A potência estética da nostalgia

A potência estética da nostalgia 

André Antônio Barbosa 

 

Podemos sentir nostalgia mesmo permanecendo em
nosso próprio país, junto às pessoas que nos são próximas.
Apesar de um lar feliz, de uma família feliz, um homem
pode sofrer de nostalgia, simplesmente porque sente que
sua alma está limitada, que não pode se expandir do
jeito que ele gostaria.

Andrei Tarkóvski

 

 

UM OUTRO ESTÉTICO E POLÍTICO 

Historicamente, a palavra nostalgia tem tido uma função bastante definida nos escritos e reflexões críticos sobre arte e política. É aquele sentimento que se deve evitar por ser o propulsor de soluções (estéticas ou militantes) fáceis, acríti­cas e, em última análise, conservadoras. Ele enseja uma divi­são muito clara em oposição à “melancolia”, como aqueles quadros divididos ao meio que ensinam didaticamente a diferença entre “modernismo” e “pós-modernismo”. Assim, do lado de “nostalgia”, podemos encontrar termos como “idealização” e “ingenuidade”. Já do outro lado, ao redor de “melancolia”, podemos encontrar “memória”, “histó­ria” e “crítica”. A melancolia, sobretudo no discurso estético modernista, continua uma tradição que se pode remontar a Aristóteles: é o sentimento dos gênios sofisticados que resistem dolorosamente à banalidade da ordem corrente. 

E é preciso cuidar para que as notas tristes e violentas da melancolia não sejam em absoluto confundidas com as complacências da nostalgia. A tristeza de uma apontaria de alguma forma para a alegria redimida de um futuro radi­calmente novo, como a estrela humanista de Melancholia I (1514), de Albrecht Dürer; a da outra, ao contrário, apenas para uma espécie de masturbação inútil e infrutífera, que se restringe ao prazer motivado por um passado que não pode mais voltar. 

No entanto, talvez seja o momento — sobretudo com o fim da metanarrativa modernista – de apagar em alguns pontos a linha que divide o quadro sem precisar destruí-lo, sem “jogar fora o bebê com a água do banho”. Há nostalgias que, por car­regarem em si a radicalidade irredutível da melancolia, são críticas, assim como certos tipos de melancolia são menos interessantes e em muitos escritos são chamados de “nos­talgia” apenas pela comodidade de manter o quadro intacto. Mas, quando os termos estão mais livres, o quadro perde sua bidimensionalidade mecânica e os termos ganham uma materialidade mais complexa. É preciso não ignorá-la. 

Em muitas reflexões, o sentimento de nostalgia se resume, porém, a uma dimensão de “outro” estético e polí­tico que apenas reforça, por contraste, o brilho dos cami­nhos “certos” e desejáveis. É preciso tentar matizar esse uso demasiadamente confortável de uma noção cujas nuances precisam ser mais bem conhecidas. 

 

RESGATANDO A NOSTALGIA 

O nostálgico de fato deseja, como se costuma pensar, mate­rializar seu “paraíso perdido” no presente? Autoras como Svetlana Boym, Linda Hutcheon e Pam Cook propõem que a própria noção de nostalgia só se tornou possível, na modernidade, porque o nostálgico, tragicamente, não tem tal ilusão. Porque ele, mais do que qualquer outro, sabe e sente que o que ficou para trás nunca voltará.[1] A nostalgia não é uma tentativa ou um desejo de fazer com que deter­minado passado retorne ao presente; na verdade, ela não quer transformar o presente. Simplesmente porque a nos­talgia é, antes de tudo, uma recusa radical do presente, uma fuga desesperada e uma intuição de que a preciosidade do passado só poderá ser mantida se ele permanecer exata­mente o que é: um passado puro, sem se corromper com a “mediocridade” do presente. O nostálgico não quer mudar o presente para que ele fique igual ao passado, mas se per­der nesse passado como em um sonho – e, no limite, nunca mais voltar. No entanto, essa atitude perante o mundo, essa visão da vida que, em última análise, sabota a própria vida presente, foi por muito tempo considerada conservadora no discurso modernista. 

Apesar disso, justamente ao longo da formação do dis­curso utópico e radical da modernidade estética, cuja pró­pria melancolia tinha um futuro outro no horizonte e nunca se deixava sujar pelo “sentimentalismo burguês” da nostal­gia, que cismava em olhar para trás, outro tipo de tradição melancólica caminhava e foi se consolidando paralelamente. Trata-se de uma melancolia mais atroz, mais pessimista, mais sombria, cuja única radicalidade possível é uma espécie de recusa niilista do presente, o desejo incontornável de não fazer parte do aqui e agora, e cujo único horizonte, portanto, é qualquer coisa como um brilho inatingível que havia ficado esquecido em longínquos e remotos lençóis do passado. Tal tradição não se constituiu como uma “escola” artística, mas como uma espécie de hereditariedade (não no sentido bioló­gico, mas no sentido deleuziano que, ademais, vê a história das imagens como uma história natural[2]) que percorre várias “escolas” (no sentido da historiografia mais tradicional da arte), e cujos nós fortes já se podem ver no Romantismo mal du siècle e, a partir daí, no Simbolismo e no Decadentismo, passando por certas regiões do Surrealismo e chegando final­mente ao trabalho de artistas contemporâneos. 

 

A NOSTALGIA NA MODERNIDADE ESTÉTICA 

Esse segundo tipo de melancolia nunca teve medo do outro-nostalgia. Seus artistas, pelo contrário, se compra­ziam na maldição daquela hereditariedade, consideran­do-a um fardo e ao mesmo tempo um privilégio, o acesso a uma “sabedoria enigmática”, como falou Benjamin.[3]Para eles, muitas vezes reunidos em grupos marginais com ares de culto ateu a Satã, era muito mais radical e revolucioná­rio refugiar-se em sonhos inarticuláveis, em sinais alegóri­cos mágicos e em saudades inexplicáveis do que articular militâncias e pensar em ações práticas com vistas ao futuro. Preferiam chegar ao máximo do paradoxo que é acreditar numa espécie de misticismo exatamente na época em que não se permite a existência de nenhum: a moderna. Um dos primeiros desses grupos em Paris, encabeçado pelo poeta romântico Gérard de Nerval e conhecido como o círculo boêmio da rue du Doyenné, articulou a importância da noção de nostalgia para os que veem a vida de uma pers­pectiva que considera intolerável o convívio nas socieda­des industriais modernas. Tal articulação se deu sobretudo a partir da reabilitação de um pintor rococó do século 18, Antoine Watteau, até então considerado fútil pelos revo­lucionários. Na redescoberta da luz etérea, crepuscular e melancólica das imagens idílicas e bucólicas de Watteau e da beleza de suas cores pastel, em que, segundo Norbert Elias, “a natureza torna-se uma espécie de cenário nostálgico”, esses dândis obstinados[4] puderam ensejar uma “nostalgia lírica”, ao cultuar “a representação da galante alegria festiva, a expressão da elegância desaparecida, da fortuna inexpri­mível e nostálgica”. Elias os descreve: 

Era um grupo de jovens artistas e escritores, românticos e con­servadores, que procurava uma contraimagem, um sonho, para compensar a rotina cinzenta e sóbria da sociedade burguesa. Acabaram achando o que procuravam caindo, talvez sem pensar, em uma restauração política, em um passado, particularmente na França pré-revolucionária do século 18. Sonhavam com a alegria, com a beleza dos trajes que as pessoas então vestiam, com a graça e a elegância de suas festas, que tentavam copiar. O desprezo pelo rococó cedeu lugar à admiração.[5] 

A ambiência desoladora em que viviam artistas como Nerval – que cometeu suicídio em 1855 – parece ligar num mesmo contínuo melancolia e nostalgia, embora a segunda claramente apareça como uma espécie de consequência lógica da primeira. A priori são dois sentimentos diferen­tes, pois o desespero da melancolia não necessariamente diz respeito a uma relação com o passado. É certo que a nostalgia pode funcionar como trabalho de luto para a cura dos perigos da melancolia. Ela sem dúvida pode fornecer o cimento para se reconstruir o presente e voltar a pisar nele com mais confiança e esperança, dando um sentido frágil (e até mesmo alguma glória) a uma trajetória que, na verdade, é irrevogavelmente arbitrária. No entanto, na tra­dição nostálgica crítica aqui referida, que vem minando a modernidade estética até hoje e tem em Nerval um de seus primeiros representantes, o fascínio pelo passado não serve para acalmar e apaziguar. Pelo contrário, ele nunca esquece o desespero inescapável do presente. O passado fascina pela própria impossibilidade de seu devir atual. O que se pro­cura nesse passado não é um modelo que se possa “aplicar” ao presente. 

Pode-se assim, por um lado, usar a palavra nostalgia para falar, por exemplo, dos norte-americanos que que­rem de volta os “bons tempos” da política da Guerra Fria em face das atuais ameaças terroristas. Eles querem que o presente seja igual a um passado específico. Esse passado, visto como coerente e cheio de sentido, seria a solução milagrosa para os desconcertantes problemas de hoje. Mas também podemos usar a palavra para falar dos que ques­tionam o próprio sentido de viver no pacato presente e dizem ser preciso voltar-se para um passado que estava profundamente enterrado e esquecido, como alguém se volta obsessivamente para um mistério cuja resposta é impossível encontrar – não, talvez, sem riscos irreversíveis para o próprio eu atual (como tragicamente descobriram Nerval e tantos outros depois dele). Esse segundo tipo de uso costuma ser deixado de lado. É preciso associar o con­servadorismo apenas ao primeiro (quando normalmente ele é, de maneira simplista, generalizado para todo e qual­quer tipo de nostalgia). 

No romance que ficou conhecido como o breviário da decadência, Às avessas (1884), Joris-Karl Huysmans fala sobre a tradição melancólica que aqui interessa, a melanco­lia atroz que não tem medo do outro-nostalgia: 

Com efeito, quando a época em que o homem de talento vê-se obrigado a viver é insípida e estúpida, ao artista, mau grado seu, assedia a nostalgia de um outro século. […] Confusos dese­jos de migração aparecem, os quais se revelam na reflexão e no estudo. Os instintos, as sensações, os pendores legados pela hereditariedade despertam, determinam-se, impõem-se com imperiosa firmeza. Vêm-lhe recordações de seres e de coisas que não conheceu pessoalmente, e chega o momento em que se evade da penitenciária do seu século e vagueia, com toda liber­dade, numa outra época com a qual, por via de uma derradeira ilusão, parece-lhe estar mais de acordo. Nalguns, é o retorno às épocas pretéritas, às civilizações desaparecidas, aos tempos mortos; em outros, é um impulso rumo ao fantástico e ao sonho, é uma visão mais ou menos intensa de um tempo por nascer cuja imagem reproduz, sem que ele o saiba, por um efeito de atavismo, a de épocas findas.[6] 

 

FUGA DO PRESENTE 

Existe, ao longo da modernidade estética e até hoje, uma tradição uma transmissão de energias, uma hereditarie­dade cultural – desesperadamente melancólica e que tem, nos trabalhos específicos de alguns artistas, a nostalgia como uma de suas características-chave. Esse tipo de nostalgia não está vinculado ao conservadorismo simplista ao qual de maneira recorrente a palavra é associada, embora existam, sim, as nostalgias menos interessantes, com as quais é pre­ciso ter cuidado em termos estéticos e políticos. 

Dois aspectos desse tipo mais instigante de nostalgia (que, exatamente por ser mais instigante, o discurso crítico se satisfaz em chamar, de maneira um pouco cômoda, de “melancolia”) podem ser destacados. O primeiro: a recusa radical do presente. Mas o que é essa recusa, essa fuga do pre­sente? Pode-se aqui tentar compreendê-la de maneira mais profunda e matizada recorrendo-se aos dois paradigmas da subjetividade que Gilles Deleuze busca em Henri Bergson para classificar as diferenças de natureza entre dois tipos de imagem cinematográfica. 

Deleuze afirma que o término da Segunda Guerra Mun­dial é uma situação determinante para o cinema. É aí que ele se torna capaz de conjurar, de maneira forte, um tipo novo de imagem, que difere profundamente – em natu­reza, e não apenas em grau – do tipo precedente. Trata-se não mais da imagem-movimento, mas da imagem-tempo. E, o mais importante: ela enseja um outro, um novo, tipo de subjetividade. Talvez o mais notável correlato dessa imagem seja, justamente, a incapacidade dos sujeitos que se relacionam com ela de agir ou permanecer no atual. Deleuze erige quase à qualidade de paradigma a atitude e a frase da heroína de Europa 51 (de Rossellini) diante de uma fábrica: “Pensei estar vendo condenados”. Deleuze deixa claro que o filme não propõe a prisão como simples “metáfora” da fábrica capitalista; isso seria muito fácil, seria estar ainda nos circuitos lineares da imagem-movimento. 

Os condenados são, antes, uma espécie de alucinação oní­rica quase inexplicável em termos racionais, uma descri­ção flutuante, uma lembrança involuntária, uma imagem virtual que revela outras camadas mais longínquas, outros lençóis de passado habitualmente escondidos, outras ida­des que se ligam à aparentemente simples ponta do pre­sente (à “ponta do iceberg”) que é aquela simples fábrica. Segundo Deleuze, em meio às ruínas da guerra, o circuito habitual da ação, sensório-motor, se rompe. As seme­lhanças com a situação contemplativa do melancólico são patentes: as imagens deixam de ser orgânicas – relativas a uma reação que a inteligência consciente oferece através de movimentos – e passam a ser imagens (ópticas e sono­ras) puras. É possível relacionar-se com elas não através do movimento, mas através do tempo; não interessa mais como elas agem/reagem, mas como elas duram, como pode ser de fato inseparável o que de direito é irrelacionável: o caráter atual e o virtual das imagens. 

A imagem-movimento engendra um tipo específico de subjetividade: com ela, percebe-se, lembra-se e sente-se sobretudo para agir e para viver da melhor forma possível a vida cotidiana. É o hábito, é a vida sensata e para a frente, é o (re)agir dentro do mundo. É outra, porém, a perspectiva da imagem-tempo: a vida material se torna irrelevante em face da outra vida mais ampla, a espiritual. Deleuze diz que a 

situação puramente óptica e sonora (descrição) é uma imagem atual, mas que, em vez de se prolongar em movimento, enca­deia-se com uma imagem virtual e forma com ela um circuito. […] A subjetividade ganha então um novo sentido, que já não é motor ou material, mas temporal e espiritual: o que “se acres­centa” à matéria, e não mais o que a distende.[7] 

A recusa do presente, primeira característica definidora do nostálgico, pode ter como correlato não o conservado­rismo que quer transformar o presente tendo como modelo um passado específico, mas, pelo contrário, a radicalidade do abandono dos circuitos banais sensório-motores. Ora, querer modificar o presente à imagem do Éden perdido é ainda querer agir, é limitar o sonho nostálgico a uma fun­ção, a uma instrumentalidade ou aplicabilidade que per­tence aos limites da imagem-movimento. Deleuze é muito didático quanto a isso quando se refere ao flashback do cinema clássico. O flashback é menos um mergulho verda­deiro no passado do que uma simples interrupção momen­tânea do presente apenas para que se retorne a ele com mais munição para uma (re)ação eficaz. Eis o modelo: o perso­nagem se vê diante de um impasse; a imagem-lembrança atua como breve suspensão — o personagem se lembra de um detalhe importante, que havia passado despercebido, e repentinamente toda a situação faz sentido — apenas para que se volte ao presente para o momento do desenlace. O cinema moderno, porém, nunca precisou do flashback para acessar ao passado. Os condenados vistos na fábrica de Europa 51 não ajudam a heroína a tomar uma atitude e dar sentido ao presente. Não é um passado que aponta linearmente para um desenvolvimento fácil — o edifício da fábrica jamais tinha sido uma prisão —, é um passado muito mais profundo. 

A nostalgia da tradição estética aqui sublinhada não é uma espécie de flashback que permite uma mera volta mais efetiva à ação presente, mas uma recusa radical do presente em proveito de uma lembrança pura, de um pas­sado mais misterioso e profundo. Esse passado não pode mais voltar – mas, em primeiro lugar, não é isso que se almeja de fato. Essa nostalgia tem uma aliança essencial com a melancolia, a qual não acredita, absolutamente, em nenhuma possibilidade de solução ou cura para o presente. Para Guy Gauthier, a “nostalgia seria apenas uma variação da melancolia, em parte ligada ao luto (perda de alguém querido ou da pátria), em parte às aspirações insatisfeitas, à busca por sentido”[8]. É possível apenas sair da vida sensata e ativa do circuito sensório-motor e se perder — é verdade, com o risco-limite de desaparecer — nas virtualidades puras da matéria que dura. Esse tipo de recusa ao presente – e não a ingenuidade pacificadora ou o conservadorismo – é o que parece dar conta das experiências nostálgicas de gru­pos como o de Nerval. Se foi a Segunda Guerra o elemento intolerável que permitiu uma mudança na imagem cine­matográfica, mudança que a fez vagar por amplos circuitos, por camadas e lençóis de passados distantes, os trabalhos de artistas como Nerval mostram que a modernidade oci­dental já vinha sendo o campo intolerável onde certa tra­dição, tomada por uma melancolia atroz, vem recusando o presente sensório-motor e encontrando refúgio em sonhos com o passado, como bem descreveu Huysmans. 

 

EM BUSCA DA EXPERIÊNCIA PERDIDA 

Se o nostálgico recusa o presente, é também porque encon­tra no passado com o qual sonha algo melhor, mais interes­sante, preferível. É o segundo aspecto que se pode destacar aqui: o caráter atrativo do passado sonhado pelo nostálgico. É algo claro na descrição de Nerval dos “tempos felizes” de Watteau, por exemplo. Mas não é paradoxal, tomando como ponto de partida a nostalgia mais instigante e melan­cólica da tradição artística que aqui nos interessa, conside­rar o passado “melhor” e não tomá-lo como modelo para transformar o presente? Se é mais interessante, por que não repeti-lo, por que não imitá-lo, por que não ressusci­tá-lo materialmente no hoje? Essa parece ser a lógica das nostalgias de fato conservadoras, simplistas ou ingênuas, que em última análise não abandonam uma relação sen­sório-motora com o presente, e que justamente por isso podem “idealizar” de modo mais acrítico a imagem do pas­sado, o qual se torna cura paliativa ou frágil solução tem­porária. Mas para os nostálgicos desconsolados,[9] que não esquecem o presente como um tempo irremediavelmente destituído de sentido, o que significa essa sensação salva­dora de beatitude identificada por eles apenas em passados muito distantes? 

E se esses nostálgicos encontram no passado um caráter da possibilidade de experiência que o presente da modernidade é incapaz de lhes oferecer? Entenda-se aqui “experiência” (Erfahrung) no sentido em que Walter Benjamin a pensa, opondo-a a Erlebnis (que pode ter como tradução “vivência”). 

A modernidade é o reino da vivência. É a época da tem­poralidade acelerada, da alienação sem precedentes no trabalho produtivo, da informação como forma de comu­nicação privilegiada (já que não há mais paciência para a narração), da higienização e do recalque da morte (extre­mamente fortes no biopoder contemporâneo) e, final­mente, da centralidade da mercadoria em todos os aspectos da vida, transformando as qualidades incomensuráveis da existência em dados quantitativos prontos para integrar a engrenagem do lucro e do progresso. Nesse cenário, as pes­soas têm vivências, mas nunca experiências verdadeiras. 

É uma espécie de imposição absoluta do circuito sensó­rio-motor como norma social; é a ideia de uma sensatez e de um bom senso elevados ao patamar de sabedoria, como atesta a extravagante descrição de Huysmans: “Era, enfim, a imensa, a profunda, a incomensurável pulhice do financista e do novo-rico esplandecendo, qual um sol abjeto, sobre a cidade idólatra que ejaculava, de bruços, cânticos impuros ante o ímpio tabernáculo dos bancos!”[10]. Está muito longe o contexto social que, segundo Benjamin, possibilitava a verdadeira experiência.[11] Nele predominava a temporalidade lenta do trabalho manual, a autoridade de quem está prestes a morrer e tem algo a transmitir, a narração que não quer dar uma explicação definitiva às coisas, as estranhas histórias contadas por quem volta de uma longa viagem por lugares muito distantes (a tendên­cia da modernidade é diminuir a distância entre os lugares e padronizá-los através das leis do dinheiro). 

O próprio Benjamin já foi acusado de nostalgia por des­crever – ou lamentar – uma época em que a experiência era realmente possível. Mas ninguém menos ingênuo do que Benjamin: não há em seu pensamento qualquer ilusão de que uma época possa ser reproduzida no horizonte da modernidade ocidental. Ele nunca conclamou o retorno aos tempos idos, convicto de que as mudanças em nosso modo de vida e em nossa percepção sensória foram funda­mentais e são irreversíveis. O que se deve perguntar então é como reencontrar a experiência numa época em que “suas ações estão em baixa”. Foi exatamente esse questio­namento que levou Benjamin bem cedo a se interessar pela figura singular do melancólico — aquele para quem, deses­peradamente, não basta o progresso como narrativa da vida. Para ele, o dinheiro não é suficiente como finalidade última da existência. A configuração social da mercadoria é uma encenação arbitrária e sem sentido. De maneira insa­ciável, ele não tolera a sensatez do presente e não se satisfaz com a substituição da experiência pela vivência. 

 

SPLEEN E IDEAL 

Daí o fascínio de Benjamin por um melancólico por exce­lência na modernidade, Charles Baudelaire. Em seus ensaios sobre o poeta, Benjamin atenta para um para­doxo aparentemente insolúvel: por que Baudelaire é tão fiel à sua época e, no entanto, sua obra principal, As flores do mal, lança mão de uma forma estranha a essa moder­nidade, a poesia lírica? Benjamin identifica assim dois “polos” na estética baudelairiana: o spleen ou a melancolia atroz e, paradoxalmente, andando de mãos dadas com ela, a imagem de um ideal, embora distante e inalcan­çável. Baudelaire escreveu quatro poemas intitulados “Spleen”. Um deles parece, de maneira fiel ao título, resu­mir a situação desesperadora do melancólico sem saída no mundo moderno: 

Sou como um rei sombrio de um país chuvoso,
Rico, mas incapaz, moço e no entanto idoso,
Que, desprezando do vassalo a cortesia,
Entre seus cães e os outros bichos se entedia.
Nada o pode alegrar, nem caça, nem falcão,
Nem seu povo a morrer defronte do balcão.
Do jogral favorito a estrofe irreverente
Não mais desfranze o cenho deste cruel doente.
Em tumba se transforma o seu florido leito,
E as aias, que acham todo príncipe perfeito,
Não sabem mais que traje erótico vestir
Para fazer este esqueleto enfim sorrir.[12] 

No entanto, em outro desses poemas, sob o mesmo título de “Spleen”, uma faceta diversa desse melancólico perdido é revelada: 

Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.
Uma cômoda imensa atulhada de planos,
Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Guarda menos segredos que meu coração.
É uma pirâmide, um fantástico porão,
E jazigo não há que mais mortos possua. –
Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado
Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.[13] 

De modo notável, Baudelaire dá prosseguimento à tradi­ção dos nostálgicos melancólicos e modernos que aqui nos interessa. O sonho e o fascínio pelo passado são um corre­lato claro da sua cruel situação atual – são o ideal correlato do spleen –, mas nunca uma cura. Pelo contrário, esse pas­sado sedutor permanece infinitamente distante e nunca chegará de fato a nós. A leitura de Baudelaire por Benjamin deixa claro que tal passado jamais poderá pertencer à his­tória, à nossa corrompida e banal história, porque faz parte de uma espécie de “pré-história” mais fundamental, rica e misteriosa. No entanto, apenas aqueles que não toleram o presente podem atentar para essa pré-história, pois dela pre­cisam desesperadamente, como uma possibilidade remota de última salvação. O melancólico sabe que desse passado se alcançam imprestáveis migalhas, velozes ressonâncias ou reflexos, como relâmpagos, as Correspondances (categoria central, de acordo com Benjamin, da estética de Baudelaire): “As Correspondances são as datas da lembrança. Não são datas históricas e, sim, datas da pré-história.”[14] Os tempos mais feli­zes que o nostálgico lamenta e, como ele próprio sabe, nunca possuirá, têm um caráter de experiência totalmente alheio à vivência sensório-motora. A inteligência e a consciência racional em vão se esforçarão para tentar convocá-los. 

É nesse paradoxo violento que Benjamin enxerga a importância da obra de Baudelaire: ela conjura as flores que conseguiram, não obstante, brotar no mal. O melancólico é aquele que tem a aguda consciência da pobreza de nossa vivência atual e da nossa impossibilidade de experiência, mas ele é o único que, sofrendo de uma angústia atroz, não conse­gue se satisfazer com isso. O melancólico é, portanto, a última esperança, o único que pode achar, na desolação do agora, um caminho inusitado para um novo tipo de experiência ainda desconhecido, para uma flor rara e de nova espécie: 

Não há consolo para quem já não pode fazer mais nenhuma experiência. Mas é exatamente tal incapacidade que constitui a essência íntima da cólera […]. A cólera mede por suas explosões o ritmo de segundos ao qual está subjugado o melancólico.[15] 

O passado ideal e inacessível com o qual o nostálgico sonha possui uma ressonância enigmática do que pode vir a ser essa nova possibilidade de experiência. Apenas a insatisfação generalizada do melancólico pode quebrar as imagens-movimento orgânicas da ordem atual — o “tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência ”[16] — e, através de um mergulho profundo no passado, seguir rastros sutis, semelhanças longínquas, ecos dificilmente perceptíveis, familiaridades distantes que podem ser o avesso de experiên­cia que nossa vivência cinzenta talvez escondaem si. O pra­zer que há nessa nostalgia melancólica não é uma idealização ingênua que quer igualar o presente a um passado melhor, mas uma espécie de sabedoria enigmática, de um poder mne­mônico que tateia caminhos guiado por aqueles que não se contentam com a mediocridade do império da mercadoria. 

Os dois aspectos da nostalgia aqui fixados – a recusa do presente e o fascínio por um passado de alguma forma “mais rico” – podem resultar nas atitudes e posições acríticas. Mas podem também ser traduções de uma recusa da sensa­tez medíocre do presente sensório-motor e da busca deses­perada pela possibilidade de uma experiência num contexto cuja principal marca é sua escassez. Podem existir, portanto, dois tipos de nostalgia. O segundo tipo é o mais instigante: ele possui alianças estreitas e profundas com a melancolia (como o ideal é inseparável do spleen em Baudelaire) e vem sendo um elemento importante de toda uma tradição de artistas ao longo da modernidade estética. Tal nostalgia é prova de que ainda há aqueles que resistem à linearidade mecânica e progressista, norma para as configurações sociais desde os primórdios industriais da modernidade até o biopoder global contemporâneo. 

 

ANDRÉ ANTÔNNO BARBOSA nasceu no Recife (1988) e escreveu sua disserta­ção de mestrado em comunicação na UFPE sobre as relações entre melan­colia e nostalgia no cinema. Doutorando em comunicação e cultura na UFRJ, integra o coletivo de cinema recifense Surto & Deslumbramento (surtodeslumbramento.wordpress.com). Este ensaio ficou em segundo lugar no 2o Prêmio de Ensaísmo serrote, realizado em 2013.

 



[1] Cf. Pam Cook, Screening the Past: Memory and Nostalgia in Cinema. Oxon: Routledge, 2005; Svetlana Boym, The Future of Nostalgia. Nova York: Basic Books, 2001; Linda Hutcheon, Irony, Nostalgia and the Postmodern.University ofToronto English Library, 199 8. Disponível em www.library.utoronto.ca/utel/ criticism/hutchinp.html.

[2] Cf. Gilles Deleuze, A imagem- -movimento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

[3] Walter Benjamin, Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011, p. 146.

[4] Elias, em seu ensaio sobre a recepção da pintura de Watteau, os chama de outsiders. A peregrinação de Watteau à ilha do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

[5] Ibidem, pp. 12-54.

[6] J.-K. Huysmans, Às avessas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 245-248.

[7] Gilles Deleuze, A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007, p. 63.

[8] Guy Gauthier, “La nostalgie: rêve d’enfance, mal du pays, quête spirituelle”. Revue La Licorne, n. 37. Disponível em www.licorne.edel. univ-poitiers.fr/document628.php. 

[9] O presente da tradição de artistas que interessam aqui está definido com muita clareza: é o do reinado absoluto da mercadoria em todos os aspectos da vida na modernidade ocidental.

[10] J.-K. Huysmans, op. cit., p. 286.

[11] Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, pp. 197-221.

[12] As traduções de Baudelaire aqui citadas são de Ivan Junqueira. Charles Baudelaire, As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 273.

[13] Charles Baudelaire, op. cit., p. 271.

[14] Walter Benjamin, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 54.

[15] Walter Benjamin, op. cit., 1989, pp. 55-56. Norbert Elias (op. cit., p. 47) dá o nome de “utopia do medo” a essa frágil esperança que certa tradição de artistas da modernidade estética só encontrava na melancolia: “Embora o desespero não fosse novidade, era novo o fato de ele ser considerado valioso e importante”.

[16] Walter Benjamin, op. cit., 1996, p. 204.

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