Por que os 20 centavos importam – por Carla Rodrigues

Por que os 20 centavos importam

por Carla Rodrigues

20 centavos de real

Que o capitalismo tenha chegado a níveis inéditos de exploração, sabemos. Estão aí Slavoj Zizek, Luc Boltanski, Peter Sloterdikj, Giorgio Agamben nos dizendo. Que os megaeventos são uma forma engenhosa do capital promover a circulação global de dinheiro, já aprendemos com o brilhante David Harvey. E cada um de nós pode constatar nos orçamentos bilionários das grandes obras, aqui e nos países que nos antecederam. Que as grandes metrópoles, inclusive as brasileiras, estão passando por um processo de gentrificação, antropólogos, urbanistas, e qualquer um que observe a sua vizinhança, percebe.

Que as formas tradicionais de representação estão há muito esvaziadas de significado, a foto dos manifestantes no Congresso simboliza de maneira única. O povo toma a casa que, na estrutura democrática, deveria ser do povo, mas que historicamente tem sido ocupada por interesses sectários e pela defesa de posições empresariais, dissociadas do interesse popular. Que as formas tradicionais de representação estão esvaziadas de significado também aparece nas mobilizações via redes sociais, nos apelos de “sem partido, sem partido”, e nos protestos que surpreendem o governo em primeiro lugar porque neles não é possível encontrar lideranças formais. Que a grande imprensa está onde sempre esteve – dissociada do interesse público, vocalizando o discurso conservador –, a crise do jornalismo tem evidenciado de maneira aguda, com o esvaziamento das redações, a expansão do chamado jornalismo colaborativo, e a troca de informações horizontais proporcionada pelas redes.

Curioso, intrigante e interessante é pensar que vem em grande parte desta mesma imprensa a reivindicação de que os manifestantes tenham uma pauta. Grande imprensa essa cuja pauta está descreditada por ser mera repetição de um discurso oficial que fala de seus próprios interesses, esvaziada da possibilidade de trazer à voz das ruas, incompetente para entender a diferença entre opinião pública e opinião publicada.

Nesse contexto, que aqui se resume a entender que o fenômeno que vai para as ruas não é apenas brasileiro – e não o é porque as condições de opressão do capital se reproduzem, ainda que com matizes locais, em diferentes países do mundo –, chama a minha atenção o debate sobre os 20 centavos.

Lê-se e ouvem-se argumentos contraditórios: há quem diga que não é apenas pelos 20 centavos de aumento, como se o aumento mensal nas despesas de transporte fosse insignificante, tanto e a tal ponto de não justificar tanto barulho por nada. Parte desse discurso então só considera a tomada das ruas como legítima porque as reivindicações seriam por transporte público de qualidade, mobilidade urbana, contra a corrupção, inclusive nas obras públicas para os megaeventos, contra o uso descabido de uma imensa quantidade de dinheiro em equipamentos esportivos, apesar da carência de recursos em áreas prioritárias como educação e saúde.

Tem me interessado mais, muito mais, quem insiste em argumentar que são, sim, pelos 20 centavos. A história da última década no Brasil é a história de uma política de inclusão social pela via do consumo. Os 20 centavos são o símbolo de uma política que associa juros baixos, crédito farto (para os bancos) incentivos ou renúncias fiscais (para as indústrias), estímulo a uma pauta de importação que nos entupiu de produtos fabricados na China, e uma política de combate à desigualdade social apenas via distribuição de renda, sem melhorias ou investimentos no que deveria ser oferecido por políticas públicas – como educação, saúde e transportes.

Observo que, desta lista básica de serviços públicos, só os transportes são pagos. Educação e saúde pública são gratuitas – e em geral indizivelmente ruins.

Mas o transporte enfrenta uma dificuldade a mais: é público, indizivelmente ruim, e ao mesmo tempo é pago.

Se o que se pretendeu fazer até aqui foi a inclusão pela via do consumo, os 20 centavos a mais na passagem de ônibus acabam por simbolizar e sintetizar uma série de questões. A primeira, responde à lógica do mercado: paga-se caro por um serviço de péssima qualidade, orientando apenas pelos interesses do empresário de ônibus e não pela necessidade da população. A valer a lei do mercado, cada passageiro deveria ter o direito de trocar de fornecedor, promovendo assim o que seria uma das regras máximas do capitalismo: livre concorrência, tarifas competitivas. Ganharia mais dinheiro a empresa que oferecesse serviços melhores a preços menores.

O que acontece no transporte é que, apesar de público, a péssima qualidade é, entre outras coisas, resultado da combinação entre serviço público e lucro privado, em que um conjunto restrito de concessionárias obtém das prefeituras e governos estaduais o privilégio de circular os ônibus, privilégio esse muitas vezes obtido de forma corrupta, o que garante impunidade às empresas, má gestão das linhas, e submete o passageiro à condição de refém: é inevitável pagar – caro – por um serviço que é público – e, portanto, deveria ser tão gratuito quanto saúde e educação.

É natural que tanto pelo transporte quanto pela via do consumo fique evidente o equívoco de uma sucessão de políticas econômicas que tem entre suas metas vender automóveis via renúncia fiscal de IPI, em um contexto no qual individualmente paga-se quase 40% de imposto/ano sobre a renda assalariada. A pauta de reivindicação pode ser só pelos 20 centavos a mais no preço da passagem, porque nestes 20 centavos está a história de um país que permanece desigual, apesar de todos os discursos que pretendem nos convencer do contrário.

Aos jornalistas que perguntam pela pauta de reivindicações do movimento, sugere-se colocar os tais 20 centavos em pauta.

 

Doutora em filosofia, CARLA RODRIGUES (1961) é professora do departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Escritora e jornalista, é autora da biografia Betinho – Sertanejo, mineiro, brasi­leiro (Planeta, 2007) e do ensaio Coreografias do feminino (Editora Mulheres, 2009).

 * Texto originalmente publicado no perfil da autora no Facebook.

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