Uma breve história natural da urna – por Renato Lessa

Uma breve história natural da urna

por RENATO LESSA

Quando eleição é sinônimo de captura de voto por predadores políticos profissionais, convém rever as origens do recipiente que é o coração da política

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Não tem mesmo jeito. Nos tempos que correm, o termo “urna”, antes de evocar o belo “Ode sobre uma urna grega”, de John Keats, dirige-nos ao coração da política, na suposição de que algo equivalente ao órgão pode ser encontrado em meio ao ofidiário. A palavra “urna” denota o ritual pelo qual um conjunto de seres humanos expressa-se politicamente, ao designar quem o governará ou representará. A associação da palavra com a coisa naturalizou-se; parece mesmo que foram feitos um para o outro: tudo passa pela urna, sem ela não há política. É pelo que depositamos nas urnas que parte do sistema político e representativo se configura.

Um breve exercício de arqueologia política nos revelaria uma espécie de história natural da urna, um objeto que teria sido introduzido na semântica política em uma eleição isolada – uma by-election – em Pontefract, pequena cidade do condado de West Yorkshire, na Inglaterra, em 1872. Rezam os registros que ali, naquela altura, deu-se um experimento original, o da prática do voto secreto. Naquele mesmo ano, o parlamento inglês, através do Ballot Act, consagrara o princípio, propugnado pelo movimento cartista da década de 1830.

Nessa possível origem britânica, dá-se, pois, uma associação necessária entre urna e voto secreto. Quem diz voto secreto diz urna: o princípio exige o segredo e o silêncio da manifestação individual, e nada como encerrá-la em algo que viria a merecer o qualificativo extremo e duvidoso de “inviolável”. Bem sabemos que as datações são confusas, e na matéria em apreço há mais um motivo para o estabelecimento de querelas entre ingleses e franceses. De fato, a Constituição francesa, promulgada no ano III da Revolução de 1789, estabelecera em seu artigo a generalização do voto secreto, sem efeito prático. Nova incursão foi feita na Constituição de 1848, mas a França só viria a ter alguma regularidade eleitoral após a queda em 1870 do Napoleão sans phrase, no dizer furioso de Karl Marx no 18 Brumário de Luís Bonaparte, como efeito da Guerra Franco-Prussiana, e com a III República.

Do outro lado da Mancha, o princípio do voto secreto decorreu do progressivo alargamento do eleitorado britânico, por meio de sucessivas reformas eleitorais. A primeira, ocorrida em 1832, desvinculou o direito de voto da propriedade agrária aristocrática, fazendo-o depender da renda, ainda que com linha de corte alta, e tornando o voto mais urbano. De todo modo, plebeus ricos e mais do que remediados são incluídos naquilo que a crônica um tanto autocongratulatória britânica designou como The Great Reform Act. Quebrado o monopólio aristocrático, as pressões pela abertura de acesso à representação se fazem crescentes, por todo o século 19 britânico. Tema aliás tradicional naquelas ilhas. Já os niveladores – levellers –, radicais reformadores do século 17, haviam advogado o “sufrágio universal masculino”, expressão na verdade um pouco contraditória.

De qualquer forma, em 1867, ocorre uma importante reforma política no Reino Unido, o Representation of the People Act, com a incorporação ao eleitorado de homens adultos pertencentes ao que hoje descreveríamos como as classes médias.

Tal ampliação altera a paisagem política, pela duplicação do eleitorado e a consequente emergência de um “mercado político” de votos, abertos à captura e à utilização de meios tão clássicos quanto eficazes: suborno, intimidação e chantagem. A eficácia dos meios era garantida pelo voto a descoberto, julgado por muitos como a forma “máscula” e “corajosa” e exprimir opções eleitorais. O voto secreto, portanto, decorre desse duplo processo: alargamento dos eleitorados e necessidade de proteção das escolhas eleitorais dos cidadãos. A urna é o aplicativo preferencial que viabiliza a convergência daqueles processos. O Ballot Act, também de 1872, introduz a “tecnologia” que viabiliza o voto secreto.

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No caso brasileiro, as urnas foram generalizadas a partir das eleições para a Assembleia Constituinte de 1933, após a promulgação do Código Eleitoral de 1932, elaborado pelo bravo gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil, com o acolhimento do voto obrigatório, do sufrágio feminino, do voto secreto, do voto proporcional e da criação da Justiça Eleitoral independente. Uma revolução para ninguém pôr defeito. Cada país terá sua história a respeito e sua experiência específica com as caixas invioláveis.

Com o tempo, deixaram de ser caixas e transformam-se em máquinas – mecânicas ou eletrônicas. Nossas geringonças eletrônicas, no entanto, conservaram o uso do termo urna. De fato, uma estranha expressão: “urna eletrônica”. O Brasil destacou-se como um dos países mais avançados no que diz respeito a processos de alimentação das urnas. Há dúvidas sobre a proficiência nacional no que diz respeito ao que fazer com o que sai delas.

Se é verdade que a urna é inglesa, é importante registrar que naquelas ilhas jamais se empregou o termo para designar o objeto. Em notação local, trata-se de uma caixa, mais precisamente de uma ballot box. Na deflação metafísica que assola aquelas paragens, nome e coisa em geral andam a par. No caso em questão, trata-se de uma designação pela qual o nome aparece colado à coisa: uma “caixa de votos” é a expressão justa que precisamos para indicar o objeto dotado de tal finalidade. Foram seguidos nessa economia simbólica pelos seus vizinhos imediatos, falantes de diferentes modalidades de gaélico: bosca ballóide, em gaélico irlandês; blwch pleidleisio, em galês; e bogsc baileit, em gaélico escocês.

A escolha de nome assim tão deflacionado de simbologia não se deveu à ausência da palavra urna, adotada em várias línguas como aplicável ao objeto em questão. A palavra urn, afinal, está disponível no léxico inglês, mas, segundo o bom e velho Longman, aplica-se a duas dimensões sagradas: como urna funerária e como recipiente para guardar o chá. Como se depreende com facilidade, finalidades cujo nome não pode ser atribuído a algo tão mundano quanto uma caixa de votos. Nada de conspurcar signo tão nobre com tão comezinho artefato.

Latinos, acompanhados por falantes de outras línguas, preferiram associar o objeto a um velho nome: urna (italiano, espanhol, português), urne (francês). De todo modo, ao associarmos o termo urna ao objeto em questão, fazemos com que vários dos sentidos que acompanharam a história e a errância do signo se apresentem diante do recipiente.

Primo Levi, em um curto e inspirado ensaio – “Una bottiglia di sole” –, definiu os humanos como construtores de recipientes. Uma proposição simples, sobre a qual uma sofisticada antropologia se constrói: para ele, a vida dos humanos está associada à criação de artefatos que delimitam experiências e expectativas. Primo Levi derivou a necessidade desse traço antropológico a partir da experiência com um mundo onde os significados humanos ordinários foram destruídos, assim como os modos tradicionais de “recipientizar” a vida: o campo de extermínio.

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O recipiente urna dá, portanto, sentido a uma experiência com o mundo. A memória do signo evoca a guarda de conteúdos preciosos e não ordinários, com exigências de inviolabilidade. Tal é o caso das urnas funerárias, recipientes de visitação interditada, mas que guarda nos seus estreitos limites o sentido e o mistério da morte. A urna grega – “inviolada noiva de quietude e paz” – de Keats, em tradução de Augusto de Campos, pode ser assim tomada como protótipo do objeto encoberto pelo signo: há ali coisas guardadas que transcendem a materialidade e a utilidade das pequenas coisas. A questão que se põe é saber de que recipiente se trata; o que ali se deposita, para além dos pedaços de papel recolhidos às ballot-boxes.

Uma urna é um objeto que se impõe quando algo deve ser guardado e ocultado. Uma caixa se abre de modo não cerimonioso; uma urna impõe aos que a abrem uma certa reverência. Indo ao ponto: a urna é o recipiente que encerra em si o povo político, algo bem distinto do povo demográfico. Por meio da urna – e por nela entrarmos –, acabamos transfigurados em partes de um corpo político. A urna, portanto, é o recipiente que nos contém; nós somos a urna.

A cultura da urna veio substituir uma mi ríade de modos de configuração do povo político: aclamações, mãos levantadas, sorteio, caucus e voto a descoberto cumpriram galhardamente tais funções. É enorme a criatividade humana na invenção de modos de instituição do corpo político. Vejam que curioso exemplo de criação de sujeitos políticos em um mundo sem urnas: em Newcastle upon Tyne, de acordo com a Carta Real de 1345, prefeito e quatro baillifs (autoridades locais) elegem sete homens; o conjunto de 12 (5 + 7) escolhe quatro, que a seguir escolhem oito; os 12 resultantes (4 + 8) elegem mais 12, e os 24 que daí resultam elegem os quatro town officers, para cuja escolha todo esse engenho foi desenhado. Trata-se de um sofisticado modelo de escolha eleitoral ba sea do em conjuntos distintos de eleitores, que se elegem sucessivamente até a decisão final.

Dada a existência da urna, talvez seja o caso de adotá-la como ponto de observação a respeito da qualidade da política. Basta acompanhar os seus fluxos: o que entra nas urnas e o que delas sai. O primeiro aspecto diz respeito à qualificação dos eleitores e define o modo pelo qual entramos no recipiente. O segundo também é de grande gravidade: abertas as urnas, contabilizados os votos, que mecanismos configuram a passagem da expressão do povo político para o de sua representação? Há muitos modos em ação no mundo. Os mais generosos procuram minimizar o desperdício daquilo que o recipiente encerra, ao mesmo tempo que ponderam os resultados com base na distribuição proporcional das opções. Os irlandeses, por exemplo, possuem um sistema eleitoral – o Single Transferable Vote –, uma espécie de orgulho nacional, pelo qual os eleitores podem ordenar suas escolhas, de forma que o voto pode ser transferido para outras opções, por indicação de seus titulares. A regra é não desperdiçar votos. Já os ingleses contabilizam apenas os votos majoritários, os que vencem eleições e levam todo o prêmio, de acordo com a regra “the winner takes all”. Possuem o mais primitivo de todos os sistemas eleitorais, designado por alguns como o “Modelo Westminster”.

Apesar de nossa bela tradição proporcionalista, desde os idos de Assis Brasil, aqui permitimos que o voto migre para candidatos e partidos que não são de escolha expressa dos eleitores. O destino dos votos, com frequência, discrepa das intenções presentes no seu ponto de partida. Trata-se de um modelo de captura de sufrágio, praticado por predadores políticos profissionais. Mais do que isso, cabe falar de um modelo de negócios, calcado em engenhosa máquina de conversão cambial, pela qual o valor agregado da expressão política de um conjunto de seres humanos transmuta-se em estoque de valor, aberto à apropriação privada.

Pobre urna, pobre povo político. O que será de nós quando não mais coubermos nesses recipientes?

 

Renato Lessa (1954) é professor titular de teoria política a Universidade Federal Fluminense e investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Foi presidente da Biblioteca Nacional e é autor de, entre outros, Presidencialismo de animação e outros ensaios sobre a política brasileira (Vieira e Lent, 2006) e A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da Primeira República Brasileira (Topbooks, 2015).

Gabriel Jaguaribe Giucci (1987) é artista plástico. Nasceu em Princeton, nos Estados Unidos, mas cedo veio para o Brasil. Fez cursos de pintura na UFRJ e na New School, em Nova York, e em 2015 foi indicado ao Prêmio Pipa. Na Galeria Portas Vilaseca, no Rio, expôs Monolitos (2011) e esta série, Desvio (2016), composta por retratos de personagens envolvidos na Operação Lava Jato.

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