As Memórias póstumas de Brás Cubas na Revista Brasileira

serrote #1, março 2009

As Memórias póstumas de Brás Cubas na Revista Brasileira

SAMUEL TITAN JR.

 

Por uma convenção editorial, a Revista Brasileira não fazia distinção grá­fica entre ficção e ensaio, nem os separava em seções distintas. Por uma outra convenção, também não indicava junto ao título de cada texto o nome de seu autor, que saía na última página, à maneira de assinatura. Assim, o leitor que começasse a folhear o número de 15 de março de 1880 não teria como saber à primeira vista de quem eram e a que gênero per­tenciam aquelas Memórias póstumas de Brás Cubas que a revista come­çava então a publicar.

As tais Memórias começavam de chofre, no primeiro capítulo, com uma epígrafe de Shakespeare (As You Like It III.2) mas sem a dedicatória “Ao verme” e a nota “Ao leitor” a que nós, leitores do romance em livro, estamos acostumados. Essa ausência, aliás, torna mais saborosa a esqui­sitice do título: num exercício especulativo, podemos imaginar que mais de um leitor da Revista Brasileira terá começado a ler o romance como se fossem as memórias postumamente publicadas de algum sujeito de carne, osso e nome de sabor histórico, para logo se ver confrontado no primeiro parágrafo com o óbito do narrador, não “pro­priamente um autor defunto, mas um defunto autor”.1

É um efeito ou escaramuça menor, que só pode se produ­zir no formato da revista, isto é, sem capa ou folha de rosto a indicar de saída a diferença entre o autor Machado de Assis e o narrador Brás Cubas; mas é o suficiente para que nos per­guntemos se o escritor não terá tratado de incorporar vários aspectos da revista, como as convenções gráficas, a prática da serialização – as Memórias foram publicadas na Revista Brasileira entre 15 de março e 15 de dezembro de 1880 – e mesmo os vizinhos de página à textura do romance.

Assim, é delicioso notar, lendo-se as Memórias na Revista, como volta e meia Machado realça o fim de um maço de capí­tulos destinados a um dado número da revista por meio de um fecho de parágrafo mais desaforado – e, portanto, tam­bém realça o desaforo ao postá-lo no fim de uma leva de capí­tulos. Assim, em 15 de abril, a última frase do atual capítulo 22 (“Não, não alonguemos o capítulo”) deixava o leitor a ver navios até o número seguinte. O convite terrível ao fim do atual capítulo 34, que encerrava a quota do número de 15 de maio (“e acabemos de uma vez com esta flor da moita”), e no qual se tratava da pobre Eugênia, certamente soava mais terrível por não haver espaço para maiores explicações. O mesmo vale para a conclamação final do atual capítulo 109 (“Eu fui direto ao mar. Venha para o humanitismo”), cujo ar de bravata e de “piparote” ao bom senso do leitor era ainda maior por vir ao fim da leva de 1 de outubro .2

Nada disso é, em princípio, estranho à praxe oitocentista do romance de folhetim serializado, gênero bem conhecido do nosso autor e de seus leitores de 1880. Conhecedor do gênero, da técnica – as Memórias eram seu quarto romance publicado em forma seriada – e da expectativa do público, Machado diver­te-se, contudo, em atiçar a curiosidade romanesca do leitor apenas para frustrá-la em tom de zombaria. No folhetim, por exemplo, a aparição de uma mulher misteriosa anuncia grandes peripécias; no capítulo 1 das Memó­rias, Virgília é anunciada apenas para ser posta para fora da cena: “Tenham paciência! Daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora”. No capí­tulo 3, é a vez de Cotrim, outra personagem central, a ganhar nome mas não corpo: “O Cotrim, um sujeito que… Mas não antecipemos os sucessos; acabemos de uma vez com o nosso emplasto.”

Esse prazer meio perverso em frustrar o leitor ganha nome (“pachorra”) no capítulo 4:

“Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a tor­cer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem. Pois lá iremos. Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra […].”

E, quando parece retornar à boa regra e cuida de providenciar uma tran­sição narrativa mais corriqueira, o narrador de Machado o faz em tom explí­cito, excessivo e paródico: “E agora vejam com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro”.

Mais do que apenas praticar um gênero, Machado o pratica e o expõe, num movimento que é tanto cômico quanto autorreflexivo. Esse viés da escrita machadiana distingue-a, de um lado, da indústria com que um Alencar se aplica a incorporar a fórmula do romance folhetinesco à lite­ratura brasileira e, de outro, do modo como um Flaubert, publicando Madame Bovary na Revue de Paris ao longo de 1856, converte a peripécia romanesca em tema do romance e já não permite que o suporte seria­lizado afete a composição da narrativa. Mais tarde, no livro de 1881, o próprio Machado se encarregaria de formular, na nota “Ao leitor”, a sua própria singularidade: “[…] a gente grave achará no livro umas aparên­cias de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual”.

Mas o jogo de espelhos entre as Memórias e seu contexto imediato vai além de aspectos gráficos e editoriais. Como já vimos, na Revista Brasileira as Memórias dividiam espaço em pé de igualdade metonímica com o que passava por ser a fina flor da cultura letrada do Brasil da época.

Folheando a revista nos anos em torno a 1880, o leitor dá com uma homenagem coletiva a Camões (para a qual Machado contribuiu com o soneto “Um dia, junto à foz do brando e amigo”); o longo poema “O Beata Solitudo! (Nas Cabeceiras do Rio Barcarena)”, assinado por um certo Júlio César; ensaios sobre “Delinquentes impúberes”, “As bactérias e os vibriões”, “As ostreiras de Santos e os kiokken-moddings da Dinamarca”; uma tradu­ção do Tartufo e outra das Institutas do imperador Justiniano; sem falar de “Gwerziou breiz izel” ou “Cantos populares da Baixa Bretanha”. A prática da serialização aplicava-se também aos ensaios mais extensos, de modo que, números a fio, as Memórias eram acompanhadas ou antes perseguidas pelos sucessivos capítulos da “Poesia popular no Brasil”, de Silvio Romero, e pela “Questão penitenciária no Brasil” (longa, muito longa, insuportavelmente longa), de um certo A.H. de Souza Bandeira.

Se então, com a pauta da Revista Brasileira ainda fresca na memória, reto­mar as Memórias, o leitor dificilmente escapará à sensação de déjà-vu. No romance e na revista, encontrará a mesma erudição bacharelesca, a mesma grandiloquência, os mesmos fumos de classicismo e, por que não dizê-lo, a mesma “sede de nomeada”, tão pronunciada nos muitos colaboradores da revista quanto no narrador Brás Cubas. Lendo-se por esse viés, o capítulo “A moeda de Vespasiano” passa a fazer parte do mesmo mundo que a tal ver­são das Institutas de Justiniano, a reminiscência de um verso latino em “O autor hesita”, em que se fala de Virgília, replica a douta querela em torno à “Interpretação de um verso da Eneida” (Revista Brasileira, 15 de abril de 1880); do mesmo modo, o humanitismo de Quincas Borba e o emplasto de Brás Cubas começam a se assemelhar às discussões fartas e quase sempre de segunda mão que correm soltas nas páginas da revista.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *