradoxalmente, alegre e aliado à verdade. Nessas obras, há uma terrível honestidade que nos liberta. Esses são os escritores que mostram, talvez, como podemos prosseguir.

Antes de sermos curados, precisamos fazer o diagnóstico. O narrador de O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas, sofre de um tipo de “doença literária” na qual vivencia o mundo somente pelo conteúdo dos livros que leu, escritos pelos grandes nomes da história da literatura. Ele está condenado a entender a si mesmo, e tudo o mais à sua volta, por meio da vida e da obra dos autores pelos quais é obcecado. O motivo que o faz escrever O mal de Montano é encontrar a cura – deixar a literatura por meio da literatura.

Na primeira parte do livro, uma novela autônoma, Montano visita Nantes com o intuito de libertar-se de sua doença literária, mas se vê ainda mais envolvido nela. A cidade só o faz lembrar-se de Jacques Vaché, o lendário protossurrealista, que ali nasceu e viveu, conhecido apenas por suas cartas para Breton – bem como o próprio Breton, para quem Nantes perdia somente para sua amada Paris como fonte de inspiração. E, quando Montano visita o filho na mesma cidade, só consegue ver a si mesmo como o espectro do pai de Hamlet, que finge estar furiosamente maluco.

Montano é enganado pela literatura. Desesperado, decide deixar a cidade, pega o primeiro trem e admite: “Já sei que fazer isso é muito literário, já sei, além disso, que os trens são muito literários”5 – os meios de transporte haviam sido igualmente infectados por sua doença. A subsequente viagem ao Chile não traz nenhum alívio – viajando em um pequeno avião, ele só consegue lembrar-se de Antoine de Saint-Exupéry, que entregava cartas sobrevoando as mesmas montanhas. O personagem evoca um número incontável de outros autores no caminho: Danilo Kiš, Pablo Neruda, Alejandra Pizarnik, e assim por diante.

Montano sofre, é oprimido pela literatura. O mundo inteiro parece ser um sistema de metáforas e associações literárias. Montano sequer pode pensar em suicídio, em dar um fim a tudo, já que a morte é “precisamente do que mais fala a literatura”. Não há saída – não há um curso de ação que possa seguir sem o risco de tornar-se um clichê ou um kitsch literário. Para o azar de Montano, ele não só está preso à literatura, mas a própria literatura se revela como um palco espalhafatoso.

A doença de Montano tem origem em Kafka (na realidade, quais os problemas dos últimos 100 anos que não foram antecipados por Kafka?). Segundo Montano, não existe alguém mais “doente de literatura” do que o autor nascido em Praga. “Sou feito de literatura”, afirmava Kafka, mas ele conseguiu fazer literatura a partir de sua doença. O castelo pode, como sugere o narrador de O mal de Montano, ser uma alegoria da impossibilidade de troca da exegese pela realidade, de evadir-se da doença em direção à saúde. Mas o próprio ato de criar uma alegoria a partir da doença torna-se uma espécie de literatura. Kafka, em outras palavras, ainda consegue escrever literatura, e desse modo sua doença literária é temporariamente suavizada.

O narrador de Vila-Matas tem ainda menos opções disponíveis que o de Kafka. As estruturas da religião ruíram para Kafka, deixando-o no domínio da alegoria, mas, para Vila-Matas, até as estruturas da alegoria ruíram, até a estrutura da narrativa desmoronou. Até Kafka podia contar uma história, mas essa capacidade está além do narrador de Vila-Matas. Enquanto Kafka nasceu tarde demais para a religião, todos nós nascemos tarde demais para a literatura. Enquanto o narrador de Montano revive a vida e a obra de verdadeiras lendas literárias, fica claro o quão remotas essas figuras se tornaram para nós; esses escritores cuja literatura já parecia nos manter a distância. A literatura está se apartando de nós como se afastava de nossos predecessores literários – de diaristas como Gide, que, como descrito em Montano, está sempre sonhando escrever uma obra-prima. A ideia da obra-prima – ou até o sonhar escrever uma obra-prima – faz parte do kitsch literário. É isso que o narrador quer dizer quando afirma que a própria literatura sofre do mal de Montano: a doença de Montano – ver o mundo em termos literários – é também literatura, um espelho que já não pode refletir o mundo.

“Dom Quixote representa a juventude de uma civilização: ele inventa acontecimentos; e não sabemos como escapar do assédio deles”, escreve E.M. Cioran. Inventar acontecimentos, ou até criar alegorias a partir deles, não parece mais possível. Assim como quando cuspimos contra o vento, nosso menor gesto literário voa de volta para grudar em nós. Isso, e também o esplendor virtuoso da primeira parte de O mal de Montano, pode ser engraçado. Mas, no final, torna-se exaustivo: como um crítico afirmou, “as piadas começam a se desgastar”, e o livro fica “dolorido”. É difícil não concordar que o narrador parece “ter se perdido no enredo – não que existisse algum – inteiramente”. E ainda assim, apesar do terrível impasse, Vila-Matas termina em uma nota de surpreendente provocação, até de esperança: o narrador e Robert Musil ajoelhados diante de um imenso abismo, cercados por pomposos e presunçosos escritores (“inimigos do literário”) que parabenizam uns aos outros em um grotesco festival literário. “É o ar do tempo”, diz o narrador com pesar, “ameaçam o espírito”. Mas Musil o contradiz: “Praga é intocável. […] É um círculo encantado, com Praga nunca puderam, com Praga nunca poderão”. Para um livro cujo propósito é identificar a doença terminal da literatura, O mal de Montano termina insistindo que algo ainda persiste, uma qualidade resoluta e secreta que não pode ser desfeita nem em tempos como os nossos.

Voltemo-nos para Thomas Bernhard, outra vítima do mal de Montano. Nada a ser feito, nenhuma saída, nada resta exceto ressaltar o fato de que não há mais nada a ser feito, e de que não há nenhuma saída. A mesma velha história contada repetidas vezes – a tentativa de achar tempo e espaço para concluir um sumário, um grande compêndio que explique tudo sobre um assunto específico, seja em relação ao ato de ouvir ou à música de Mendelssohn, em que o relato do narrador sobre os problemas intransponíveis de encarar esse projeto torna-se a própria história. Bernhard desenvolve seus temas – os ressentimentos e as frustrações da pretensa vida intelectual, a culpa e o sofrimento de viver após a autoridade austríaca, a abominação moral e as consequências do nazismo – por meio de um tema cacofônico e de variações em sua prosa. Seus grandes e reiterados saltos de consciência alongam-se até o ponto de rompimento, espiralam em um furacão de ódio e frustração. Seus livros se tornam uma espécie de redemoinho, atraindo tudo o que estiver em seu curso: profundidades hiperbólicas aparecem ao lado de banalidades mesquinhas, aforismos do Velho Mundo colidem com rabugices desmioladas, grandes denúncias desdobram-se em distrações banais. O valor de uma mala, o valor de uma vida, como cachorros sabotam um pensamento intelectual, como o café da manhã é uma espécie de agressão. Suas frases, sempre na iminência de se desfazer, não procuram apenas representar a vida – a tediosa vida comum de filósofos fracassados, cientistas fracassados, músicos fracassados e escritores fracassados vivendo sob sistemas decadentes –, e sim ordenar as forças que a encerram.

O incessante impulso de sua prosa trata de uma completa intolerância para com o fracasso, o compromisso e o ódio da impostura empertigada dos que não entendem os próprios fracassos e compromissos. Ao declarar guerra contra si mesmos, os frustrados narradores de Bernhard nunca conseguem encontrar tempo e espaço para, finalmente, escrever – e imitar seus mestres, sejam eles Schopenhauer ou Novalis, Kleist ou Goethe –, declarando guerra a uma cultura em que essa imitação se tornou impossível. Bernhard é o nome de um ralo que parece sugar e escoar tudo o que seja relativo à velha cultura, à literatura e à filosofia. Consternado, ele lamenta o suicídio da cultura, mesmo quando vomita sua cólera nos “inimigos do literário” remanescentes: os artistas patrocinados pelo Estado, sejam eles pintores, atores, escritores ou compositores, e seus jantares detestáveis, como os descritos em seu romance Árvores abatidas. Ele está preso a uma espécie de devaneio odioso da vida não literária, personificado pela irmã empresária socialaite, em Concrete, bem como em O náufrago, em que postula que os únicos resultados possíveis de um esforço artístico são o suicídio, a loucura e o fracasso abjeto.

É claro, a ironia de Bernhard é que, enquanto seus narradores fracassam constantemente até para começar, o autor encontrou uma forma e uma maneira de se expressar. Seus músicos podem ter abandonado a música, e seus especialistas em música podem não conseguir escrever uma linha sequer sobre o tema, mas Bernhard compôs uma canção para si mesmo. Pode ser uma sinfonia grotesca, uma valsa ridícula, risível, burlesca e desumana, mas ainda assim há algo excitante – talvez até belo – na abnegação de sua música. Mais uma vez, como na obra de Vila-Matas, somente à beira do abismo conseguimos nos lembrar do que é intocável.

Um último exemplo de literatura que confronta o seu fim e sobrevive: Os detetives selvagens, de Roberto Bolaño, trata da tentativa de criar uma vanguarda literária em 1975, e foi escrito depois que as condições para a prática vanguardista haviam sido destruídas. É um livro sobre revolução política, escrito em uma época posterior ao inevitável fracasso de tais revoluções. É um romance sobre um movimento literário avant-garde, mas que, ainda assim, resiste à conceituação e à estilização que esse tipo de movimento requer. É um romance extático e apaixonado – o próprio Bolaño o descreve como “uma carta de amor para a minha geração” –, que funciona como uma paródia aos anseios pela literatura e pela revolução. É um romance, como outros romances mais recentes, que chega tarde demais, mas que, ao contrário dos outros, encontra um caminho para tratar desse atraso. Assim, Os detetives selvagens provê outro modelo por meio do qual os escritores aspirantes podem falar, de modo apropriado, sobre nossos sonhos anacrônicos.

Os supostos heróis do livro, Ulises Lima e Arturo Belano, líderes do grupo literário chamado de “realismo visceral”, quase não aparecem em boa parte do romance. Na maioria das vezes, ouvimos sobre os dois de modo deslocado, por meio dos narradores distintos que Bolaño invoca para contar sua história. E o veredicto sobre os protagonistas nem sempre é compatível – eles têm um admirador na figura do gauche e excitável estudante de direito Madero, cujos diários brilhantemente divertidos sustentam Os detetives selvagens, mas têm também seus detratores. “Belano e Lima não eram revolucionários. Não eram escritores. Às vezes escreviam poesia, mas também não creio que fossem poetas. Eram vendedores de drogas”,6 diz um dos narradores de Bolaño. “Todo o realismo visceral era […] o pavonear demente de uma ave idiota ao luar, algo bastante vulgar e sem importância”, afirma outro. No fim das contas, eles seguem para “a hecatombe ou o abismo”, como enxergam o mundo, ainda tentando alcançar uma postura literária e política em uma época em que a literatura e a política já tinham ido embora. “Lutamos por partidos que, se tivessem saído vitoriosos, teriam nos mandado imediatamente para um campo de trabalhos forçados”, diz Bolaño sobre sua geração. “Lutamos e vertemos nossa generosidade em prol de um ideal que estava morto há mais de 50 anos.”7

Dedicar-se conscientemente a um ideal morto – essa é a característica que permeia Os detetives selvagens. O insight de Bolaño – e ele é, ao mesmo tempo, inquietante e libertador – é que o único assunto que resta à escrita é o epílogo da literatura: a história das pessoas que perseguem a literatura, esfolando os joelhos nos rastros de sua passagem. E isso não é apenas um embuste metaliterário ou solipsismo; é encarar as coisas de frente. Vivemos em uma cultura em que milhões de escritores imitam os grandes moldes literários que tanto adoram – apenas vagamente conscientes do quanto regurgitam kitsch. Todos sabemos que Liberdade8 não pode ser Flaubert, e ainda assim não conseguimos compreender exatamente por que essa porta está fechada para nós. A cada ano, vemos estilos mortos – realismos, modernismos, novos jornalismos, divertidos pós-modernismos – apresentados como a última moda, como algo retrô, como uma epidemia. Está na hora de a literatura admitir o próprio fim em vez de brincar de marionete com seu cadáver. Devemos falar abertamente sobre a farsa de uma cultura que sonha com coisas impossíveis de serem criadas, pois essa farsa é nossa tragédia. Devemos encarar a melancolia e o humor amargo de nossa situação. Por qual outra razão um dos narradores de Bolaño desenharia anões com pênis gigantes enquanto aguarda em uma cela de prisão israelense, ou Madero faria seus companheiros brincarem de adivinhações com desenhos, reproduzidos nas últimas páginas de Os detetives selvagens, enquanto se aproximam do fim de sua busca por Cesárea Tinajero? Esses são os comportamentos de pessoas vivendo após a literatura. Mais uma vez, como em Cervantes, a narrativa mais atrativa é sobre o papel da literatura em nossa vida, exceto no cenário contemporâneo, que é o papel do fogo-fátuo sobre o pântano, do fantasma arrastando correntes, da entidade derrotada que hipnotiza uma legião de idiotas: pseudorromancistas, pseudorrevolucionários, críticos, professores de filosofia, editores de blogs de literatura, assinantes de revistas e pseudointelectuais – todos nós.

 

O QUE ESCREVER NO DESPERTAR

Existe esperança em abundância, esperança infinita, mas não para nós.

Kafka

 

Então aqui estamos, deste lado da montanha, com saudades dos altos platôs castigados pelas tempestades onde nossos ancestrais escritores um dia realizaram sua mágica, mas cientes de que vivemos nas planícies. Aqui estamos no fim da literatura e da cultura, despojados, desolados, perplexos. Somos crianças vagando com botas antigas. Talvez até mesmo Bernhard e Bolaño sejam grandes demais para imitarmos! Devemos estudar os perversos rabiscos de David Shrigley e Ivan Brunetti. A própria escolha de instrumentos mostra como eles abraçaram sua sorte. Devemos desconectar os computadores, colocar os livros na varanda e esquecer que aprendemos a ler e a nos importar. Mas, para aqueles que não conseguem escapar da necessidade de rabiscar e digitar, aqui estão algumas sugestões.

Utilize uma clareza não literária. Sabe-se que o jogo acabou, que está tudo terminado. O estilo de Os detetives selvagens é notavelmente não literário, quase deselegante, apesar de todo o virtuosístico desassossego de suas vozes narrativas. O livro tem uma “retidão chocante”. Mesmo Bernhard, com todas as suas convoluções gramaticais, escreve, por fim, com uma espécie de obviedade patética – não complica nem adorna demais, em vez disso vomita suas queixas. O abismo necessita da clara constância de um testemunho, da sobriedade de uma testemunha no dia seguinte, para lembrar-se do que ocorreu antes. A literatura não é mais o objeto em si, e sim o objeto desaparecido.

Rejeite métodos encerrados, rejeite obras-primas. O anseio de criar obras-primas é uma espécie de necrofilia. A escrita deve estar aberta a todos os lados da vida para que seu esboço – a vida melancólica e farsesca – possa estar presente, saqueando suas páginas. Vila-Matas afirma ser necessário, para qualquer um que escreva um texto ficcional, mostrar a própria mão, permitir que uma imagem de si mesmo apareça. Mas é uma imagem da vida cômica que mostra a própria mão nessa literatura que vem após a literatura. O autor deve desistir de macaquear o gênio – em vez disso, deve apresentar o autor como um macaco, como um idiota. Não tenha a arrogância de ser o comediante. Você é o cara sério nessa farsa; o universo é o cara engraçado. Então não seja bobo, gracioso, piadista ou recatado: permita a hilaridade, um riso doloroso que purifica e que divide em dois o corpo e o coração. Siga sua própria tolice como pegadas na areia.

Escreva sobre este mundo, independentemente do assunto sobre o qual esteja escrevendo, escreva sobre um mundo dominado por sonhos mortos. Ressalte a ausência de esperança, crença, compromisso ou seriedade elevada. Assinale o passado que nos arruinou e o futuro que nos destruirá. Escreva sobre um tipo de esperança que um dia foi possível, como a literatura, a política, a vida, mas que não é mais possível para nós.

Deixe claro seu sentimento de impostura. Você não é um autor, não no antigo sentido da palavra. Você realmente não escreveu um livro, não um livro de verdade. Você não faz parte de nenhuma tradição, movimento ou vanguarda. Não há nenhum prêmio para você na literatura, claro que não, nada para sua pompa insensata. Além disso, pouquíssimas pessoas estão lendo de verdade: atente para esse fato também. Ninguém está lendo, idiota! Existem mais romancistas do que leitores. Existem livros demais

Dê vulto à sua melancolia. Deixe claro que o fim está próximo. A festa acabou. As estrelas estão partindo, e você e sua estupidez são indiferentes ao negrume do céu. Você está junto dos personagens de Bolaño, no final de sua busca, perdido no deserto de Sonora, no fim de todas as buscas. Está rabiscando desenhos estúpidos para matar o tempo no deserto. E é esse o conjunto de sua obra: rabiscar desenhos estúpidos para matar o tempo no deserto.

Não seja generoso, nem gentil. Ridicularize a si mesmo e o que você faz. Ataque a arte, como canibal que é. Lembre que só quando as coisas estão mortas, bicadas por um milhão de anos de corvos, roídas por chacais, descartadas e esquecidas, podemos descobrir o último pedaço de osso intacto.

 

LARS IYER (1970) é professor da universidade de Newcastle upon Tyne, na Inglaterra. É autor de dois livros sobre Maurice Blanchot (Blanchot’s Communism e Blanchot’s Vigilance) e dos romances Spurious e Dogma, todos inéditos no Brasil. Este ensaio foi publicado originalmente em novembro de 2011, na The White Review.

Tradução de Thiago Lins

NOTAS

1. Referência ao termo cunhado, em 1968, por Roland Barthes. [N. do T.]

2. Termo cunhado por Alvin Toffler, em livro homônimo, para tratar da

chamada “era da informação”. [N. do T.]

3. “Desabrochar de Cem Flores” foi um período na história da República Popular da China (1956-1957) em que era incentivada a expressão das mais variadas escolas de pensamento. [N. do T.]

4. Lema do poeta modernista Ezra Pound (1885-1972) que também batiza um de seus livros de ensaios. [N. do T.]

5. Tradução de Celso Mauro Paciornik. São Paulo: Cosac Naify, 2005. [N. do T.]

6. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. [N. do T.]

7. Trechos do discurso que Bolaño proferiu ao receber o Prêmio Rômulo Gallegos, em Caracas, 1999. [N. do E.]

8. Referência ao romance de Jonathan Franzen. Tradução de Sergio Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. [N. do T.]

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