Disparidades eletivas – por Elvia Bezerra

Disparidades eletivas
por ELVIA BEZERRA

Por mais de 20 anos, Ribeiro Couto desafinou o coro de reverência a Mário de Andrade em uma troca de cartas de notável energia intelectual e inquietação pessoal

Durante 20 anos, de 1922 a 1942, o escritor santista Rui Ribeiro Couto manteve com Mário de Andrade uma correspondência, inédita até hoje, que revela menos cumplicidade e carinho do que diferenças e mal-entendidos. Trata-se, na verdade, de um diálogo arrojado, muitas vezes penoso, violento até, com alguns lances divertidos de permeio. As 61 cartas, cartões e bilhe­tes, hoje depositados no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, dão o testemunho viril de um esforço de entendimento em vários níveis, do estético ao pessoal, em que as afinidades entre os dois paulistas apaixonados pelo Brasil, pela literatura e pela vida não foram suficientes para vencer suas diferenças.

A posteridade se encarregaria de tornar ainda mais assi­métricos os destinos dos dois. Marcado pelo sentimenta­lismo dos primeiros versos, desprestigiado pela crítica, que o esqueceu durante os longos anos em que, como diplomata, morou fora do Brasil, Ribeiro Couto entrou para a história como o autor de Cabocla, romance de 1931 três vezes adaptado para telenovelas. Garantiriam ainda sua permanência a autoria da expressão “homem cordial”, que Sérgio Buarque de Holanda dotaria de caráter sociológico em Raízes do Brasil, e, em menor grau, a condição de representante do penumbrismo, período que se inter­pôs entre o simbolismo e o modernismo e que ele mesmo definiu não como escola, mas como um passageiro “contágio”. Segundo Couto, “uma certa ati­tude reticente, vaga, imprecisa, nevoenta, no jeito de fazer verso” por volta dos anos1920 a 1923.

Entre o final da década de 1990 e a virada do século 21, foram publica­das, graças ao empenho do amigo e também embaixador Vasco Mariz, algu­mas antologias de poemas, crônicas e contos de Ribeiro Couto. Nem assim seu nome deixou de ser associado quase exclusivamente aos três aspectos aqui mencionados.

Como interlocutor de Mário de Andrade, abandonou o tom baixo que caracteriza seus poemas e levantou a voz, numa correspondência em que se destacam dois momentos cruciais. O primeiro quando Mário escreve a crí­tica do livro de poemas Um homem na multidão, publicada em duas partes (18 e 25 de setembro de 1926), no Suplemento de Sao Paulo do jornal cárioca A Manhã. A análise, enviada a Couto antes da publicação, é penetrante, extensa, e, de início, provocou no autor dos versos um grato reconhecimento. Há, nesse momento, uma aproximação entre os dois, sem que se excluam ironias sutis por parte de Ribeiro Couto, que, depois da leitura do artigo, declarou, em carta de 22 de agosto: “Recebi o seu longo estudo da minha alma. Sinto-me tão trans­parente, agora, como uma vidraça.”

Veja-se: da alma, não da poesia. Não que Mário de Andrade tivesse deixado de analisar os versos, mas porque dedica boa parte do estudo à psicolo­gia do autor. Começa até mesmo por se referir ao físico de Ribeiro Couto, à sua “morenez da pele cheia de Brasil”. Mais adiante, afirma que, numa das seções do livro, sente-se a “extravasão do que o poeta desejou ser na vida e não foi”. Segue afirmando que se trata de “uma poesia feita de despeitos. Despeitos líri­cos, está claro, despeitos que fizeram vibrar comovedoramente a poesia dele, despeitos que não o depreciam.”

A observação não passaria em branco. Areação de Couto foi branda, mas irônica: “Você me desvendou, e eu lhe agradeço, de coração, a suprema deli­cadeza com que você não deu o remate culminante nesse estudo referindo-se ao último e mais profundo dos meus despeitos, àquele que está o despeito de não ter sido secretário de legação”.

Agradecia mesmo ou apontava uma falha na análise dos despeitos? De um modo ou de outro, dois anos depois Ribeiro Couto, que perdera a primeira oportunidade de entrar para o Itamaraty por causa da tuberculose que o surpreendeu em 1922, daria início a uma excepcional carreira diplomática, encerrada em Belgrado, em março de 1963, dias antes de sua morte.

Resolvida a questão dos despeitos, Couto passou da brandura à fúria: no final do estudo, Mário de Andrade, destacando uma “esquematização realista de tema e dicção simultaneamente”, aproxima-o de Oswald de Andrade e de Sérgio Milliet, atribuindo-lhes a responsabilidade pela tendência a que o poeta santista se teria filiado. Indignado, Ribeiro Couto escreve a Mário em 28 de setembro de 1926, repudiando o paralelo feito: “Cá estou, pela segunda vez, na leitura do seu formidavel estudo a respeito do meu lirismo-transatlântico­-manqué”. Como podia Mário – argumentava ele – ter identificado semelhança entre os poemas do livro, na seção “São José do Barreiro”, que é de 1924, e a poesia de Oswald de Andrade em Pau-Brasil, de 1925?

“Admiro extraordinariamente esse desenho rápido e intencional dos pequeninos poemas de Pau-Brasil, propositalmente deformativos, caricatu­rais, vaiantes”, concordava, mas ressaltava que sua poesia era exatamente o contrário. Ainda que, em alguns poemas, não desse “todo o quadro”, seu desenho tinha formas nítidas e calmas. Em vez de semelhanças com a poesia oswaldiana, “traço falsíssimo” do estudo do crítico, havia diferenças “antipo­dais”, garantia Couto.

Mário, por sua vez, antes mesmo desse episódio ja reconhecia no amigo “uma diferença tal de feição psicológica” que o irritava profundamente. Além disso, talvez estranhasse que Couto, nascido em 1898, portanto cinco anos mais novo que ele, nunca se deixasse levar por seu extraordinário poder de sedução intelectual, exercido em grande parte por meio das milhares de cartas que escreveu ao longo de seus 51 anos de vida.

Apesar da argumentação lúcida de Couto a respeito do estudo de Mário, com a qual concordara Manuel Bandeira, a correspondência continua até atin­gir um ponto alto. Na verdade, um turning point, que acontece quando Mário publica, em 8 de janeiro de 1928, um artigo no Diário Nacional de São Paulo sobre a reunião de contos Baianinha e outras mulheres. Ferido com a crítica, que considera depreciativa, Couto retrai-se. E dessa vez conclui que não vale a pena insistir no dialogo.

A resenha é, no mínimo, intrigante. Nela, Mário começa com a afirmação de que Baianinha é excelente, expressão de plena maturidade da prosa de Ribeiro Couto, mas, adiante, nega ao livro qualquer valor literário. Afirma, no início, ser magnífico o conto “Maternidade”; no entanto, no desenvolver do artigo, pondera: “É um caso muito comovente e que podia abraçar todas as mulheres infecundas. Porém está escrito tão para fora da ‘obra de arte’ que se resume no caso de fulana de tal. É como se nos contassem isso em conversa. A gente sente um dózinho en passant por Fulana de tal.” E encerra afirmando que “Ribeiro Couto é um contista de lar”.

Foi fatal. Couto, indignado, negou-se a comentar o artigo.

Dá-se aí um hiato na correspondência, favorecido pela partida de Ribeiro Couto para Marselha, em 1928, como funcionário do Itamaraty, iniciando, finalmente, a sonhada carreira diplomatica. Retomado em 1935, o diálogo, frio, compõe-se de cartas esparsas, secas, quase bilhetes, e cartões-postais lacônicos. Em vão ficam os apelos de Couto para que Mário volte à frequência epistolar de antes. A correspondência vai se esgotando melancolicamente e, em 1942, se finda.

Se, nessa troca, as discussões estilísticas são instigantes, não merece menor atenção o esforço obstinado com que os dois procuraram, durante anos, se entender. O diálogo postal entre Mário de Andrade e Ribeiro Couto sus­tenta-se nesse eixo duplo, em que se evidenciam o fracasso no plano da com­preensão; a rejeição e o amor juntos; a admiração e a repulsa convergentes; e, sobretudo, a revelação de duas almas verticais, transbordantes, intensas, incompatíveis até mesmo pelas semelhanças.

Prometiam-se franqueza, declaravam-se bem-querer, justificavam-se, mas nada fluía entre os dois. “Sobre isso que você chama brasileirismo, acho que você é um pretensioso”, escrevia Ribeiro Couto, o mesmo que reconhecia o talento superior de Mário: “Você tem o formidável poder de criar vida. Com­preende, analisa, penetra, induz, deduz, generaliza, tira leis do emaranhado de umas imagens, enfim, você realiza assombrosamente bem esse trabalho multiforme do crítico. Crítico no grande sentido: artista.” Tanto reconheci­mento não o impedia de, em seguida, identificar o “cerebralismo desenfreado” da poesia de Mário, comparando-o a Mallarmé: “Esforçado e forçado”, sen­tenciava em carta de 29 de novembro de 1925, exemplificando com os versos do “Noturno de Belo Horizonte”, sobre os quais exclamava: “Que coisa mais cacete e inexpressiva!”.

Nessa mesma carta, ao justificar por que acusara Mário de fazer política lite­rária, relembra: “Já uma vez, no bar do largo de São Bento, à noite, eu confes­sei candidamente a você que o achava com um todo perfeitamente hipócrita. Disse-o sem o intuito de ofensa; disse-o como diria: você é feio. Ou então: você é bonito. Meu juízo não variou. Acho você com uma adorável hipocrisia.” Era assim, atrevido, que ele teimava na sua acusação, enfrentando a ansiedade do amigo, que lhe pedia explicação e questionava: “Deixe de ser besta, Ribeiro Couto. Que que posso esperar dessa política pra mim?”

A permear-lhes a convivência epistolar, um amigo em comum: Manuel Ban­deira, que, mais de uma vez, à sua maneira discreta, intercederia pelo bom relacionamento entre os missivistas. Não obteve sucesso.

Ao final, pode-se perguntar: por que, discordando tanto, insistiram Mário de Andrade e Ribeiro Couto nessa correspondência? Buscaram a amizade por causa de Manuel Bandeira? Mas, supondo que Bandeira não estivesse entre os dois, aproximando-os, teria Ribeiro Couto, “grande farejador de novidades” – dizia o mesmo Bandeira –, prescindido da amizade de Mário, no momento em que este encarnava a vigorosa substância do ideário modernista? E Mário – supondo ainda uma vez a ausência de Bandeira –, teria resistido às provoca­ções literárias e afetivas de Ribeiro Couto, ao viço de suas insinuações?

MODERNISTAS DE DIFERENTES MODOS

Ao iniciar-se a correspondência, era Ribeiro Couto o autor de O jardim das confidências (1921), livro de poemas que não agradara a Mário, como prova a apreciação que fez, a lápis, na última página do exemplar, conservado na sua biblioteca, hoje no IEB: “Não vai nem vem. O almofadismo langoroso, sentimental. Romântico vestido de silêncio. Carnaval elegante, sem baru­lho, sem vida. [ … ] Um pouco de graças femininas. Muito de elegância e distin­ção. Dois poucos de sensibilidade: um do autor, outro dos poetas simbolistas. De vez em quando, a nota deliciosa, sinceramente exposta, vibrante. Então o poeta tem uma sensibilidade que não são dois poucos, é grande. Mas ler duas vezes o livro é impossível.”

Ainda assim, Mário destacara, nesse mesmo Jardim, o poema “O desconhe­cido”, o favorito também de Manuel Bandeira, anotando, na página, a exclama­ção: “Lindo!”. Claro está que o modernista Ribeiro Couto – o suave modernista de “Surdina”, em que se lê: “Minha poesia é toda mansa./ Não gesticulo, não me exalto … / Meu tormento sem esperança/ Tem o pudor de falar alto.” – foi, ao mesmo tempo, o sorrateiro renovador no poema “Cinema de arrabalde”, em que transgride, a seu modo, profunda e mansamente, ao introduzir persona­gens de um cotidiano desglamorizado, incorporando-os à nossa poesia, como notou Rodrigo Octavio Filho em seu Simbolismo e penumbrismo: “A vida de toda gente, gente grande, gente pequena, alta, baixa, gorda, magra, boa ou má, inteligente ou medíocre, dentro da dignidade do cotidiano autêntico, natural, humano, sem nenhuma ênfase e nenhuma oratória”.

Mário de Andrade, por sua vez, no fim de 1922, colhia as impressões, entusiastas ou não, mas jamais indiferentes, sobre o seu Pauliceia desvairada, que Manuel Bandeira reputaria como “o primeiro livro integralmente moderno que aparece no Brasil”, acrescentando: “Todos os outros foram de transição”. É nesse momento que Ribeiro Couto, recolhido em Campos do Jordão para curar-se de tuberculose, escreve longa, detalhadíssima carta ao autor de Pauliceia, comentando cada poema do livro. Anos depois, em 1926, quando Mário publicou Losango cáqui, Couto voltaria a se deter na crítica minuciosa do livro. Crítica de acordo com seu temperamento transbordante, exaltado: “Que pequena obra-prima! E como é docemente irônico”, exclamava Couto a respeito do poema “A menina e a cabra”. Ousou até mesmo eleger o melhor poema do livro, que, na sua opinião, seria “As moças”, aquele de que consta o verso “A própria dor é uma felicidade”.

O leitor vem lendo a análise dos poemas, uma a uma, e tende a crer no gosto de Couto, que termina com o alerta: “Fica-me do seu livro, afirmada mais uma vez, entretanto, uma confusa sensação de incompatibilidade com a sua maneira, com o seu modo de ser”.

Nem precisava ter sido tão claro. Mário logo percebeu que havia um tanto de artificialismo nas exclamações deslum­bradas de Couto. Na verdade, se surpreendeu com os elogios. Estava preparado para a “descascação”, que não veio, mas não o privou de confessar: “Porém não tem nada neste mundo que me irrite mais que você”. Antes disso, Mário já desacreditava do entusiasmo do interlocutor, quando em carta a Manuel Bandeira, de 31 de maio de 1925, observava sobre Couto: “É o pior crítico do mundo, quando critica alguém na realidade se observa a si mesmo. Diz que gosta da Pauliceia, mas o gosto que tem por Pauliceia me irrita. Não compreendeu absoluta­mente o meu livro. O que o comove lá dentro são uns deta­lhes ocasionais, umas notinhas rápidas, umas pequenices de cor local, de observação de psicologia pequenininha, rolas da Normal, garoa, ora sebo!” [1]

Como se vê, a discordância se sobrepunha a todo um esforço de compartilhamento das crenças que os dois, de um modo geral, defendiam com relação às mudanças estéticas por que passavam as letras brasileiras. Se, por um lado, havia comunhão de ideias, a expressão individual, distinta, não raro causava divergências profundas. Do ponto de vista psicológico, sobre­tudo, seus temperamentos, próximos em tantos modos, não logravam harmonia, ainda que os dois amigos demonstrassem disposição para o entendimento.

Opondo-se ao timbre retumbante do “Prefácio interessan­tíssimo” de Mário, em Pauliceia desvairada, ou mesmo à iro­nia feroz de Bandeira nos versos de “Os sapos”, Ribeiro Couto subvertia mansamente, sem causar nenhum impacto, mas fazendo mudar a perspectiva poética do leitor, como acon­teceu a Afonso Arinos de Melo Franco depois que leu seus poemas, recomendados por Joao Ribeiro. É dessa insinuân­cia de Ribeiro Couto que trata Antonio Candido em artigo de O Jornal, de 31 de março de 1946. Ao analisar a poesia reunida do autor em Dia longo, publicado em Lisboa em 1944, observa o professor e crítico que, “de todas as fases da literatura bra­sileira, o modernismo é, sem dúvida, aquela que mais rigida­mente aparece, separada do que a precede pelo muro brusco e assustador da Semana de Arte Moderna”. Mesmo assim, segue Antonio Can­dido, foi necessário “um certo amaciamento de terreno”, feito por autores como Mário Pederneiras, Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto ou Cecília Meireles, e que possibilitou a Mário de Andrade escrever, em 1922, os “versos libérrimos de Pauliceia desvairada”. Segue ele: “A sua liber­tação espetacular pressupunha uma série de pequenas libertações parciais, cuja dinâmica podemos observar na poética brasileira desde a maturidade do parnasianismo”.

Vê-se que, por engenho do destino das letras, estava Ribeiro Couto há muito vinculado ao correspondente arrojado que seria, no futuro, Mário de Andrade. E por mais distantes que se possam revelar nas cartas, o movimento literário os uniu, pois foi a partir de “pequenas libertações”, como as encontradas em “Cinema de arrabalde”, que se tornou possível em 1922 o que Antonio Candido chamou de “libertação espetacular” de Mário de Andrade.

A suavidade com que Ribeiro Couto aderiu ao modernismo não diminuía a convicção com que o defendeu. Se, como é sabido, por respeito aos parna­sianos e simbolistas, ele recusou-se, ao lado de Manuel Bandeira, a participar das festividades da Semana de Arte Moderna, no Theatro Municipal de São Paulo, tratou de assumir colaboração intensa em jornais e revistas divulga­dores da nova estética. O próprio Bandeira testemunha o papel de Couto no movimento, conforme escreve a Mário de Andrade em carta de 19 de maio de 1924: “Quem agitou o meio carioca e nele lançou as ideias modernas foi o Ribeiro Couto. [ … ] Foi o Ribeiro Couto que com aquela vivacidade sedutora captou o Ronald. O Couto vivia falando no Oswald, em Anita,em Brecheret. Companheirodele era o Di. Mas este não tinha a irradiação generosa do Couto. Eu era modernizante sem saber. Foi o Couto quem me revelou os italianos e os franceses mais novos, Cendrars e outros.”

Couto –— é o que prova a correspondência –— não só reconheceu em Mário de Andrade a figura “de libertador, a de homem-data, homem-marco a indi­car fim e começo de épocas”, como revelou agudeza crítica ao interrogar, sem esconder opinião, ainda em 29 de novembro de 1925: “Você é o criador do movimento, e o seu melhor crítico. Creio, porém, que você não vai passar à história como poeta. Sua obra fundamental, sua obra máxima, sinto, será outra. Quem sabe se um romance? Quem sabe se uma obra de crítica? Pode ser um livro de poemas. Porém, duvido.”

Noventa anos depois desse prognóstico, suas interrogações se revestem de afirmativas, revelando que, em 1925, ele intuiu a publicação de Macunaíma, de 1928. Insistindo-se na aproximação entre os dois, vale lembrar que Sérgio Buarque de Holanda, destacando aqueles autores representantes do “ponto de resistência necessário, indispensável contra as ideologias do construti­vismo”, identificava, entre outros, “Manuel Bandeira, que seria para mim o melhor poeta brasileiro se não existisse Mário de Andrade. E Ribeiro Couto, que com Um homem na multidão acaba de publicar um dos três mais belos livros do modernismo brasileiro. Os outros dois são Losango cáqui e Pau-Brasil .”[2]

ESPÍRITOS DIONISÍACOS: ATRAÇÃO E REPULSA

Observam-se em Mário de Andrade e Ribeiro Couto certas afinidades que, curiosamente, antes de aproximá-los, gera­ram mútua aversão. Unia-os um profundo entusiasmo de vi­ver. Aproximava-os a vibração pelas descobertas, pelas lutas: se um foi embaixador do Brasil, orgulhoso da carrière, como gostava de dizer, e por meio dela dinâmico divulgador da li­teratura brasileira na Europa, o outro, inaugural, viveu com naturalidade na sua embaixada da rua Lopes Chaves,em São Paulo, onde construiu, pela epistolografia, uma obra extraor­dinária, feita de análises, reflexões, conselhos, dentro do me­lhor espírito da diplomacia.

Ligava-os o senso de humor, que se manifestava no uso de expressões deliciosas, a que não faltava a censura pelo que havia de mais profundo a afastá-los: “Ciao, bichão adorável!”, escrevia Couto depois de uma “descascação” feita por Mário, que, a certa altura, não o poupava: “Ora vá se catar, seu Couto!”. Que há um forte traço dionisíaco na personalidade dos dois, parece óbvio. E é o próprio Mário quem reconhece, em carta a Alceu Amoroso Lima, de 23 de dezembro de 1927: “Está tam­bém certo que você encontre um certo e franco dionisismo na minha obra, isto é, não só uma vontade de gozar a vida, porém o gozo da vida, mas justamente no meu livro que você gostou menos, no Losango cáqui, eu tenho um refrão muito digno de se matutar um pouco sobre ele: ‘A própria dor é uma felicidade’.”

Quanto a Ribeiro Couto, esta deliciosa síntese que faz a Manuel Bandeira não deixa dúvidas quanto a seu espírito dionisíaco: “Só admito duas atitudes: um profundo desgosto de viver ou uma profunda alegria de viver. O ceticismo sorridente e resignado com um jeito suave, do camarada que acha tudo ruim mas vai vivendo, me aporrinha. Porque, na pri­meira hipótese (profundo desgosto), o indivíduo deve matar­-se, fazer-se frade ou entrar pra uma sociedade dançante nos subúrbios. Na segunda, deve agir no temporal e no espiritual, mas com delírio, com paixão, de modo a acabar num sanató­rio, na cadeia ou no Palácio do Catete.”

Para que se tenha ideia do quanto os dois aproximavam-se, apesar de tudo, vale dar voz a ambos:

“Vivo sorrindo e sou enormemente feliz”, escreveu Mário a Couto numa receita detalhada de si mesmo. “Nada me cansa, nada me enjoa, acho a vida linda, perdoo que é um despropósito, quero bem a uma porção de gente escolhida, quando me traem não faz mal e sou ainda moço, e sempre moço, feito com uma mistura bem misturada de uma garrafa de infantilidade, meia garrafa de palhacice, uma colherinha de chá de homem feito e uma garrafinha dessas de guaraná de velhice experiente. Misture bem e juro que isso dá Mário de Andrade, seu criado.” Ao amigo Martins de Almeida, Ribeiro Couto vai no mesmo diapasão, sem economizar hedonismo: “Eu gosto de rir, de comer, de ler, de falar, de amar, de ter amigos, de admirar, de querer bem a gatinhos e cachorrinhos e outros inocentes animais, de cantar, de dançar, de tocar vitrola, de ir no café beber chope, de olhar para ela, de ver a perna dela, de no bonde voltar a cabeça para ela, de ganhar dinheiro com a minha mão, de fazer negócios, de assinar escrituras de compra e venda (principalmente de assinar escrituras de compra e venda), de andar de trem, de andar de automóvel, de passear no Rio, de ir no teatro, de comer bife à meia-noite, de chorar de pena de um rei que morre moço (como o de Sião, tísico mongólico imperial), de ler jornal, de bater palmas pro major Franco, da vida! Eu sou amigado com a vida, Martins de Almeida!”

Não era difícil que, por caminhos diferentes, ambos se declarassem de bem com a vida. “Torno-me cada vez mais humano, mais humilde, se é possível humildade concreta num indivíduo orgulhoso que nem eu, mas sou cada vez mais feliz. Minha vida é positivamente uma coisa linda”, escreveu Mário. “Como a vida é saborosa! Como é bom acertar nos alvos longínquos, fielmente mantidos na pontaria!… Porque, seu Manuel, meu caso é um caso de pontaria. ‘Nem mais’, como se diz em Lisboa. ‘Nem mais!’”, admirava-se Ribeiro Couto em carta a Manuel Bandeira.

Em matéria de crítica literária, como já se pôde perceber, desconheciam a neutralidade. “Eu adoro a liberdade do julgamento, porém imparcialidade não sei o que é”, afirmava Mário, deixando pouca margem de dúvida. Couto, por sua vez, alardeava sua parcialidade: “Gosto porque gosto etc. –— eis o meu gênero de crítica. Somente, misturo ao gosto-porque-gosto umas interpreta­ções talvez arbitrárias, mas que são prolongamentos da poesia do vítimo.”

Ambos pensaram na morte com serenidade. Se Mário a invoca no soneto “Quarenta anos”: “Oh sono, vem!… Que eu quero amar a morte/ Com o mesmo engano com que amei a vida”, Ribeiro Couto a celebra no soneto “Dia longo”: “Recebo o entardecer como uma aurora,/ Como a antecipação do claro ins­tante/ Em que enfim vou saber o que há lá fora:/ Lá fora, além das vistas der­radeiras,/ Além da noite, além do céu distante/ Onde as constelações guardam fronteiras.”

PRESENÇA DE MANUEL BANDEIRA

Nesse testemunho epistolar de fraquezas e de generosidades, destaca-se a pre­sença de um amigo em comum: Manuel Bandeira. Amigo-irmão de Ribeiro Couto, que lhe tributava sentimento comparável ao que recebera da irmã, Maria Cândida, o poeta de Pasárgada permaneceu entre ele e Mário, movendo­-se na admiração, no amor e em alguns constrangimentos.

O que era amizade para Manuel Bandeira? “Amizade: afinidade de inte­ligências, relação de inteligência. Não quero dizer que seja só isso, que deva ser só isso. Mas que seja sobretudo isso”, escrevia ele a Mário em carta de 23 de maio de 1924. Dentro desse princípio, ao que parece, manteve ele sua relação com o amigo, conforme se vê na Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, organizada por Marcos Antonio de Moraes. Nela, as discussões esté­ticas estiveram acima de quaisquer outras e constituem a sua essência.

Sem que lhe faltasse o humor, Bandeira, ainda na carta de 23 de maio, respon­dia com a sua conhecida sobriedade à exacerbação própria do temperamento de Mário, ou de Ribeiro Couto: “Tenhamos amigos, mas reflitamos: que são como nós carne fraca: não os exponhamos a possivelmente mais tarde magoar-nos”.

Amigo prudente, amante sensato, tuberculoso comedido, Bandeira mui­to provavelmente encontrouem Ribeiro Coutoo companheiro com quem compartilhou maior intimidade. Seu hóspede na rua do Sapo, em Campos do Jordão, quando Couto se tratava dos pulmões, e depois no sul de Minas, quando ele era promotorem Pouso Alto, o poeta de Pasárgada experimen­tou uma fraternidade vivida num cotidiano especialíssimo. Desse convívio, pelo menos duas presenças ecoariam na poética bandeiriana: a primeira, a das andorinhas que pousavam nos fios telegráficos dos postes em frente à casa de Ribeiro Couto,em Pouso Alto, consagradas nos desalentados e populares versos do poema “Andorinha”: “Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!/ Passei a vida à toa, à toa…”. A segunda, a do leproso de Pouso Alto, per­sonagem evocada no verso do poema “Estrela da manhã”: “Pecai de todas as maneiras/ Com os gregos e com os troianos/ Com o padre e com o sacristão/ Com o leproso de Pouso Alto/ Depois comigo.”

Sabe-se que as afinidades entre Bandeira e Couto vêm de 1922, quando os dois se recusaram a participar da festa modernista: “Também não quise­mos, Ribeiro Couto e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente os mestres parnasianos e simbolistas, nunca repudiamos o soneto nem, de um modo geral, os versos metrificados e rima­dos”, registrou ele em seu Itinerário de Pasárgada. Note-se que Ribeiro Couto, no artigo publicado em O País, de 29 de junho de 1924, logo após o rompi­mento de Graça Aranha com a Academia, afirmara, a um só tempo enérgico e doce, que “não queremos destruir o passado. Queremos construir um presente diverso do dia de ontem.” Estava plenamente afinado com Bandeira.

Muitas vezes as opiniões estéticas os uniram. Ao declarar-se exaspe­rado com o que considerava “desvairismo gongórico” do autor de Pauliceia, Bandeira ilustrava sua irritação com o verso do poema “Tu”: “Oh! Incendiária dos meus aléns sonoros”, e, justificando-se, dizia ver neles “muitos exageros coloridos” que não podia aceitar. Ribeiro Couto, por sua vez, exemplifica, com o mesmo verso, o seu desagrado em relação ao assunto, afirmando a Bandeira, em carta de 20 de setembro de 1922, não apreciar a “obscuridade, que é uma das características do desvairismo”. Teriam Bandeira e Couto discutido e che­gado a idêntica conclusão sobre o mesmo verso?

Outro momento de consonância ocorre quando da publicação da crítica que Mário escreveu sobre Um homem na multidão. Ele enviou a indignada car­ta-resposta de Couto a Manuel Bandeira, que em 4 de outubro de 1926 lhe res­ponde: “Acabo de receber seu bilhetinho e a carta do Ribeiro Couto. [ … ] Estu­penda a carta do Couto. O final do seu estudo está mesmo mal redigido, pois também eu entendi no sentido que lhe deu o Couto.”

Não foi esse o único episódio em que, no triângulo, Bandeira ficou do lado de Ribeiro Couto. Quando da crítica de Baianinha e outras mulheres, que pro­vocaria o rompimento da amizade entre crítico e autor, Manuel Bandeira, novamente ao lado de Couto, discorda de Mário, em 21 de janeiro de 1928: “Da crítica à Baianinha só acho boa a observação de incompatibilidade de feição criadora (eu acres centaria na composição) entre você e o Couto. [ … ] No mais estou em desacordo, sinto diferentemente. Para mim, a verdadeira forma do conto é a conversa, e a matéria do conto, matéria de conversa, uma ação nar­rada em conversa. Por isso considero o Couto um contista excelente. [ … ] Sinto agudamente a obra de arte em todos os contos, se entendo bem o que é obra de arte, isto é, trabalho de composição visando à comoção artística. [ … ] Melhor do que isso, não vi nunca nem nas páginas de infância do começo de Guerra e paz.”

Vê-se que a admirável justeza de Bandeira esteve presente na relação de ami­zade entre Mário de Andrade e Ribeiro Couto. Prova disso está na carta que ele, Bandeira, envia a Mário, em 6 de maio de 1926: “Quanto ao seu coração, ao seu caráter, cada vez ele inspira mais confiança ao Couto, ele te acha uma alma estupenda, te quer muito bem e ainda agora quando esteve aqui me disse todo satisfeito que a mulher tinha gostado muito de ti. Portanto não leve a mal as perfídias dele: ele é mesmo um demônio, duas vezes já eu fiquei puto com ele e tinha resolvido de pedra e cal não ser amigo dele, mas não houve jeito: é uma alma de uma generosidade, de uma força de irradiação raríssima, vi que ele me quer um bem safado e fiquei, acho que pra sempre, irmão dele. Tem sido pra mim de uma bondade que eu só encontrei em meu pai e minha irmã.”

Mas o tempo provaria a Manuel Bandeira que a sua mediação era vã, o que o levaria a concluir em carta a Mário, em 1929: “A mim é que me penaliza, pois quero tanto bem a vocês. E é curioso constatar como posso ficar tão perto de vocês ambos que estão afastados por léguas como homens e como poetas!”

Engano pensar que a rendição de Manuel Bandeira punha fim ao assunto. Dez anos depois, Mário o retomava em carta ao escritor português José Osório de Oliveira. Referia-se à sua “insolúvel briga com Ribeiro Couto” e declarava-se inflexível: “Ele me diminuiu no único direito, na única liberdade que jamais poderei ceder a nenhuma injunção vital: o direito de poder amar sem exigên­cia de troca, mas também sem troca por desprezo”.

Cinco anos depois da morte de Mário de Andrade, Ribeiro Couto, em carta inédita a Manuel Bandeira, de Belgrado, 10 de maio de 1950, reco­nhece a tensão que os envolveu: “A nossa tragédia (de você, Mário e eu) é das mais pungentes. Eu não gostava muito da literatura dele, mas gostava muito dele pessoalmente, e ele não gostava muito da minha literatura, mas gos­tava de mim, e nunca pôde viver bem comigo. Você não gostava muito dele pessoalmente, segundo me confessou, mas gostava imenso da literatura dele, e viveu muito bem com ele.”

 

ELVIA BEZERRA (1947) é autora de A trinca do Curvelo (1995) e Meu diário de Lya (2002), ambos publi­cados pela Topbooks, e coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles.

 

[1] Mário refere-se ao verso de seu poema “Paisagem n. 3”: “As rolas da Normal/ esvoaçam entre os dedos da garoa”.

 

[2] Sérgio Buarque de Holanda, “O lado oposto e outros lados”. Revista do Brasil, São Paulo, 15 out. 1926, pp. 9-10. Reproduzido em O espírito e a letra, v. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 224-228.

 

 

2 respostas para Disparidades eletivas – por Elvia Bezerra

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