Porque é preciso dizer “sim” ou “não” – por Paulo Roberto Pires

Porque é preciso dizer “sim” ou “não”
por Paulo Roberto Pires

Janet Malcolm

Janet Malcolm, jornalista e biógrafa norte-americana

O ruim nessa polêmica das biografias é que uma real e complexa discussão sobre os limites de um biógrafo mascara uma campanha estreita pela manutenção de privilégios. O que está em jogo, não custa lembrar, é a defesa de provisões da lei que concedem a uma figura pública ou aos seus herdeiros o poder de veto prévio à publicação de qualquer relato biográfico sobre suas vidas que, de acordo com critérios personalíssimos, possam violar sua “privacidade”.

O bom é que deixa a nu um já arraigado hábito na nossa vida intelectual: o horror ao enfrentamento. No calor dos debates, há os que se acham simplesmente inquestionáveis. Os que desqualificam os interlocutores contundentes como “simplificadores”. Os que invocam razões filosóficas para não terem que optar entre “sim” e “não”. Os que desqualificam a polêmica e seus tons altissonantes como uma forma, legítima que de fato é, de discussão pública.

 Neste momento todos esses personagens – ou personagens resultantes do cruzamento de muitos deles – estão unidos em fazer vista grossa a um fato simples: de que é preciso ser inequívoca e diretamente “contra” ou “a favor” da lei que aí está. Nessa hora, o “em termos” e o “talvez” são, na melhor das hipóteses, manobras diversionistas. Na pior, má consciência.

Como debatedores, os integrantes e defensores do Procure Saber são bons jogadores de pingue-pongue: tome de “por um lado”, “por outro lado”, “por um lado”, “por outro lado”. Entre uma jogada e outra, praguejam contra injustiças pretéritas, dão faniquitos diante de divergência presente e pensam no futuro com a mão sobre o catecismo do “citai-vos uns aos outros”. Pois faz parte da cordialidade – alguém disse compadrio? – invocar programaticamente os aliados e não nomear os interlocutores que a eles se opõem numa tentativa de, talvez, sequer reconhecer sua existência.

Mas numa coisa eles estão certos: há muito, mas muito mesmo a reclamar da imprensa. E a reclamação deveria começar pelo fato de nós, jornalistas, termos errado feio ao ser há muito tempo condescendentes com os protagonistas de toda essa discussão. O que acontece é uma reação pavloviana: hoje, a mão que afagava espeta. E assim como biógrafo bom é biógrafo autorizado, jornalista bom passa a ser jornalista a favor.

A cada entrevista, a cada coluna ou artigo, a imprensa, agora entidade maligna, é responsabilizada pela malversação da discussão. Biografados ou herdeiros em potencial se sentem vítimas de uma “campanha”, pois editores, jornalistas (biógrafos ou não) e escritores decidiram apontar com todas as letras o autoritarismo (é esse o nome mesmo, não é uma hipérbole) do Procure Saber. Tudo corporativismo, desdenham eles, citando uns aos outros uma vez mais.

Sei que essa turma considera colonizadas as menções a outros países – a autorreferência deles não tem limites. Mesmo assim, intelectuais que são, deveriam aproveitar e procurar saber quem é Janet Malcolm, com quem podem simpatizar, pelo menos a princípio, por uma célebre frase: “qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável”. Muitos jornalistas, aliás, detestam-na por esse exagero na primeira linha de O jornalista e o assassino. Mas boa parte do que ela escreveu nesse e em diversos outros livros discute, sem retórica oca ou melindres, o que poderia estar se discutindo aqui.  

Pela violência da afirmação inicial, percebe-se o que anima a jornalista que, hoje, aos 79 anos de idade e 50 de profissão, continua sendo mais repórter do que amiga de seus personagens. Obsessiva com detalhes no cruzamento das informações, temida pela capacidade de descrever com minúcias um ambiente ou uma conversa, Janet Malcolm é a antípoda perfeita de uma Kitty Kelley – esta sim uma biógrafa fofoqueira e sensacionalista, cujo perfil o Procure Saber emula ao condenar a princípio o jornalista que se ocupa da vida alheia.

O jornalista e o assassino (1990), um clássico na discussão da ética jornalística, parte do caso surpreendente de Jeffrey MacDonald, médico condenado por matar a mulher e duas filhas, e do processo que ele moveu contra Joe McGinnis, jornalista que estava escrevendo um livro autorizado sobre sua história. MacDonald ganhou o processo e, mesmo em cana, levou mais de 300 mil dólares. O crime do biógrafo: ter tirado conclusões próprias sobre o personagem, que o acusou de trair sua confiança para condená-lo.

Malcolm não se esquiva dos espinhos. Pelo contrário. Afirma ser inseparável da relação entrevistado-entrevistador uma espécie de traição do primeiro por este último. Mas, conforme ela mesma lembra, “jornalistas que engolem sem mastigar a história da personagem e a publicam não são jornalistas, e sim publicistas”. Não há, afirma, solução possível para o impasse, mas é um bom começo que as partes aceitem, sem hiprocrisia, as dissimetrias da relação. E, quando for o quase, ajustem as arestas de parte a parte.

E ela sabe bem do que está falando: anos antes fora processada por Jeffrey Masson, um dos personagens que, no livro Nos arquivos de Freud, se digladiavam pela gestão dos controladíssimos papéis deixados pelo criador da psicanálise. Masson acusou Malcolm de deturpar suas declarações. Pediu 11 milhões de dólares de indenização, brigou por dez anos nos tribunais. E perdeu.

A turma também poderia procurar saber da existência de A mulher calada. Como diz o subtítulo, trata de “Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia”. Publicado originalmente em 1993 como uma daquelas enormes reportagens da New Yorker, o livro revira cinco biografias da poeta americana, que se matou aos 30 para entrar no reverenciado panteão das escritoras-trágicas-suicidas e, no mesmo ato, enviar para o inferno o marido, também poeta, transformado em vilão nas leituras “feministas” que transformaram a autora de Ariel numa santa padroeira.

A reportagem é padrão Malcolm: extensa, cheia de detalhes e – alô moçada! – discute até onde um biógrafo pode ir quando, admite a autora, o que se quer saber mesmo é o chamado segredo inconfessável, a tal da intimidade inviolável. O assunto é escarafunchado de todos os pontos de vista, mas o que aqui interessa é o desfecho.

Hughes, poeta laureado da Inglaterra, jamais se pronunciou sobre qualquer das biografias. Sobre a mulher, publicou um dilacerante livro de poemas – Cartas de aniversário – meses antes de morrer, em 1998. Jamais contestou os biógrafos. Mas enviou a Malcolm uma carta em que apontava um equívoco: no livro ela afirma que Hughes comprou uma casa com o dinheiro dos direitos autorais de um livro, A redoma de vidro, que a mãe de Sylvia não queria ver publicado nos Estados Unidos e que terminou saindo por razões puramente estratégicas na gestão do espólio. Segue-se uma troca de cartas cordial entre Malcolm e Hughes e um telefonema. Finalmente, a certeza: Malcolm, a repórter minuciosa, errou. Falhou ao decifrar a letra da mãe de Sylvia, que numa carta dizia que o genro “jamais” (a tal palavra incompreensível) comprou tal casa.

As discussões duras de Janet Malcolm jamais existiriam se os seus entrevistados tivessem o direito legal de ler previamente os livros em que são personagens. Seus livros, aliás, não existiriam sem as histórias que os geraram, pois tanto o livro do jornalista sobre o assassino e as muitas biografias de Sylvia Plath são produtos de liberdade total – a mesma que assegurou as devidas reclamações legais e as eventuais punições.

Vamos, portanto, recuperar o valor da veemência. Sejamos, como eu, CONTRA a lei que mantém a autorização prévia para biografias ou A FAVOR de sua manutenção. Que os últimos sejam chamados de “censores” e os primeiros de “corporativistas” ou “dinheiristas é puro efeito colateral de uma discussão acalorada na qual “privacidade” é ideia muito invocada e pouco discutida para valer, posto que misturada inaceitavelmente com compensações financeiras e coerções legais.

A mim, pelo menos, pouco se me dá as ofensas. Talvez porque tenho certeza de que não estou usando de má consciência para defender uma lei indefensável, para dar aval intelectual a cultura de privilégios em nome do Rei.

5 respostas para Porque é preciso dizer “sim” ou “não” – por Paulo Roberto Pires

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