O Brasil trágico de Agustina – por Guilherme Freitas

O Brasil trágico de Agustina

por GUILHERME FREITAS

A partir de agora, serrote passa a publicar resenhas de obras de não ficção estrangeiras e nacionais. O primeiro livro resenhado é “Breviário do Brasil”, que reúne textos da portuguesa Agustina Bessa-Luís sobre suas viagens pelo país. 

“Fui criada na memória do Brasil”, disse a portuguesa Agustina Bessa-Luís ao receber o Prêmio Camões de 2004, no Rio de Janeiro. Longe de ser só um agrado aos anfitriões, o discurso foi uma celebração da presença do país na vida e na obra da escritora. Filha de um comerciante que voltou a Portugal depois de 25 anos no Brasil, ela cresceu ouvindo histórias do pai sobre a boemia da Rua do Ouvidor e lendo os livros de Joaquim Nabuco, José de Alencar e Machado de Assis que ele levou na mala. Nascida em 1922 na pequena Vila Meã, tinha quase 60 anos quando enfim confrontou essas memórias com a realidade brasileira. Já era a celebrada autora de romances como A sibila (1954) e Fanny Owen (1979) ao desembarcar no país pela primeira vez, em 1982. Nas duas décadas seguintes, voltou oito vezes.

Os textos que escreveu a partir dessas visitas estão reunidos no recém-lançado Breviário do Brasil (Tinta da China). O ensaio homônimo, lançado em Portugal em 1991 e até então inédito por aqui, é fruto de uma longa viagem com uma comitiva de intelectuais portugueses. Entre março e abril de 1989, eles cruzaram em ritmo vertiginoso duas dezenas de cidades: do Rio a Recife, de lá para Brasília e São Luís, Belém e Manaus, com várias escalas na Bahia e em Minas Gerais, até a volta ao Rio. Nesse percurso, Agustina recusa o Brasil edulcorado dos guias turísticos. Não liga para paisagens, nem para monumentos. “A parte mais interessante do Brasil não pode ser localizada por uma excursão de burgueses que se movem por admirações históricas e colectivas”, escreve. “O Brasil não se deixa ver, nem ouvir, senão por assombração”.

O que assombra Agustina durante a viagem? Em primeiro lugar, a voz dos escritores que lia com devoção desde a infância. No Recife, evoca João Cabral de Melo Neto ao passar pelas margens do Capibaribe e pensa em Manuel Bandeira como seu “anfitrião”. Em Salvador, o balanço das mulheres a remete a uma personagem de Jorge Amado que “andando, remava um pouco”. Lembra de Machado de Assis (“um de meus melhores amigos na literatura”) até numa caminhada por Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Lá, mesmo a milhares de quilômetros do Rio descrito por Machado, conclui que ele é “um autor profundamente cravado na realidade brasileira”, não só pelos cenários ou tipos que retrata, mas porque “tem a arte de sugerir o amor sem lhe dar importância”.

Agustina segue também o rastro de personagens históricos, dos nobres aos renegados, com curiosidade especial por Lampião. Analisa a complexa relação do Brasil com a herança portuguesa (“O brasileiro é um pouco o português do avesso”, escreve). E se interessa sobretudo pela vida das ruas. Alguns dos pontos mais luminosos do ensaio surgem de seu fascínio pelo cotidiano das cidades. Numa calçada carioca, enxerga a insuspeita “elegância natural do vendedor de rua”, que oferece seus produtos “como quem dá”. Em Ilhéus, observa longamente um violeiro que “canta, lento, como se dormisse encostado ao violão, porta de sua eternidade”. Um casal que dança lambada inspira uma digressão sobre a paixão: “estão sempre enlaçados, sempre carregando-se um ao outro, e tudo o que há de estável no amor têm que o recolher do ar que respiram e forjá-lo numa espécie de fanática resolução. Se pararem, o amor desaparece e morre.”

Em meio a esses assombros, Agustina enxerga um país que em nada lembra o clichê da alegre nação tropical. Aos seus olhos o Brasil é um país de “natureza trágica”, premido pela sensação constante de que “pesa sobre ele qualquer coisa de sinistro”, mas onde, no entanto, prefere-se “enganar a vida com a alegria, em vez de se fantasiar de herói em nome da tristeza”. Não se sabe se ela ouviu Vinicius cantar que o samba é a tristeza que balança, mas há algo do Samba da benção em suas palavras. “Não é a alegria que salva o brasileiro, mas essa força hercúlea que sobe do chão e o agarra, para que não sucumba”, escreve. “Uma força que é uma espécie de grandiosa tristeza hereditária, notável até quando parecem se divertir e quando troçam”.

Hoje com 94 anos, Agustina tem lugar assegurado entre os grandes nomes da literatura de língua portuguesa. Sua vasta obra, com cerca de 50 livros de ficção e ensaio, inclui ainda peças de teatro e uma prolífica colaboração com o cineasta Manoel de Oliveira, que fez mais de uma dezena de filmes a partir de livros e roteiros da autora. Apesar disso, ela ainda não tem no Brasil o prestígio de que desfruta em Portugal. Seus principais romances lançados aqui – A sibila (Nova Fronteira, 1982) e Vale Abraão (Planeta, 2004) – estão fora de catálogo. Breviário do Brasil reapresenta Agustina ao leitor brasileiro e revela a amplitude de seu olhar sobre o país. Mas também os limites desse olhar.

Quando deixa de lado as observações minuciosas de viajante para esboçar teorias sobre o Brasil e o brasileiro, Agustina às vezes deriva para generalizações sobre a identidade nacional. E expõe uma visão idealizada das relações raciais no país. Caminhando pela avenida Rio Branco, por exemplo, admira-se com a “total falta de preconceito racial”, impressão reafirmada ao longo do livro. Nesse ponto, Breviário do Brasil deve muito a Stefan Zweig, não por acaso citado já na primeira frase do ensaio. Agustina parece disposta demais a confirmar a profecia do austríaco que, ao encontrar aqui um refúgio do nazismo durante a Segunda Guerra, viu na miscigenada sociedade brasileira a promessa de “um país do futuro”. Mas ela intui o que há além das aparências: a certa altura, conclui que “o racismo é um estado de alma”.

No prefácio da edição mais recente de Brasil, um país do futuro (L&PM, 2006), Alberto Dines, biógrafo de Zweig, lembra as críticas à visão esperançosa do autor feitas desde o lançamento do livro, em 1941. E pergunta: “Zweig errou ou foi o Brasil que escolheu o modelo errado?” A leitura de Breviário do Brasil em 2016 provoca questões parecidas. Mobilizando memórias afetivas, referências literárias e mitos nacionais, Agustina constrói o retrato de um país onde indivíduos e culturas diversas convivem sem se anular, em tênue equilíbrio. Um Brasil que talvez só exista como utopia, mas que apesar disso, ou justamente por isso, assombra a viajante:

“Às vezes, no decorrer desta viagem, perguntaram-me o que penso do Brasil. Pergunta rotineira, mas a que eu respondo como se ela fosse a principal: em todo o mundo nós somos como um rebanho mandado para o matadouro enquanto nos preparam para vencedores. Mas no Brasil ainda há uma espécie de predestinação que é o que faz a esperança de um povo. (…) No Brasil, onde muitas mudanças se operam, eu notei no homem comum um respeito profundo pela bondade que, de certo modo, não se adopta ou se cultiva como identidade colectiva, mas que não está condenada. De repente, ela está presente, arde como uma lâmpada, aparece como o maior dos direitos humanos”.

GUILHERME FREITAS é editor-assistente da serrote

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