Devíamos ter ficado em casa? – por Paulo Roberto Pires

Rio de Janeiro > Santa Cruz de Mompox

Devíamos ter ficado em casa?

por PAULO ROBERTO PIRES

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Os nômades só querem estar quietos,
enquanto os sedentários como eu vivem viajando.

Ricardo Piglia, Los diarios de Emilio Renzi

Nós, os gringos, chegamos cedo. O portão discreto sugeria uma casa como tantas outras da rua escura e sem calçamento. Atravessando um corredor largo o suficiente para circular gente, bicicleta e moto, alcançamos o terreno onde se ergue a pequena arena de concreto, uma espécie de circo em miniatura pintado de azul, vermelho e branco. Um cachorro vagava pelos três degraus das arquibancadas ainda vazias, lavadas por uma luz branca. Num canto, perto da entrada do público, dormia um porco, aparentemente de estimação, potinhos de água e comida à sua frente. Àquela altura o movimento já aumentava. Homens em sua maioria, falavam mais alto do que a música ambiente, já alta, e circulavam entre os pequenos grupos formados em torno das estrelas da noite. Era só esperar um pouco mais, nos disseram, que poderíamos ver umas cinco lutas naquela animada rinha de galos.

Antes de serem preparados por seus donos, os galos ficam expostos em gaiolas no chão ou com uma perninha amarrada em poleiros altos, próximos ao teto. É uma espécie de concentração, e cada animal mobiliza três pessoas: uma segura a cabeça, outra cuida das patas e uma terceira, algumas vezes uma mulher, fica por ali com uma vela acesa. A cera quente, vermelha, ajuda a fixar na pata do bicho, protegida por esparadrapo, a longa espora feita de osso – a arma que em poucos minutos decidirá o seu destino. O ritual, admito, tem lá sua beleza, e não resisto a fazer péssimas fotos.

Para encarar o primeiro ato do espetáculo, a primeira luta iria começar logo, fui comprar uma Aguila, cerveja que me pareceu a patrocinadora ideal para o esporte ali praticado. Mas quando cheguei à pequena arquibancada era tarde demais: em menos de três minutos, um galo havia trucidado outro impiedosamente. Muita comemoração pelo que se ganhou em apostas. Nenhuma reação aparente do dono do pobre perdedor, que o carregava ensanguentado para fora da arena. A vida nas rinhas é dura, para os galos certamente.

A segunda luta se anuncia. No centro do picadeiro de chão azul, discretamente salpicado de sangue, os donos seguram seus galos pelas asas, os atiçam e os exibem ao público. É a hora de escolher em quem apostar. Garotos andam de um lado para outro recolhendo dinheiro. Concentrado, o juiz faz o antidoping possível: limpa as pernas dos lutadores, já depenadas, para garantir que não estejam besuntadas com veneno, golpe baixíssimo que eliminaria o adversário pelo bico, quer dizer, pelo simples contato do bico com a pele.

Nós, os gringos, como sempre buscamos referências e chegamos à conclusão, risos um tanto nervosos, de que se trata ali de uma coprodução do Animal Planet com a ESPN, vale-tudo galináceo tão brutal quanto o praticado por humanos.

Ao menos os humanos são voluntários, penso. “A esta hora esses galos deveriam estar dormindo”, comenta uma das gringas, irônica e no fundo desconfortável com o destino de um bicho que nasceu para despertador e, à sua revelia, morre gladiador.

Começa a luta. Não entendo patavinas. Todo mundo grita e torce apaixonadamente. A refrega desta vez é mais longa, os contendores parecem em excelente forma, incansáveis na disposição de investir contra o pescoço alheio. Um sinal do juiz dá a luta por encerrada. Um dos dois venceu, é claro, mas para mim é impossível saber qual, já que desta vez ninguém virou candidato a guisado.

Alguns de nós, gringos-gringos e gringos em seu próprio país, ganham uns milhares de pesos. Não quis apostar. Numa mistura de pudicícia, piedade animal e inusitada superioridade moral, dei para lembrar aos companheiros de viagem que, em meu país, briga de galo é proibida. E por um lapso me esqueci de lembrar que, como quase tudo o que é fora da lei em meu país, a briga de galo rola solta na clandestinidade.

Cinco séculos depois de Montaigne diante dos índios brasileiros, lá estava eu, brasileiro, esquecendo a lição do velho Michel em “Dos canibais”. E começava a desprezar como ato de barbárie aquilo que, simplesmente, não é meu costume. Lá estava eu em Santa Cruz de Mompox, cidade no meio da Colômbia que muitos colombianos não conhecem e que, diz-se, vive parada no tempo. Era sábado, o calor beirava o insuportável e, confrontado com meu preconceito, me sentia estrangeiro para valer e, pela primeira vez, numa viagem que começara meses antes, para variar, entre livros e literatura.

 

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Até agosto de 2015, confesso, não sabia existir no mundo um lugar chamado Santa Cruz de Mompox. Muito menos ser a cidade, fundada em 1540, uma ilhota no meio do Magdalena, rio que liga o centro da Colômbia ao mar do Caribe e tem a força simbólica e cultural de um São Francisco, de um Danúbio. Menos de 24 horas depois, me vi clicando o send, dizendo que, sim, passaria uns dias lá falando para um grupo de jornalistas sobre jornalismo cultural e literatura de viagem. Logo eu, que me considero – e sou considerado, com toda razão – um péssimo viajante.

Não chego a ser daqueles a quem basta a volta no próprio quarto, mas tampouco vivo de prontidão como um marinheiro de Conrad. Viagem para mim é uma intricada equação envolvendo euforia (na decisão ou no convite para partir), sofrimento (nos dias que antecedem a partida), eventual prazer (ao chegar no destino) e, sempre, alívio (na volta à minha cama). Viajo repetidas vezes aos mesmos lugares para tentar manter esses termos sob um mínimo controle e, também, por escasso interesse pela “diferença” como principal motivação para sair de casa.

Acho meio patético brincar de explorador por dias ou semanas e se pretender voltar “transformado”. É como se um jet-lag iniciático fizesse da diferença cultural um remédio para as mazelas que conhecemos – a Europa civilizando o Brasil, o Oriente apontando saídas para o Ocidente. Já experimentei, pelos caminhos nem sempre voluntários do jornalismo, as tais viagens ecológicas, com gente cheia de vontade de comungar com a natureza. Apreciar portentosas geleiras e observar lhamas, animais que cospem e me são francamente antipáticos, não faz parte, definitivamente, de minha ideia de diversão. A máxima “é bom conhecer lugares novos” soa para mim como “o café da manhã é a refeição mais importante do dia”. Posso muito bem passar a vida inteira indo só a Paris e comendo qualquer coisa quando acordo.

Mas eis que o sedentário nômade, que depois da poltrona do avião gosta mesmo é de sentar nas mesmas mesas dos mesmos restaurantes nas mesmas cidades – para pedir os mesmos pratos, é claro – se dispõe a uma experiência. “Vou para Mompox em novembro”, digo casualmente. Para escárnio, nem tão discreto, de quem me conhece bem.

 

 

 

Primeiro os livros, depois as malas. Sempre foi assim. E desta vez não é diferente. Quem organiza a viagem, entre Cartagena de Índias e Mompox, é a Fundación para el Nuevo Periodismo Iberoamericano, a FNPI, criada em 1994 por Gabriel García Márquez. E é em homenagem a ele que se forma essa caravana, uma bolsa de estudos reunindo gente de vários cantos do mundo para discutir e praticar o jornalismo cultural como literatura de viagem.

O Brasil não tem essa tradição. Não há um Bruce Chatwin, um Paul Theroux ou uma Jan Morris brasileiros. Talvez porque, historicamente, somos mais os visitados do que os visitantes. O Novo Mundo nasceu para os colonizadores como paisagem, e seus moradores, como personagens. Seus narradores levaram séculos para se firmar como tais, para exercer o direito elementar de dizer quem são e o que pensam. Talvez por isso, arrisco, seriam eles historicamente menos afeitos aos deslocamentos em busca do que lhes é estrangeiro. Afinal, já havia – e há – muito o que mostrar em casa.

Minha tese, exposta de forma muitíssimo menos elaborada, quase em tom de desculpa, se confirmou num skype entre São Paulo, Cartagena, San Juan e Roma. Me dizem os organizadores que a ideia é essa mesmo, propor uma forma de escrita e observação que tampouco seja assentada na tradição latino-americana.

Menos de uma hora depois de me desconectar, já tinha me abastecido na livraria e no Kindle. Nas pilhas, real e virtual, El general en su laberinto, que não tinha lido, Na Patagônia, o clássico de Chatwin há muito perdido fisicamente e, confesso, também na memória; e, finalmente, The Robber of Memories, relato contemporâneo de uma viagem pelo rio Magdalena escrito pelo inglês Michael Jacobs. Com essa provisão, garantia em português perfeito Ricardo Corredor Cure, diretor da FNPI, eu estaria apto a sobreviver. E, mais do que isso, a dar aula e orientar os jornalistas em meu temerário portuñol e, também, no precário inglês de sempre.

 

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“Gabito não inventou nada. Sempre misturou histórias verdadeiras e pessoas que conheceu”, me diz Jaime García Márquez, irmão mais novo do escritor, em torno de umas cervejas num dos bares mais turísticos de Cartagena, ao lado do principal portão da cidade murada. Poderia ser uma entrevista, mas não era. O encontro foi casual. Eu comemorava, com Carolina Ethel, amiga dele e relatora da viagem, a vitoriosa expedição em busca de uma segunda guayabera, uma que não fosse branca (esta eu já tinha comprado quando cheguei) e que fosse “legítima”, ou seja, que não se destinasse ao turista que deveras sou – e àquela altura já íntimo de um chapéu-panamá “legítimo” que, é claro, só reforçava minha pinta de turista.

De guayabera (esta sem dúvida legítima), calça, sapatos e relógio brancos, brancos como seu cabelo, Jaime é uma espécie de porta-voz do irmão famoso, com quem se parece sutilmente. Trabalha na Fundação e conversa com os jornalistas – dezenas deles – que insistem em buscar na cidade uma espécie de contraprova material de um dos universos ficcionais mais poderosos do século 20. De Mompox, de onde havíamos chegado naquele dia, tínhamos telefonado a Jaime para tirar uma dúvida: era verdade, como nos disse um jornalista e historiador local, que seu irmão, apesar das viagens pelo rio Magdalena, jamais tinha posto os pés na cidade? Jaime não sabia responder, confirmando apenas o que sabíamos: Mercedes Barcha, sua cunhada, com quem Gabo fora casado 56 anos, estudara lá na juventude.

Mompox no existe”, arrisquei, citando o Bolívar de O general em seu labirinto, no que Jaime me cumprimentou efusivamente, por minha memória e conhecimento da obra de Gabo. Achei melhor não fazer qualquer ressalva, mas os preparativos dessa viagem envolveram também um acerto de contas intelectual com seu patrono. Para minha geração, entre os estudantes de jornalismo e cinema que eu frequentava nos idos de 1984, Gabriel García Márquez era um clichê da América Latina que não queríamos mais repetir. Para nós, o mundo estava menos para Macondo do que para os desertos de Paris, Texas. Não soava a Mercedes Sosa, mas a Ry Cooder (antes do Buena Vista, é claro). Na minha turma, tudo o que chamasse a uma identidade coletiva era visto com desconfiança e, logo, com desprezo. A ideia latino-americana de política, esta era mesmo motivo e chacota, bem como as camisetas de Che Guevara que ainda circulavam, a nossos olhos como zumbis, pela universidade. Nossa onda era não ter onda, era viver uma angustiazinha bem comezinha, superlativa apenas na arrogância.

Tempo e bom senso costumam acomodar arroubos juvenis. Se Cem anos de solidão continua de fora de minha ilha deserta, os Doze contos peregrinos, Notícia de um sequestro e Memória de minhas putas tristes fizeram a providencial e necessária faxina no exotismo que parecia colado para sempre à literatura e García Márquez. E, no meio de O general em seu labirinto, me agarro a um trecho em que a descrição de Manuela Sáenz, a amante de Bolívar, me lembra, sem teoria ou política, do quão prodigioso pode ser um narrador, direto e simples: “Havia sido jovem até pouco tempo, quando suas carnes começaram a ter sua idade. Fumava um cachimbo de marinheiro, se perfumava com água de verbena, que era uma loção de militares, se vestia de homem e andava entre soldados, mas sua voz rouca continuava sendo boa para as penumbras do amor.”

“Houve um tempo em que a viagem confrontava o viajante com civilizações radicalmente diferentes da sua e que se impunham antes de mais nada por sua esquisitice”, escreveu Claude Lévi-Strauss em Tristes trópicos, que, não bastasse ser o monumento que é, ainda tem uma das melhores primeiras frases que conheço para um livro desta natureza (“Odeio as viagens e os exploradores”). Mais adiante, o antropólogo adverte: “Há séculos que essas ocasiões vêm se tornando cada vez mais raras. Seja na Índia ou na América, o viajante menos se ‘surpreende’ do que ‘reconhece’.”

Chegar a Cartagena de Índias pela primeira vez é, a propósito, puro reconhecimento. É chegar ao Rio quando o cheiro de mar era das primeiras coisas que se sentia ao desembarcar no Santos Dumont, caminhando pela pista como fazemos hoje no Rafael Núñez, aeroporto ainda livre dos assépticos túneis refrigerados. Chegar a Cartagena vindo do Rio é praticamente não ter saído de uma cidade claramente cindida pela desigualdade, onde, na hora do rush, os ônibus botando gente pelo ladrão levam milhares de pessoas desassistidas para bem longe dos espigões à beira-mar de Bocagrande, o complexo Miami–Barra da Tijuca local, e da cidade murada, o imponente e turístico centro histórico onde muitos trabalham. É caminhar numa rua histórica meio preservada, meio demolida e, virando a próxima esquina, cair no meio do comércio popular de bugigangas made in China.

É também reconhecer de imediato o bar bom e logo descobrir que ele fica ao lado de seu quarto. Não, não é que ele fique num prédio vizinho ao hotel onde você está. Da sacada do Quiebra Canto, animadíssimo bar de salsa, paredes cobertas de memorabilia e cartazes e um prestativo e sisudo garçom, eu poderia passar para a sacada de meu quarto no Monterrey, hotel de ares coloniais onde o bar foi batizado Brasserie Montaigne. É dormir na vibração dos baixos parrudos da salsa e estar bem satisfeito por isso.

Para um brasileiro que conheça minimamente seu país, tampouco há surpresa à medida que se adentra o interior da Colômbia rumo a Magangué, de onde seguimos, de barco, para Mompox. No meio do caminho, em San Jacinto, o restaurante Las Torres Gemelas oferece, em meio a redes e bolsas multicolori-das, “carne, cerdo y comidas salvajes”. Talvez esta última especialidade explique a decoração de animais empalhados – um pelicano de asas abertas, branco e meio encardido, pende sobre o salão em que um taxidermista iconoclasta botou frente a frente as cabeças de um cavalo e de um crocodilo, este com a bocarra aberta.

Leva-se cinco horas de ônibus para percorrer os 216 quilômetros entre Cartagena e Magangué, mas essa distância não faz a cidade mais longe do Norte e do Nordeste do Brasil. Caótica em seu trânsito de gente e motos que cruzam as ruas perigosamente, em todas as direções possíveis, a cidade empoeirada de casas multicoloridas lembra o interior de Pernambuco, do Maranhão ou do Pará. A sapataria Pasos & Pisadas promete: “Evolucionamos su forma de caminar”. E a água de coco gelada, vendida na rua, ajuda a preparar o espírito para a hora e meia de chalupa, barco a motor pequeno que nos garante a forma correta – ou pelo menos poeticamente correta – de se chegar a Mompox: pelas águas do Magdalena, avistando as torres de uma das seis igrejas locais. À famosa frase “Mompox não existe”, José Palacios, o mordomo de Bolívar, responde a seu patrão: “Pelo menos posso dar fé de que existe a torre de Santa Bárbara, daqui estou vendo-a”.

Do meu lugar na chalupa, os contornos de Mompox eram dominados pela torre de La Concepción, igreja da praça principal onde, na tarde em que chegamos, não se via vivalma sob o sol abrasador. Mompox, que servira de locação para a versão de Crônica de uma morte anunciada dirigida pelo italiano Francesco Rosi, resplandecia de uma estranha beleza e evocava o ambíguo slogan oficial para promover o turismo: chegávamos, enfim, à “cidade-museu”. À primeira vista, poderia pensar: “Cidade fantasma”.

 

“Elizabeth Bishop” e “viagem” costumam conviver na mesma frase quando o assunto é estranhamento. A inadequação, e não a curiosidade, levaram-na a viver entre os Estados Unidos e o Brasil. Por aqui ficou 17 anos. Ficou por acaso, a reação alérgica a um caju interrompeu no Rio um cruzeiro que deveria levá-la à Terra do Fogo. Logo se tornou namorada de sua anfitriã, Lota de Macedo Soares, com quem passou a viver entre a beira do mar, numa cobertura do Leme, e a serra, na casa modernista construída por Sergio Bernardes em Samambaia, recanto de Petrópolis. Em 1956, cinco anos depois de chegar, ganhou o Pulitzer de poesia com Norte e sul (1955). Nesta e nas outras duas reuniões de poemas que publicou, Questões de viagem (1965) e Geografia III (1976), o deslocamento explícito nos títulos é sempre um jogo de perdas e ganhos, mais daquelas do que destes.

Leio reiteradamente “Questões de viagem”, o poema que dá título ao primeiro livro escrito e publicado depois de sua chegada ao Brasil, como uma declaração de princípios da literatura de viagem em geral, a ser dividida com os bolsistas, e da minha viagem em particular. Uma declaração involuntária, pois Bishop pouco praticou para valer o chamado travel writing, tão comum entre os escritores americanos. Deixou um livrinho sobre o Brasil escrito de encomenda para a World Library, coleção da revista Life, e o delicioso relato sobre uma ida com Aldous Huxley e Antonio Callado a uma Brasília em construção, com direito a um inusitado encontro com índios. Escreveu-o na expectativa de publicá-lo na New Yorker, onde saiu quase toda sua poesia, mas a revista recusou o texto em 1958.

“Aqui há um excesso de cascatas; os rios amontoados/ correm depressa demais em direção ao mar”, diz o narrador do poema, que começa descrevendo a natureza como um exagero, um excesso. Beleza que às vezes sugere opressão: “São tantas as nuvens a pressionar os cumes das montanhas/ que elas transbordam encosta abaixo, em câmara lenta/ virando cachoeiras diante de nossos olhos”. A paisagem idílica de Minas é, aos olhos da poeta, e aqui na tradução de Paulo Henriques Britto, uma ruína: “Mas se os rios e as nuvens continuam viajando, viajando/ então as montanhas lembram cascos de navios soçobrados/ cobertos de limo e cracas”.

Primeiras impressões negativas até podem se dissolver com o tempo – e muitas vezes se desfazem. Mas a lição é clara: ao escrever sobre o que se vê na viagem, escrever viajando, melhor o estranhamento do que a admiração pura e simples. E lembro de novo de Lévi-Strauss, dizendo-se “embaraçado” ao confessar que o Rio de Janeiro não o agrada em nada, que a tão propalada beleza da cidade a ele parece fora de escala. A seus olhos, a baía de Guanabara parecia a célebre “boca banguela”.

No poema, Bishop prossegue pondo em dúvida o sentido da própria viagem: “Devíamos ter ficado em casa pensando nas terras daqui?”. Uma dúvida que, para ela, é imemorial: “Que infantilidade nos impele, enquanto houver um sopro de vida/ no corpo, a partir decididos a ver/ o sol nascer do outro lado?”. Uma dúvida que chega a alcançar questões éticas: “Será direito ver estranhos encenando uma peça/ neste teatro tão estranho?”.

No terceiro e último dia em Mompox, a pequena Elizabeth Bishop que mora dentro de mim se manifestou em sua plenitude. Desconheço a temperatura que realmente fazia e até então desconhecia aquela sensação térmica, mesmo com uma malfadada passagem por Manaus. Conforme havíamos sido avisados, a cidade ficaria sem energia. Discutimos textos com os jornalistas no limite de tempo de um gerador e da bateria de nossos laptops. Era impossível sair do hotel Casa de España, e difícil ficar nele. A única possibilidade: sentar no chão de lajotas da recepção, ao lado de uma geladeira muda, parada, e extrair dela todos os líquidos ainda frescos contemplando pinheiros nevados e Papais Noéis, o Santa Clós, lembrando que o Natal estava próximo.

Devíamos ter ficado em casa?

Na véspera do apagão, conversatorio (que boa palavra essa) público na casa de Cultura de Mompox. Sábado à noite, um grande salão vazio. “É a Santa Inquisição”, brincávamos ao ocupar a imponente mesa de madeira, cadeiras de espaldar alto, ladeada por retratos evocando a família Germán de Ribón, sua antiga proprietária. Ali falaríamos sobre jornalismo cultural, Jonathan Levi e Héctor Feliciano, coordenadores do curso, Scott Wallace e eu, os professores convidados. Conformados em falar para ninguém, começamos pontualmente, e, aos poucos, o salão foi sendo ocupado. Graças a Jonathan, o “jornalismo cultural”, tema da conversa, foi deixado de lado.

Nosso assunto passou a ser a famosa e polêmica ponte que está sendo construída para melhorar o acesso à cidade, tornar mais visitada e popular – a joia da coroa colombiana que ela de fato é. Afinal, os dias de glória de navegação naquele trecho do Magdalena, há tempos assoreado, são coisa do passado. “Em meus anos de estudante, o percorri 11 vezes em seus dois sentidos, naqueles navios a vapor que saíam dos estaleiros do Mississippi condenados à nostalgia e com uma vocação mítica a que nenhum escritor poderia resistir”, lembra García Márquez no pós-escrito a O general em seu labirinto.

A força mítica hoje desperta menos a imaginação de escritores do que a curiosidade de turistas. Jornais ingleses começam a publicar reportagens sobre a fascinante cidade “parada no tempo”. Europeus, em sua maioria, são presença cada vez mais frequente, e eventualmente ficam por lá, como o austríaco que abriu uma excelente pizzaria ou anônimos alemães que já compram casas e, de leve, inflacionam o mercado local. Inevitáveis “hotéis boutique” também já estão instalados. Seria possível, nos perguntamos, promover e também proteger Mompox?

Uma senhora grisalha e muitíssimo bem-vestida, com ares fidalgos, pede a palavra. Explica didaticamente quanto custa manter uma casa dentro dos padrões exigidos por uma cidade tombada, desde 1995 incluída na lista do Patrimônio Mundial da Unesco. Em sua maioria, as casas mais simples, de fachadas não muito amplas, abrem-se para grandes salas, pátios, quartos. No fim de semana, os moradores levam cadeiras para a calçada e, como nos antigos subúrbios cariocas, ficam papeando de portas abertas, deixando ver uma predileção não exatamente sedutora por luzes frias e o hábito pouco convencional, convenhamos, de estacionar suas motocicletas entre a tv e o sofá.

Mas o que se discutia ali era também a falta de apoio público e os cuidados precários com o patrimônio histórico de igrejas e de um museu de arte sacra, segundo os moradores, deficientes em manutenção e mesmo em segurança. Tudo caminhava muito bem: nós, os gringos, não negamos o fogo da boa consciên cia, da necessidade de preservação, dos inconvenientes da ponte, até sermos interrompidos por um jovem morador que, com a irresistível simpatia dos momposinos, argumentava: não seria, também, igualmente bom se a cidade ficasse menos isolada? Se gerasse mais recursos, mais dinheiro? Não seria uma forma de fazer com que o mundo saiba o quanto Mompox é importante?

Ah, a realidade, esse detalhe que por vezes trava a boa consciência e muitas vezes os debates mais intelectuais. Só nos restava, ali, ir atrás de uma festa de vallenatos, gênero musical que, na semana seguinte de nossa volta, foi considerado patrimônio imaterial pela Unesco, ou partir para as brigas de galo. Aquelas.

Porque no fundo é fácil fazer uma viagem calcada na literatura, desembaraçada dos espetos da realidade pela idealização da ficção. Lembro-me sempre de Janet Malcolm, que não é chegada a facilidades, e de seu Lendo Tchekov, livro que ela chama de “uma jornada crítica”, já que busca fazer um perfil biográfico do dramaturgo e escritor ao mesmo tempo que percorre os lugares onde ele viveu e que o inspiraram. Logo no começo, Malcolm está em Yalta, cenário do conto “A dama do cachorrinho”, e expõe impiedosamente o fracasso indissociável de cada tentativa desse tipo:

Hoje, estou sentada neste mesmo banco perto da igreja olhando para a mesma paisagem. Ao meu lado, está Nina, minha intérprete e guia, que fala inglês (eu não sei russo), e, a uns 400 metros, um chofer chamado Ievguêni nos espera no seu carro, na entrada da trilha que conduz até o ponto panorâmico onde Gurov e Ana tinham se sentado, ainda sem ter ideia do grande amor que os aguardava. Sou um personagem num novo drama: a absurda farsa do peregrino literário que parte das páginas mágicas da obra de um gênio e viaja até o “cenário original”, fadado a ficar aquém de suas expectativas.

Eu mesmo fui até Portbou, na fronteira da Espanha com a França, para ver o lugar onde Walter Benjamin se matou e onde supostamente está enterrado. Nos anos 1990, o impressionante cemitério marinho já ostentava o imponente monumento criado pelo israelense Dani Karavan, mas ainda não existia o museu criado em homenagem a Benjamin e aos deportados em geral. Ainda assim, no único hotel que encontrei aberto num inverno, pude perceber a falta de criatividade de minha peregrinação literária: panfletos em alemão sugeriam caminhadas refazendo, nos Pireneus, a travessia que Benjamin realizou antes de se decidir pelo fim. Mas uma certa hostilidade dos poucos habitantes da ciade deserta, o olhar atravessado de alguns de seus moradores diante de turistas tão extemporâneos – sobretudo quando perguntei pelo hotel onde ele havia se matado – terminaram materializando o que os livros apenas sugerem: que Portbou, tradicionalmente conservadora, franquista nos anos 1940, não exatamente prezava os refugiados que por ali passavam, especialmente judeus. E que aquele passado, pelo menos àquela altura, não era boa coisa de se lembrar.

E aqui Bishop volta, na segunda parte do poema, em que valoriza, finalmente, a experiência imperfeita mas direta da viagem em si. Ter ficado em casa, diz o narrador, é “não ter parado num posto de gasolina e ouvido/ a melancólica melodia de madeira, com duas notas só,/ de um par de tamancos descasados/ pisando sonoros, descuidados,/ um chão sujo de graxa”. Conhecer um lugar está em todas as coisas, até mesmo por comparação, pois naqueles tamancos descasados está o contraponto pobre, miserável, com o que talvez nem se percebesse em outros lugares como, por exemplo, a Holanda: “(Num outro país, os tamancos seriam todos testados./ Os dois pés produziriam exatamente a mesma nota.)”

O que o viajante-escritor percebe aí é a possibilidade de “ter especulado,/ confusa e inconclusivamente,/ sobre a relação que existiria há séculos/ entre o mais tosco calçado de madeira/ e, cuidadosas, caprichosas,/ as formas fantásticas das gaiolas de madeira”. Na bela imagem do poema, sem a estrada, sem a viagem, jamais seria possível “ter estudado história/ na caligrafia fraca das gaiolas”.

Talvez porque escrever sobre a viagem, observa Lévi-Strauss, ele de novo, é ter como objetivo representar o mundo em cinco dimensões: “Uma viagem se inscreve simultaneamente no espaço, no tempo e na hierarquia social. Cada impressão só é definível relacionando-a solidariamente com esses três eixos, e, como o espaço possui sozinho três dimensões, seriam necessárias ao menos cinco para se fazer da viagem uma representação adequada.”

 

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Por vício, busco em Mompox o que ela pode me dar de literário. E, na cidade, a presença marcante é a de Candelario Obeso (1849-1884). Poeta quando nenhum negro na Colômbia sonhava em ser poeta, tradutor, boêmio cercado por histórias mirabolantes, Obeso matou-se aos 35 anos com um tiro na barriga. Tudo isso quem me diz é Javier Ortiz Cassiani num ensaio para El Malpensante, a primorosa revista que, justo no mês em que estou lá, lança uma “Edición Negra”. Aprendo ainda que, além de sua importância social, deixou em sua poesia o registro da dicção popular, sobretudo em Cantos populares de mi tierra. Tudo isso li depois, no avião, voltando ao Brasil. Lá, na cidade onde viveu, seu nome aparece em placas comemorativas – “La Academia de Historia de Santa Cruz de Mompox a Candelario Obeso en el centenario de su muerte – 1884 Julio 3 1984” – e no imponente e alegórico túmulo que domina o cemitério da cidade.

Mas ao atravessar a inscrição “Aqui confina la vida con la eternidad”, no pórtico do cemitério, não é Obeso que atrai a atenção. É mesmo impossível uma peregrinação literária sem o amor pelo autor, amor que fez Cees Nooteboom viajar o mundo para fazer o livro Tumbas e que também orientou John Berger em Aqui nos encontramos. No lindo cemitério, quase todo branco, chamam atenção as dezenas de gatos que ficam dormindo pelos bancos e pelo chão da capela central e perambulam pelas alamedas. Diversas reportagens dão conta dos “guardiães” dos mortos momposinos e, é claro, há explicações sobrenaturais para sua presença – tudo teria começado depois da morte do filho de um médico local, que atraíra seu próprio gato e muitos outros para os túmulos.

Pode-se, no entanto, passar horas entre os túmulos pulando de nome em nome e, sobretudo, apreciando a especial retórica com que a cidade eterniza seus mortos. Dos que me lembro, se destaca “El Legendario Santiago Arevalo Castro – Chago 5 Letras”. Trata-se de um acordeonista, provavelmente dedicado aos vallenatos, morto aos 61 anos há pouco tempo, em 2010. Sob sua foto empunhando o instrumento, a mensagem comovente, que transcrevo no original, em benefício da dramaticidade que, para quem fala português, o castelhano traz:

Super:

Le tocaste a la vida y al amor y aunque muy triste fue tu partida,
para los que te amamos siempre estarás presente en nuestros corazones
como una luz en el camino

Recuerdo de su esposa, hijos y nietos.

Estaria eu ao menos me iniciando na disciplina, férrea, de estudar história “na caligrafia fraca das gaiolas”?

 

 

No final do poema de Elizabeth Bishop, faz-se um “silêncio de ouro”. O narrador, que é e não é ela, enfrenta a pausa de uma chuva nunca antes ouvida, caudalosa, “tão parecida com discurso de político:/ duas horas de oratória implacável”. É o momento decisivo, aquele em que “a viajante abre o caderno e escreve”. É o momento em que a viagem se transforma em outra coisa, poesia, diário, jornalismo, ensaio. Uma pletora de imagens, notas, lembranças, marcações no Facebook, fotos no Instagram, os livros comprados na viagem, os livros antigos, panfletos de turismo, revistas, emails, conversas.

Diante do caos, lembro de Claudio Magris, que na introdução de Danúbio, esse livro impressionante sobre um outro rio mítico, compara a literatura do viajante com uma mudança, uma mudança de casa, processo caótico e aflitivo em que “alguma coisa, como em toda mudança, se perde e alguma coisa vem à superfície de esconderijos escondidos”. Busco, por isso, identificar caixas, organizar gavetas, arrumar lugar para que tudo pareça acolhedor e convidativo nesta narrativa. Em minha contabilidade final, muita coisa se perdeu. Uma ou outra apareceu de surpresa.

Peço ajuda a viajantes involuntários como Andrés Neuman, que aturdido por um tour de lançamento de livro que o levou a 19 países latino-americanos em poucas semanas, registrou o que pôde, como pôde, no antidiário Cómo viajar sin ver. “Enquanto viajamos”, escreve ele, “só há tempo para a lembrança. Nossos olhos estão cheios. Nossos músculos, cansados. E só resta força para continuarmos a nos mover. Fazer a mala nos obriga a suspender o passado. O tempo resvala na pele do viajante. Para o sedentário, ao contrário, o tempo passa lento e deixa marcas. A tranquilidade é o motor da lembrança.”

Levo meses convivendo com as lembranças, com as leituras, com novas leituras. E termino no ponto final de Bishop, a companheira de viagem ideal para os que, como eu, ao voltarem ainda pensam se deveriam ter partido:

 

Continente, cidade, país: não é tão sobeja
a escolha, a liberdade, quanto se deseja.
Aqui, ali… Não. Teria sido melhor ficar em casa,
onde quer que isso seja?

 

 

Paulo Roberto Pires (1967) é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e editor da serrote. Foi professor convidado na terceira edição da Bolsa Gabriel García Márquez de Jornalismo Cultural, reunindo na Colômbia 15 jornalistas de 11 países em novembro de 2015.

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