Meios de transporte – por Alice Sant’Anna

Meios de transporte
por ALICE SANT’ANNA

Caderno de Ana Cristina Cesar mostra os bastidores da criação de A teus pés, uma complexa operação de citações e apropriações de música e poesia. Este texto integra a serrote #23 ½, lançada na FLIP 2016, que tem a poeta como autora homenageada.

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Quando você morrer os caderninhos vão todos para a vitrine
da exposição póstuma. Relíquias.

Ana Cristina Cesar, Luvas de pelica

Por pouco, o único livro de poesia que Ana Cristina Cesar lançou pra valer não teve outro título. “Branco e blue”, “Instantâneo blue”, “Bem objetivo” e “Lá fora” estão entre as ideias anotadas a caneta num caderno preto. A poeta rasurou quase todas, uma a uma, e riscou um enorme X de cima a baixo. A teus pés, título que vingaria, não era sequer uma possibilidade. No verso da capa, caneta azul e letra apressada, espécie de canteiro de obras que hoje faz parte de seu acervo, desde 1999 sob a guarda do Instituto Moreira Salles, ela cunhou: Meios de transporte.

Tudo leva a crer que esse caderno de capa dura, pautado, tipo escolar, era uma tentativa de organizar o volume que seria lançado em 1982, pela Brasiliense, na coleção Cantadas Literárias. Dos 43 poemas de A teus pés, apenas os nove que fecham o livro não apareciam nos rascunhos – embora dois deles, “Samba-canção” e “Travelling”, estivessem anexados em folhas avulsas, datilografadas.

Ana estava escrevendo, avaliando, montando. Alguns poemas saíram em livro exatamente como aparecem no caderno. Outros foram mexidos, reescritos. Muitos foram descartados e reunidos postumamente, em 1985, em Inéditos e dispersos, organizado por Armando Freitas Filho. E uma porção de entradas – ideias, anotações, textos abandonados permanece inédita. Há também indicações sobre a ordem de poemas, hesitações sobre a grafia de uma palavra estrangeira e uma profusão de pontos de interrogação, “nãos” e “sins”.

Mas por que esse título, Meios de transporte?

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“Não há Fragata igual a um livro”

Em Crítica e tradução (1999) – volume póstumo também organizado por Armando Freitas Filho, que reúne Literatura não é documento, Escritos no Rio e Escritos da Inglaterra, além de alguma poesia traduzida –, Ana traduz um poema de Emily Dickinson. Identificados na obra da autora como “1263”, os versos relacionam poesia e viagem:

 

Não há Fragata igual a um livro, que daqui

Nos distancie

Nem Corcel que galope mais que um Verso

De poesia –

Não custa Pedágio ao pobre

Essa Travessia –

Frugal é o Carro que nos leva

Nesta Via.

 

No comentário que se segue à tradução, Ana chama a atenção para as quatro metáforas que evocam, de modo bastante conciso, os “poderes da literatura”: “reading is like travelling”. Seja a fragata, o corcel a galope, os pés na travessia ou o carro, as quatro imagens do poema de Emily Dickinson se concentram na locomoção, na ideia de se distanciar de um ponto original. “Ler é como viajar”: importa menos aonde se chega, e mais o percurso. “Felicidade”, Ana escreve no penúltimo poema de A teus pés, “se chama meios de transporte”.

O deslocamento é marca frequente na poética de Ana. São mapas de navegação, pontes, colinas, aeroportos, esquinas, degraus, navios, aviões, raptos, túneis, passageiros, pilotos, ambulâncias. “Concorde. Bonde do desejo. Espaçonave”, “três barcos colados imóveis no meio do grande rio”, um amigo que vive em táxis, “atravanco na contramão”, “carro em fogo pelos ares”, “side-car anfíbio”. Corrida pelo museu, barcas, “luzes de automóveis”, trilhos do trem, “subidas” para Petrópolis, “helicóptero sobrevoando”, “motorista de perícia desvairada”, traslados, passaportes, “escrevendo no automóvel”, dirigindo em círculos.

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“Um tea for two total”

Por falar em “luzes de automóveis”, o poema sem título que começa com “é muito claro/ amor/ bateu/ para ficar” ganhou, em Meios de transporte, três versões na mesma página, em tinta preta. Chegou à forma final em tinta azul. O início é o mesmo em todos os rascunhos. O que muda nesse canteiro de obras, roubando a imagem do poema, é o desfecho: os versos empilhados da metade para o fim, a partir de “no teu peito”, trocaram de ordem até chegar à versão estabelecida em A teus pés. Ficou assim:

 

é muito claro

amor

bateu

para ficar

nesta varanda descoberta

a anoitecer sobre a cidade

em construção

sobre a pequena constrição

no teu peito

angústia de felicidade

luzes de automóveis

riscando o tempo

canteiros de obras

em repouso

recuo súbito da trama

 

Não é por acaso que o poema abre com uma alusão a “Love Is Here to Stay”, canção de 1938 de George e Ira Gershwin. Ao longo do livro e do caderno, há outras pistas do quanto o chamado American songbook, repertório de canções populares americanas apropriadas pelo jazz, é uma referência constante. No poema em prosa “Este livro”, a palavra “jazz” está escrita com todas as letras. É um “tea for two total”, ela diz, assim como na canção de Vincent Youmans e Irving Caesar, de 1925: um retrato da família completa que o casal vai formar – “a boy for you/ and a girl for me” – com bolos que sairão do forno logo de manhã cedo, sem telefonemas ou visitas para interromper. Uma promessa de felicidade, que aparecia assim em Meios de transporte:

 

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.

E cante comigo: “Dream a while… Happiness… And I guess…”

So far. Tão longe. Por enquanto o “you know damn well, well, well…”

E cante.

Puro açúcar branco e blue.

 

Apesar de o poema estar marcado como pronto no caderno, assinalado com um “ok”, a versão publicada em A teus pés tem duas linhas cortadas. Ana eliminou a menção a “I Can’t Give You Anything but My Love”, canção de 1928 de Dorothy Fields e Jimmy McHugh, gravada por meio mundo, de Billie Holiday a Louis Armstrong. Na letra, romântica até não poder mais, um homem dedicado assegura que, embora não tenha dinheiro para comprar pulseiras de diamantes, o amor é garantido. A felicidade, de novo, é promessa. “Este livro” ficou mais curto em A teus pés:

 

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade que você seduz, charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a carapuça.

E cante.

Puro açúcar branco e blue.

 

Há ainda, em Meios de transporte, duas entradas que começam com o mesmo verso: “Canta blues com ela:”. Nenhuma das duas foi publicada em livro. A primeira faz referência direta à letra de “Old Fashioned”, de Alberta Hunter:

 

Canta blues com ela:

Yes, I’ve got that old-fashioned love in my heart.

Oh oh changes can tear it apart

’cause I’ve got that old old fashioned love in my heart

 

A segunda, lá pro fim do caderno, na página 32, brinca com “A Good Man Is Hard to Find”, de Eddie Green, gravada por Frank Sinatra em 1951. Se a canção original, homônima ao livro de Flannery O’Connor, diz que é difícil encontrar um homem bom, porque você sempre acaba com “the other kind”, Ana Cristina responde com a letra de “Handy Man”, canção de 1959 de Jimmy Jones e Otis Blackwell:

 

Canta blues com ela:

Whoever said a good man was hard to find

Positively absolutely sure was blind

‘Cause I’ve just found the best man that ever was

And here are a few things he does

 

06

O jazz está presente também na última página do livro, na lista de nomes de amigos e autores com quem Ana dialoga, de quem rouba versos. Espécie de agradecimento ou pista para as várias chaves de leitura, o “índice onomástico” em Meios de transporte é uma das marcas que evidenciam o rascunho de A teus pés. Assim como aconteceu com os poemas, essa lista também passou por mudanças consideráveis.

Para o livro, a poeta cortou os nomes de Emily Brontë, Lewis Carroll, T.S. Eliot, Italo Svevo e do crítico José Guilherme Merquior. Cortou também, voltando a falar em música, os de Keith Jarrett, Fats Waller e da própria Alberta Hunter. Já o nome de Billie Holiday foi mantido.

Algumas menções que não estavam no “índice onomástico” original aparecem no livro. O último nome, Walt Whitman – merecedor de um apaixonado elogio na resenha “O rosto, o corpo, a voz”, publicada pelo Jornal do Brasil em abril de 1983 –, embora rasurado com uma interrogação ao lado, no caderno, voltou à página em A teus pés. E Ana acrescentou ainda menções às amigas Grazyna Drabik e Katia Muricy e a James Joyce e Cecília Meireles.

 

“Certas vozes claras”

Em Meios de transporte, a lista é acompanhada por uma espécie de explicação: “Certas vozes claras/ objetos obscuros voando”. E, ainda, no verso da quarta capa, outra anotação: “Certas fontes”. É possível que, nos bastidores, o índice tivesse o objetivo de deixar a lista mais compreensível para o leitor ou talvez servisse apenas como organização interna para a própria Ana. Em A teus pés, não ficou nenhum esclarecimento sobre as fontes. Abaixo da lista, na última página do livro, está escrito “Dedicatória” e, na linha inferior, “E este é para o Armando”. Já em Meios de transporte, a dedicatória está na primeira página, junto com os possíveis títulos, e uma seta aponta para baixo: “Armando Freitas Filho”.

O índice, como se vê, é um dispositivo, uma entrada para o livro. Tem a função dos créditos finais de um filme, passando na tela preta. Manuel Bandeira, que não podia deixar de constar na lista, é uma das referências explícitas de Ana pela simplicidade, o ar estudadamente espontâneo e o gosto pelo material bruto cotidiano, à primeira vista desimportante.

De “Variações sérias em forma de soneto”, parte de Estrela da tarde (1960), a poeta saca o segundo verso da primeira estrofe – “Vejo mares tranquilos, que repousam,/ Atrás dos olhos das meninas sérias./ Alto e longe elas olham, mas não ousam/ Olhar a quem as olha, e ficam sérias” – para intitular dois poemas. “Em que pensais, meninas, se repousam/ Os meus olhos nos vossos?”, pergunta Bandeira. E se as “Variações” terminam com a seguinte estrofe: “Mas poderei dizer-vos que eles ousam?/ Ou vão, por injunções muito mais sérias,/ Lustrar pecados que jamais repousam?”, o poema de Ana, em contrapartida, diz assim:

 

Atrás dos olhos das meninas sérias

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão,

por injunções muito mais sérias, lustrar pecados

que jamais repousam?

 

Em Atrás dos olhos pardos – Uma leitura da poesia de Ana Cristina Cesar, Maria Lucia de Barros Camargo se refere à escrita de Ana como “palimpséstica”, cheia de “vampiragens”. Neste poema em especial, Ana desconstrói o decassílabo e a rima da última estrofe do poema de Bandeira para chegar ao texto corrido, na fronteira entre a poesia e a prosa. Além de desmanchar a estrutura dos versos, Maria Lucia chama a atenção para uma mudança pequena, mas estrutural, de apenas uma letra: se “eles”, no poema de Bandeira, seriam os “meus olhos”, no poema de Ana, “eles” viram “elas”. Elas, as meninas sérias.

A vampiragem – ou homenagem, bem entendido – se estende a Francisco Alvim, também presente no “índice onomástico”. Ana escreve:

 

Sem você bem que sou lago, montanha.

Penso num homem chamado Herberto.

Me deito a fumar debaixo da janela.

Respiro com vertigem. Rolo no colchão.

E sem bravata, coração, aumento o preço.

 

Em Meios de transporte, o poema ia se chamar “Sem você”. Em A teus pés, ficou sem título. Lago, montanha, no primeiro verso do poema de Ana, é o título do livro que Chico Alvim lançou em 1981 – um ano antes de o livro de Ana ser publicado, portanto. Há mais uma referência a Chico Alvim, em “Conversa de senhoras”. Na primeira versão, em Meios de transporte, escrita com tinta azul na página direita, Ana introduz o poema com “Hommage a Alvim Chico”. “Alvim” está rasurado. E a poeta anota ao lado, no alto: “Pós-marginal 81”. Um X corta a página de cima a baixo. A versão acabada aparece com Pilot preto, na página esquerda, sem a menção.

 

Conversa de senhoras

Não preciso nem casar

Tiro dele tudo o que preciso

Não saio mais daqui

Duvido muito

Esse assunto de mulher já terminou

O gato comeu e regalou-se

Ele dança que nem um realejo

Escritor não existe mais

Mas também não precisa virar deus

Tem alguém na casa

Você acha que ele aguenta?

Sr. ternura está batendo

Eu não estava nem aí

Conchavando: eu faço a tréplica

Armadilha: louca pra saber

é esquisita

Também você mente demais

Ele está me patrulhando

Para quem você vendeu seu tempo?

Não sei dizer: fiquei com o gauche

Não tem a menor lógica

Mas e o trampo?

Ele está bonzinho

Acho que é mentira

Não começa

 

Embora essas pegadas não apareçam em A teus pés, o tom de “Conversa de senhoras” é claramente influenciado pela dicção de Chico Alvim, identificado com o grupo da chamada poesia marginal. Embora não roube nenhum verso específico do autor de Passatempo, o poema de Ana segue a mesma linha temática de “Sonata”. A matéria dos dois – casar ou não casar – tem uma atmosfera muito parecida: fragmentos de conversa, tom coloquial fortemente demarcado. O interlocutor não é definido com clareza, e o narrador parece apenas observar e reproduzir o diálogo alheio, sem intervir. Eis o poema de Chico Alvim em Lago, montanha:

 

Sonata

Prefiro ficar sozinha, obrigada

Não quero casar

Por que visitar-me em você

se sou eu

que compareço a meu fim?

 

Ana tomou para si a arte da conversa, seja nos poemas, nas cartas, nos diários íntimos, no tom de segredo ao pé do ouvido. A intenção aqui é embaralhar ficção e confissão, interpelando diretamente “você”, o leitor. A conversa é múltipla: em muitas camadas, a poeta dialoga com outros autores, como parte do seu processo intertextual, que reúne frases lidas, falas entreouvidas ou, por que não, inventadas.

A colagem de vozes, portanto, vai além do literário, das referências diretas ou cifradas. O diálogo se estabelece também com um interlocutor anônimo, com quem o remetente parece ter uma cumplicidade prévia. Um correspondente de longa data. Como se o leitor fosse seu voyeur, espiando pela fechadura um naco de intimidade alheia, sem conseguir compreender o todo, talvez porque lhe falte uma informação anterior fundamental para juntar as peças do quebra-cabeça. Mas isso é intimidade ou é fingimento?

Em Territórios dispersos – A poética de Ana Cristina Cesar, Annita Costa Malufe constata que “essa intimidade só é apropriada pelo escritor enquanto uma espécie de material bruto, inicial, sobre o qual será necessário trabalhar, empregando o que ela chama de ‘olhar estetizante’”. O sentimento inicial até nasce de “obsessões pessoais”, de experiências vividas pela poeta, mas o resultado – mistura de invenção com biografia – é outra coisa. O poema não é registro da realidade, não é cópia fiel das suas vivências: a matéria-prima é transformada, trabalhada, até, aí sim, virar literatura. “A poesia é uma mentira, mora”, escreveu Ana, aos 16 anos.

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“Vitrine da exposição póstuma”

O título do livro é um suplício, uma provocação. Quase exibicionismo. O volume lançado pela editora Brasiliense reúne, além de A teus pés, três publicações de Ana produzidas de maneira independente, com tiragem pequena: Cenas de abril (1979), Correspondência completa (1979) e Luvas de pelica (1980).

Em todos os livros reunidos, Ana dramatiza, atua. “Não fui totalmente sincera”, escreve. A tal da correspondência completa é composta de uma carta só. O destinatário é “My dear”, e quem assina a carta é Júlia. O conteúdo é feito de muitos enigmas que o leitor, incauto, não consegue decifrar. Há ainda uma troça na publicação original – um livro miúdo, grampeado, assinado por “ana cristina c.”, em caixa baixa, com a imagem de um avião decolando: está indicada como sendo a “2a edição”. É para deixar louco o pesquisador que resolver sair à procura da primeira.

As luvas de pelica, também em prosa, são pura performance. “Não consigo contar a história completa”, lamenta. Impresso na Inglaterra, o livro traz na capa o manequim de uma mulher sorrindo, de olhos fechados, ao lado de um frasco de perfume. Aqui, ela é “ana cristina c”, sem ponto. A caixa baixa se mantém no título, a teus pés, mas agora o nome da poeta vem “ana cristina cesar”, assim como ela assinou a primeira publicação, Cenas de abril.

De fato, é delicado fazer a “vitrine da exposição póstuma”. Dissecar os livros, os poemas descartados, as muitas versões de um mesmo texto, a grafia corrida, as ideias inacabadas, a frase que flutua sozinha na página. Uma delas, “Até segunda ordem não me risque nada”, solta na folha e inédita em livro, escrita com caneta azul, virou o título da análise de Flora Süssekind sobre os cadernos e rascunhos de Ana. Flora destaca o processo poético, a troca de versos, os títulos possíveis: “Há, por exemplo, um ‘Como se tomar imperceptível?’ que quase dá nome a vários textos e acaba deixado de lado”. E continua: esse processo “acaba estabelecendo mais conversações entre um poema e outro do que sua leitura isolada a princípio sugere”.

“Como se tomar imperceptível?” é título de dois poemas curtinhos em Meios de transporte, que seguem inéditos. O primeiro: “Tietagem que só eu conheço./ Dou de ombros”. E o segundo: “Mas vê se não repara no meu/ blacking out”. Ana arrisca um “Como se tomar” no alto do poema em prosa que ficou sem título em A teus pés: “A história está completa: wide sargasso sea, azul azul que não me espanta, e canta como uma sereia de papel”. Por último, “Como se tomar imperceptível?” quase cunhou o poema que começa com “Jururu não sei pedir”, publicado sem título em Inéditos e dispersos. Ou seja, a frase planou sobre quatro textos, mas acabou fora da versão final.

 

“Insisto mais?”

O poema que inicia com “A história está completa” chama a atenção para mais duas pistas, além do título suprimido: a menção ao romance de Jean Rhys, Wide Sargasso Sea, de 1966 (publicado no Brasil como Vasto mar de sargaços), e o gênero estampado na capa de A teus pés, “prosa/poesia”. A constituição híbrida da escrita de Ana, que às vezes assume a forma de prosa poética, fica ainda mais evidente quando se observa a diferença entre a quebra de versos em Meios de transporte e no livro, dificultando a fixação de texto. Talvez porque a poeta seguisse o tamanho da página do caderno, a largura da linha pautada? Ao publicar os poemas em livro, os cortes sofreram uma transformação radical. No caderno, “A história está completa” aparece assim, com dois versos:

 

A história está completa: wide sargasso sea, azul azul

que não me espanta, e canta como uma sereia de papel.

 

E no livro, com três versos, a quebra é na repetição da palavra “azul”:

 

A história está completa: wide sargasso sea, azul

azul que não me espanta, e canta como uma

sereia de papel.

 

Outro exemplo de alteração de corte é o poema “Noite carioca”, que por pouco não se chamou “Inverno europeu” (título de outro poema, na mesma página). Ei-lo, em Meios de transporte:

 

Noite carioca

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco

na contramão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento a

mulher mais discreta do mundo: essa que não tem

nenhum segredo.

 

E no livro, também com quatro versos e o mesmo título, mas com outra diagramação:

 

Diálogo de surdos, não: amistoso no frio.

Atravanco na contramão. Suspiros no contrafluxo.

Te apresento a mulher mais discreta

do mundo: essa que não tem nenhum segredo.

 

Em Meios de transporte, há uma frase, também sozinha na página, com Pilot preto, letras grandes: “Insisto mais?”. Seria um recado para a própria Ana, para insistir em uma ideia, ou é a tal da conversa entre os poemas sobre a qual Flora comenta? O longo poema que abre A teus pés, sem título, começa com “Trilha sonora ao fundo” e termina com os versos “Agora é a sua vez./ Do you believe in love…?/ Então está./ Não insisto mais.”.

 

“É para você que escrevo”

Na folha de rosto de Meios de transporte, uma citação de Roland Barthes paira no alto: “(me dirijo a alguém, que vocês não sabem, mas que está lá na extremidade das minhas máximas) R.B., Fragmentos”. Seria uma possível epígrafe para o futuro livro? Impossível saber se Ana queria usar ou não a citação de Barthes, mas a noção de destinatário, isso é certo, é um dos principais ños condutores de sua poesia. Alguém a quem ela se dirige, na extremidade das suas máximas.

O destinatário é um dos temas de “Literatura de mulheres no Brasil”, curso ministrado por Beatriz Resende em 1983 na Faculdade da Cidade que teve Ana como convidada. Na conversa com a turma, cuja transcrição foi incluída em Crítica e tradução, Ana procura desmontar a ideia de revelação e ocultamento, de disfarce, tendo sempre em mente a vontade de mobilizar o outro, com intimidade fingida. “A literatura é muito pensada”, ela diz. “Se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou.”

O receptor suscita outras questões no longo poema “Fogo do final”, em que Ana escreve:

 

É para você que escrevo, hipócrita.

Para você – sou eu que te seguro os ombros e

grito verdades nos ouvidos, no último momento.

Me jogo aos teus pés inteiramente grata.

 

Nesses trechos do último poema de A teus pés, de onde parece sair o título do livro, a primeira coisa que salta aos olhos é a vampiragem de Baudelaire. O poema “Ao leitor”, que abre As flores do mal, termina com o verso “Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”. Aqui, Ana convoca seu interlocutor fisicamente, se joga a seus pés. A teus pés, aos pés de quem? Marcos Siscar, no ensaio dedicado a ela na coleção Ciranda da Poesia, diz que Ana é avessa à “tirania do segredo”. E arremata: “Sinceridade não existe, no sentido da continuidade entre o que se sente/pensa e o que se diz”.

Se a tirania do segredo é uma marca dos poemas prontos, publicados, essa característica ganha outra camada quando se olha de perto o caderno preto. Ali, na fronteira entre o que se sente/pensa e o que se diz, estão os bastidores, a vontade de ordenar os poemas, de escandir alguns deles, as instáveis quebras de verso, a caligrafia ora concentrada, ora apressada, o descarte de versos, a oficina, a interlocução incessante, as perguntas sem resposta: “Insisto mais?”.

Ainda no curso de Beatriz Resende, a poeta explica que A teus pés sugere “devoção religiosa”, mas implica também “certa humilhação”. E comenta que a capa, desenhada por Waltercio Caldas, por ser sóbria, seca, sem ilustração – que, pode-se imaginar, correria o risco de ser uma mulher jogada aos pés de um homem , dribla essa primeira impressão. Em uma frase, Ana resume não só a capa, mas toda sua poética: “Não é isso que você está pensando”.

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