Nas favelas violentas do Brasil – por Suketu Mehta

Nas favelas violentas do Brasil
por Suketu Mehta

 Rocinha (Rio de Janeiro)

Eu e Marina, minha amiga brasileira, fomos buscar  no saguão do hotel uma amiga de Nova York que lidera uma ONG. Eram sete e meia da noite de uma sexta-feira movimentada, em outubro do ano passado, perto da Paulista, a mais prestigiosa avenida de São Paulo.

Fomos até um táxi em frente ao hotel. Sentei na frente para deixar as duas mulheres conversando no banco de trás. Marina me pediu para procurar no Google o cardápio do restaurante. Estava procurando quando vi um adolescente correr até o táxi e gesticular através da minha janela aberta. Pensei que fosse um pedinte. E então vi a arma, que ia da minha cabeça para o celular.

“Dá o celular pra ele”, disse Marina no banco de trás.

Dei o celular. Ele não foi embora.

“Dinheiro, dinheiro!”

Eu não queria dar minha carteira. O garoto gritava palavrões. “Dinheiro, dinheiro!”

De repente, o corpo do rapaz deu um solavanco para trás quando um braço masculino o levantou pelo pescoço. O homem, vestindo uma camisa preta, gritava; havia surpreendido o garoto por trás. Começou a bater nele. O taxista ao meu lado continuava estoico. Disse que aquilo nunca havia acontecido com ele, mas nunca tinha visto alguém tão blasé.

Logo em seguida vi o garoto e outro adolescente, talvez seu cúmplice, fugirem correndo pela rua. O homem da camisa preta tentou correr um pouco atrás deles e depois voltou ofegante para o táxi. “O desgraçado levou alguma coisa?” perguntou nosso salvador, que depois apelidamos de Batman. Não era um policial à paisana, como eu havia desconfiado; era apenas um cidadão comum, cansado dos criminosos.

“Um celular”, respondeu Marina.

“Filhos da puta. Esses veados sempre aparecem em dupla. Covardes.”

O taxista nos levou até a delegacia mais próxima. Dois policiais letárgicos eram as únicas pessoas ali dentro. “A gente atende umas dez pessoas roubadas por dia, só nesta delegacia”, disse um deles.

O outro policial foi olhar o registro. “Hoje já apareceram três antes de vocês”. Em São Paulo ocorrem 319 assaltos a mão armada por dia.

Todo mundo na cidade tem alguma história para contar. Priscilla, que conheci no dia seguinte, foi assaltada dez vezes. Certa vez um menino encostou um caco de garrafa quebrada no seu pescoço. Outra vez, ela estava numa casa que foi invadida por homens armados, e um deles ficou apontando uma arma para sua cabeça durante quarenta minutos.

Eu até que não me dei mal — só roubaram meu celular. Ainda estava com a carteira, graças ao Batman, e não fui espancado, assassinado nem raptado.

Atualmente, as cidades do Brasil estão entre os lugares mais violentos do mundo. Mais pessoas são assassinadas no Brasil do que em qualquer outro lugar. Em 2010, aqui ocorreram 40.974 homicídios — 21 para cada 100 mil habitantes, de acordo com o UNODC, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, em comparação com o índice do resto do mundo, que é de 6,9. A Índia tem o maior número de homicídios, com 41.726. Mas a Índia tem uma população seis vezes maior que a do Brasil, então seu índice de homicídios é de apenas de 3,4 para cada 100 mil habitantes. (Em comparação, a Itália teve 529 homicídios naquele ano, com um índice de 0,9.) Quatro cidades brasileiras tiveram uma taxa de homicídios de mais de 100 para cada 100 mil habitantes. Entre 5% e 8% dos homicídios brasileiros são solucionados — em comparação com os 65% nos Estados Unidos e 90% na Grã-Bretanha. A maioria das vítimas é pobre e do sexo masculino, e sua idade varia entre 15 e quase 30. A taxa de homicídios roubou sete anos da expectativa de vida nas favelas do Rio.

E, neste ano, outra forma de violência começou a aparecer nos jornais, com vários casos notórios de estupro no Rio, incluindo o de uma americana numa van. Os estupros na cidade aumentaram em 24% no ano passado, com 1972 ocorrências registradas. Sociólogos e autoridades da polícia não conseguem explicar essa tendência num país em que as mulheres são livres para se vestir como quiserem, cujas leis são muitas vezes consideradas um modelo no combate da violência de gênero e presidido por uma mulher, Dilma Rousseff.

A violência perpetrada contra seres humanos é similar à violência contra o meio-ambiente. Na enorme extensão verde que cobre grande parte do país, incêndios, exploração madeireira e ambiciosos esquemas de agronegócios continuam a desmatar a floresta tropical, apesar (ou talvez por causa) das mudanças de Rousseff no código florestal concebido em 1965. Dados do governo indicam que o desmatamento, que havia caído 84% num período de oito anos até agosto de 2012, aumentou em 35% desde então.

A violência não impediu que o Brasil surgisse na cena mundial como o país de maior destaque na América Latina. No ano que vem, sediará a Copa do Mundo; dois anos depois, as Olimpíadas. Entre 2003 e 2011, Luiz Inácio Lula da Silva, o notável presidente, realizou diversas reformas que impulsionaram a economia do país. Rousseff, sua sucessora, era a favorita para conquistar um segundo mandato até os protestos em junho deste ano. Tanto ela quanto Lula são do PT, um partido de centro-esquerda. Agora, embora não esteja crescendo tão rápido quanto antes da crise de 2008, a economia brasileira ainda é a sétima maior do mundo. O Brasil na década de 1950 era 85% rural e 15% urbano. Hoje os números se inverteram: o país é 87% urbano. É a urbanização mais rápida de qualquer país na história recente.

O Brasil também é modelo para outros países em desenvolvimento que buscam auxiliar os cidadãos mais pobres. O Bolsa Família, introduzido por Lula em 2003, é um programa de impressionante sucesso no qual o governo fornece pequenas quantias de dinheiro diretamente para as famílias pobres. Alguns dos benefícios estão ligados a certas condições que devem ser cumpridas por essas famílias, como garantir que as crianças compareçam à escola. O programa beneficia um quarto de todos os brasileiros, 50 milhões de pessoas. Isso levou a uma queda de 20% na desigualdade de renda desde 2001, quando o Brasil era um dos países com maior desigualdade do mundo. Graças ao Bolsa Família, a classe média brasileira foi de 40 milhões para 105 milhões nos últimos dez anos. Isso gerou a maior classe média baixa do mundo.

Revoluções costumam ter início com a formação de uma classe média, como demonstram os acontecimentos mais recentes. Em junho, os protestos em São Paulo causados por um aumento de vinte centavos de Real na passagem de ônibus transformaram-se nas maiores demonstrações públicas desde a queda da ditadura, levando milhões de pessoas para as ruas nas maiores cidades do país. Protestavam contra os extravagantes gastos com a Copa do Mundo e outros eventos esportivos, sendo que há pouco investimento em necessidades básicas como transporte e educação; a corrupção endêmica no PT; e os altos índices de violência. A maioria dos manifestantes era composta por jovens com formação universitária, sem filiação a nenhum partido político.

O governo tentou reagir ao grande escopo de reclamações dos manifestantes. Os prefeitos de São Paulo e do Rio desistiram do aumento das passagens de ônibus. Dilma Rousseff prometeu um referendo para um pacote de reformas que incluía a mudança da representação proporcional para a votação por distrito, o que poderia significar uma administração mais responsiva nas favelas. Os manifestantes, alguns a favor do cancelamento total da Copa do Mundo, não parecem estar satisfeitos até o momento. O índice de aprovação de Dilma Rousseff despencou de 57% no começo de junho para 30% um mês depois.

A raiva dos manifestantes surgiu, em parte, das injustiças que prevaleceram na história brasileira. O Bolsa Família fez muito para solucionar o problema da desigualdade, mas não a racial. Metade do país é composta de negros, mas eles correspondem a 70% dos brasileiros mais pobres. De acordo com estudos baseados no censo de 2000, um rapaz branco de 18 anos tem, em média, 2,3 anos a mais de escolaridade do que um rapaz negro da mesma idade. O pai de um rapaz branco também tem 2,3 anos a mais de escolaridade do que o pai de um rapaz negro. Há sessenta anos, o avô de um rapaz branco tinha 2,4 anos a mais de escolaridade. Praticamente todo o resto mudou no país, mas a disparidade educacional entre a população negra e a branca persistiu imutável durante três gerações.

Os brasileiros gostam de se considerar uma sociedade multirracial, mas basta dar um passeio pelas favelas das cidades para que esse mito caia por terra. A maioria dos moradores tem pele escura, muito mais escura do que a maioria dos ricos que moram perto da praia ou nos subúrbios, e mais escura do que a maioria dos jovens que protestaram recentemente nas ruas. No último ano e meio fiz visitas a São Paulo e principalmente ao Rio, observando o processo de “pacificação” com o qual o governo tenta penetrar e restabelecer o controle, de maneira pacífica, nos territórios mais violentos da cidade, aqueles dominados pelos traficantes ou pelas milícias de policiais corruptos. Até 2008, quando começou o programa de pacificação, os traficantes detinham o controle de aproximadamente metade das favelas e a outra metade era controlada pelas milícias. Os dois grupos ainda dominam a maioria delas. O objetivo primordial do plano do governo do estado do Rio, chamado de Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), é expulsar esses dois grupos e substituí-los pelo governo do estado.

Hoje, dos 6,3 milhões de habitantes do Rio, 1,4 milhão mora nas favelas. São cerca de 630 favelas, contendo mais de mil “comunidades”. O governo do estado quer “pacificar” quarenta dessas favelas até o mês da Copa do Mundo no ano que vem — um tipo de “efeito de demonstração” que chamará a atenção dos visitantes. Desde que o programa começou, em 2008, trinta das maiores favelas foram pacificadas — ou seja, estão sob controle das forças policiais oficiais, não dos traficantes ou das milícias. No passado a polícia invadia favelas individuais, capturava ou matava os maiores traficantes e ia embora. Estes eram logo substituídos por outros traficantes, e assim a violência continuava. “A nova estratégia não é visar traficantes específicos. É tomar o território”, me contou um policial de alto escalão.

Sob o programa das UPP, unidades policiais de elite — e, em alguns casos, tropas do exército e até da marinha — invadem as favelas e ficam até três meses. Depois são substituídas pela polícia comum e por grupos de funcionários públicos da UPP. A UPP cria escolas e coleta de lixo, traz empresas públicas e privadas para fornecer serviços como eletricidade e televisão e distribui documentos dentro da legalidade, como certificados de vínculo empregatício e de residência. Nas áreas sob seu controle, a UPP fundou conselhos de segurança comunitários, que tentam mediar os conflitos entre os agressores locais antes que se espalhem. A mensagem é: o Estado veio para ficar. Até o momento, o programa recebeu críticas positivas, e foi um grande fator na reeleição de Sérgio Cabral como governador do estado em 2010, com apoio do PT.

Certa noite no Rio, Walter Mesquita, um fotógrafo de rua, me levou a um baile funk, uma festa organizada pelos traficantes na favela não pacificada do Arará. A cena era extraordinária: à meia-noite, os traficantes haviam isolado vários quarteirões, transformando a favela numa gigante boate a céu aberto. Em uma das pontas da rua havia uma enorme parede com dezenas de alto-falantes bombando músicas e histórias sobre assassinato de policiais e sexo com menores. Adolescentes andavam carregando metralhadoras AK-47; meninas pré-adolescentes inalavam drogas e dançavam. Em alguns cantos, cocaína era vendida em grandes sacos plásticos. Todo mundo dançava: as avós, as crianças, eu. A festa durou até as oito da manhã.

Embora tais festas estejam oficialmente proibidas nas favelas pacificadas por causa das inúmeras infrações à lei, desde violação do limite de barulho até exortações ao assassinato — até mesmo a música que toca é chamada de funk proibidão —, não se via nenhum funcionário do estado ou da polícia. As facções rivais eram uma ameaça maior do que esta última. As três facções que controlam grande parte do Rio permaneceram mais ou menos estáveis durante as duas últimas décadas: o Comando Vermelho, o Terceiro Comando e os Amigos dos Amigos. De acordo com um oficial superior da polícia, com quem conversei, existem, numa cidade com pouco mais de seis milhões de habitantes, de trinta a quarenta mil pessoas envolvidas com esses bandos.

No dia seguinte ao baile funk, sobrevoei o Rio num helicóptero da polícia. Deu uma volta sobre Ipanema, uma praia para abastados, e sobre a recém-pacificada favela da Rocinha. Perguntei se poderíamos sobrevoar a favela do Arará. O piloto apontou a favela ao longe e disse que não poderia voar diretamente sobre ela. Tinha medo de que derrubassem o helicóptero. Alguns anos atrás, os traficantes derrubaram um helicóptero da polícia com armas antiaéreas. Portanto, a polícia não pode entrar com segurança em grande parte do Rio, seja por terra ou pelo ar. Este é também o futuro de muitas megacidades de países em desenvolvimento, de Nairóbi a Caracas. Existe uma divisão de poder de facto entre os órgãos legítimos do estado e os bandos, as milícias. Muitas pessoas ainda morrerão até que os exatos contornos dessa divisão de poder sejam delineados.

Meu amigo Luiz Eduardo Soares me contou uma história sobre o poder nas favelas. Ele é antropólogo e foi Secretário de Segurança Pública do Rio em 2003. Também é o autor do livro Elite da Tropa, um estudo da brutalidade e da corrupção da polícia e que depois se tornou o filme mais popular da história do cinema brasileiro. Fez inimigos entre os políticos e os policiais corruptos. Em 2000, agentes da segurança descobriram planos detalhados para matar Luiz e suas filhas — havia anotações sobre quando e onde estudavam, a que horas. Por trás do plano estavam policiais corruptos. Luiz precisou fugir com a família, primeiro para os Estados Unidos e depois, ao retornar, para o sul do país.

Certa noite, Luiz recebeu um telefonema de um homem chamado Lulu, um dos maiores traficantes do Rio. Lulu estava velho demais para o tráfico — já tinha chegado na casa dos 30. Queria se entregar, desistir do tráfico e viver para ver os filhos crescerem.

Luiz disse que, se Lulu viesse ao seu encontro, teria de prendê-lo. Depois seria despachado para uma prisão como o Carandiru, onde em 1992, depois de uma rebelião, a polícia entrou e abriu fogo sobre os detentos, massacrando 111 deles. Luiz desejou o melhor para Lulu, mas a situação não parecia muito boa. Ele era procurado tanto pela polícia quanto pelas gangues rivais.

Um pouco depois, Luiz estava no nordeste, num templo tradicional que celebra os antigos deuses que estavam aqui antes da chegada dos portugueses. Estava rezando quando sentiu alguém tocando seu ombro. Virou e viu Lulu sorrindo para ele.

“O que você está fazendo aqui?”, perguntou.

“Vim ver a minha mãe. Eu fugi.”

Logo depois desse encontro, a polícia do Rio encontrou Lulu. Ele não foi muito esperto: o primeiro lugar que um homem procurado visita é a casa da mãe. Homens apareceram de jipe e, sem prendê-lo, levaram-no de volta para o Rio, para a delegacia da sua favela.

De acordo com Luiz, o chefe da polícia local pediu a Lulu: “Queremos você de volta. As coisas viraram um inferno depois que você foi embora. Era você que mantinha a paz entre as gangues. Além disso, preciso de dinheiro para a minha campanha. Você precisa voltar ao trabalho, senão vai ser pior para você.”

E então Lulu voltou ao trabalho, vendendo cocaína e metanfetamina para os jovens ricos das boates de Copacabana e Ipanema. Mas ele havia tentado se desligar do tráfico; os garotos dos pontos de venda de droga não confiavam nele, não o respeitavam como antes. Ele não conseguia mais ganhar os 300 mil reais semanais exigidos pela polícia.

Então, um dia, vieram novamente pegar Lulu. Luiz me contou que os policiais o sentaram numa pedra, numa área aberta da favela e, com todo mundo olhando, mataram Lulu com um tiro na cabeça. Ele só era útil para a polícia quando tinha poder para dividir. Sem poder, era um homem morto.

Mário Sérgio Duarte é o alto oficial da polícia que liderou a invasão do Complexo do Alemão, uma das maiores e mais perigosas favelas do Rio. Em 2010, numa operação que durou oito dias, a polícia encontrou mais de quinhentas armas: 106 carabinas, lança mísseis, bazucas e 39 nove metralhadoras Browning antiaéreas.

“A pacificação começou comigo”, ele me contou no bar na cobertura do meu hotel. A mãe de Duarte era costureira; seu pai foi assassinado em 1972 devido a uma “disputa pessoal”. Duarte estudou Física na faculdade, mas escolheu ser policial. A mensagem em sua camiseta diz: “Listen as your day unfolds” (Fique atento ao desenrolar do dia.)

Na década de 1980, a cocaína começou a entrar nas favelas vindo da Colômbia e da Bolívia, junto com as AK-47 do leste europeu, que vinham do Paraguai. Uma carabina como a AK-47 ou uma M-15 custa agora entre 15 e 20 mil reais (algo entre 7.500 e 10 mil dólares). Os traficantes agora têm lança-mísseis, diz Duarte, “armas melhores que as da polícia”, que têm revólveres .38 e 9 milímetros. Todo ano, mais ou menos cinquenta policiais e cerca de 1.500 traficantes são mortos. No ano passado, mais de cem policiais foram assassinados por traficantes em São Paulo, e a polícia prometeu matar cinco “bandidos” para cada policial morto.

Duarte conta em uma única favela, a Rocinha, o tráfico chega a movimentar um milhão de reais por semana. Mas não são só as drogas. Os traficantes comandam uma economia paralela com TV a cabo pirata, telefones e mototáxis, além de ter os próprios sistemas de justiça.

“Não temos esperança de acabar com as drogas, só com a violência relacionada a elas”, diz Duarte. Hoje em dia as drogas são o ecstasy, a fenciclidina (PCP ou “pó de anjo”) e o crack, oriundos da Europa. Ele aponta a Santa Marta como exemplo de favela pacificada onde ainda existe venda de drogas, mas onde não há armas visíveis, não há um “rei do pedaço”.

O governo do estado aumentou o número de policiais armados no Rio de 36 mil para 42 mil, e seu objetivo é chegar a 50 mil. (Outros 10 mil são “policiais civis”, que não usam uniformes e não carregam armas oficiais.) O salário inicial é de 1.500 reais por mês e, em seis anos, pode chegar a 1.900 reais. Um policial lotado em uma área pacífica ganha mais quinhentos por mês para ajudar a combater a tentação de receber propina ou se juntar a um dos grupos violentos — as milícias — administradas por policiais corruptos.

Duarte diz que as milícias são “o subproduto podre da ordem oficial”. Estima que existam cerca de dois mil policiais envolvidos com milícias, junto com bombeiros e ex-soldados. Elas começaram…

“… em 2006!”, interrompe um garçom da Rocinha que estava ouvindo nossa conversa enquanto servia as bebidas.

As milícias não permitem a venda de drogas pelos traficantes, mas ganham dinheiro fornecendo proteção, TV a cabo, transporte e agiotagem. “Um traficante é o inferno, e a milícia é o purgatório”, diz Duarte. As milícias criam regras não oficiais para as comunidades, quase sempre obedecidas: ninguém pode sair de casa depois de determinado horário; se você estuprar mulheres, será assassinado em uma cerimônia pública. Ninguém pode ligar o rádio muito alto. A punição para as infrações é muitas vezes a tortura ou a pena de morte. As milícias vendem armas para os traficantes, além de drogas quando necessário, e empregam como guardas ex-traficantes expulsos dos bandos.

Os inimigos das milícias são as forças de operações especiais, o Bope, criado durante a ditadura para combater marxistas, mas depois treinado novamente para a pacificação. (A sigla Bope significa Batalhão de Operações Policiais Especiais, e são eles que aparecem em Elite da Tropa, o livro de Soares). Duarte, que liderou o Bope durante algum tempo, precisou tentar convencer o governo de que havia um tipo diferente de conflito no Rio: “não ético, não religioso, não marxista”. Ele gosta de citar Platão e Hegel em conversas informais. Quando mencionei depois a um sargento do Bope que eu tinha conhecido Duarte, ele comentou, com um riso zombeteiro: “Ah, o filósofo!”

Fui, com Marina, conhecer alguns “bandidos” na subdivisão do Parque União, no complexo da favela da Maré, perto do porto. Dois deles nos encontraram num bar a céu aberto, um ex-traficante de vinte e um anos e um jovem bonito da mesma idade, que canta e apresenta as atrações em uma boate. O traficante tem um nome tatuado no antebraço direito: “Emilly”. “Minha filha”, explica. Emilly tem sete anos e o pai não quer que ela vá para o baile funk, que é onde ele pega mulheres. “Quero que minha filha escape das estatísticas.”

Quando era ativo no bando, ele matou pessoas em tiroteios e não sente remorso. “Nessas horas eu não posso pensar que ele pode ser um pai como eu. Prefiro que a mãe do cara chore no túmulo dele do que a minha chore no meu.” Também realiza assaltos nas partes mais ricas do Rio. Depois dos assaltos, ele e o bando se apossam de vários carros até voltarem com segurança para a favela. Ele nunca rouba na favela. Só viciados em crack fazem isso, o que explica por que me sinto muito mais seguro ali do que na noite anterior, quando estava na praia de Ipanema.

Quando o pessoal da favela quer fazer um baile, as pessoas roubam dois ônibus do pátio do outro lado da Avenida Brasil para bloquear a rua. No baile, talvez fiquem sabendo que alguém vai ser assassinado no fim da noite — alguém que tenha ofendido o “dono da favela”, o traficante-mor.

Os dois jovens insistem em nos acompanhar até a nossa van na rua. Em determinado ponto, há três sinalizadores metálicos brancos fixados na rua, o que a transforma efetivamente em uma zona de pedestres. “Isso aí é pro Bope”, explica o traficante. Os carros da polícia terão uma surpresa quando tentarem invadir.

A favela deles será pacificada no fim daquela semana, dizem. Não é que jovens traficantes não tenham outras alternativas de emprego, como, por exemplo, na área de turismo do Rio, que está em expansão. É que não teriam o mesmo nível de vida: “uma corrente de ouro da largura do braço de um bebê”.

O Bope conseguiu invadir o complexo da Maré — mas não como parte da UPP. Durante os protestos de junho, ladrões da favela começaram a saquear lojas na Avenida Brasil. O Bope foi chamado e um sargento que perseguiu os ladrões até dentro da favela foi morto com um tiro. Seus colegas ficaram enfurecidos. Quando a poeira assentou, oito moradores da favela — alguns deles jovens traficantes, iguais ao que entrevistei recentemente, e também pessoas inocentes — estavam mortos.

O que está acontecendo nas favelas do Rio é menos uma pacificação do que uma legalização. A ditadura que governou o país de 1964 a 1985 foi derrubada depois de muitos anos e grandes sacrifícios. Todo mundo que não era ligado aos militares foi vitimado. As pessoas corriam para gastar o que ganhavam assim que recebiam o dinheiro, porque à tarde aquilo já não valia quase nada. Quando veio a democracia, todos — os ricos do Leblon e os pobres da Rocinha — achavam que deveriam se beneficiar dela e, no Brasil, durante algum tempo, a maioria das pessoas conseguiu.

Mas nas favelas não existe democracia. Os traficantes continuaram com sua ditadura; as pessoas da favela ainda tinham uma grande dificuldade de acesso aos tribunais ou de votar. A pacificação é uma tentativa de interromper esse processo ditatorial. Para os operários de construção e mulheres que vendem feijoada na favela, é a queda final da ditadura.

Nos últimos vinte anos, os traficantes assumiram um controle informal de grande parte da vida nas favelas, com destaque para a música, a alma cultural do Brasil. “Nosso desafio é o que vai acontecer depois da pacificação”, disse Ricardo Henriques que, até o ano passado, era o chefe do Instituto Pereira Passos, o think thank de planejamento urbano do governo que formula as políticas da UPP.

De acordo com a visão otimista de Henriques, a tomada das favelas ocorrerá em três fases. A primeira consiste na polícia entrando e negando aos traficantes a habilidade de fazer o que quiserem, seja legal ou culturalmente. A segunda “é meio chata, é a polícia no lugar.” A terceira consiste no estado substituindo a cultura proibida por uma cultura sancionada oficialmente, ou pelo menos uma cultura que não glorifique o estupro e o assassinato. “É preciso fazer isso de um jeito criativo”, explicou Henriques. “Sem armas. É menos erótico, mas mais criativo. A música não é o proibidão.”

Durante décadas, as favelas existiram num sistema paralelo ao restante do Brasil. “A ideia do estado é ficar lá durante um bom tempo”, disse Henriques. Ele quer reduzir a desigualdade entre a favela e o restante da cidade. “Nosso desafio é integrar essas áreas à cidade.”

Se essa visão esquemática da pacificação funcionar — e os constantes protestos pelo país afora colocam isso em dúvida —, o que virá depois dela? Certa noite fui para um clube de jazz na favela de Tavares Bastos, pacificada há um ano, bem embaixo do quartel general do Bope. As salas do clube estavam repletas de corpos suados e fumaça de maconha. Se o Bope quisesse ir atrás de drogas, não precisaria ir muito longe. Mas eles jamais aparecerão ali, porque aquelas pessoas vêm das áreas brancas e ricas de Ipanema e Leblon. As únicas pessoas negras que enxerguei eram o saxofonista e o meu guia, o fotógrafo de rua, que morava ali.

“As pessoas das favelas não conseguem se imaginar aqui dentro”, disse o fotógrafo. A música era bebop e bossa nova, uma ideia americana do jazz que os brasileiros ouvem. Nada de samba ali, muito menos funk.

O clube abriu há cinco anos. Uma economista que trabalha num banco, bonita e branca, trajando um vestido caro, me disse que já estava entediada. “Dois anos atrás as pessoas eram mais interessantes. Agora só encontro aqui as pessoas que sempre vejo perto da praia.”

Custa 50 reais para entrar; uma cerveja custa 15 reais. A caminho do clube, passei por alguns pequenos bares. Em alguns deles, os vizinhos bebiam cervejas que custavam um terço desse preço. Em um deles, casais gordinhos e felizes dançavam juntinho ao som de samba. Todas as luzes nas casas da favela estavam apagadas; tinha passado da meia-noite. Mas os clientes brancos, a caminho do clube de jazz, eram estridentes, riam alto, estimulados pela emoção do passeio àquele destino clandestino.

Na Tavares Bastos e em favelas como a Cantagalo, com seu fácil acesso à rica zona sul do Rio e maior segurança depois da pacificação, os moradores estão sendo forçados a abandonar o local. Não pela violência, com a qual conseguem conviver, mas pelos aluguéis caros que fazem com que seja impossível continuar morando ali. O seu direito de viver ali era protegido, desde que fosse ilegal. Depois da pacificação, a maior ameaça aos antigos moradores das favelas do Rio não serão os traficantes, mas os corretores de imóveis.

 

Suketu Mehta, nascido na Índia e radicado nos Estados Unidos, é escritor e jornalista. É autor de Bombaim: Cidade Máxima, livro finalista do Pulitzer em 2005.

 

Publicado originalmente como In the violent favelas of Brazil no The New York Review of Books, em 11 de julho de 2013.

Tradução de Juliana Lemos

 

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