De Henry James para Stevenson

serrote #3, novembro 2009

Um norte-americano fascinado pela cultura europeia e transplantado para a Inglaterra, um escocês enredado pelo encanto dos arquipélagos do oceano Pacífico, e um afetuoso polinésio chamado Ori-a-Ori. Uma troca de cartas entre pessoas de backgrounds e universos mentais tão diversos, por si só pitoresca, se torna ainda mais interessante quando dois dos missivistas são os escritores Henry James e Robert Louis Stevenson. Eles haviam tido um primeiro contato em 1884, quando Stevenson publicou um “humilde protesto” contra o clássico ensaio de James sobre a arte da ficção. A discussão teórica desdobrou-se numa correspondência íntima e numa grande amizade. Em 18 8 7, contudo, Stevenson partiu para longa perambulação pela Polinésia. E foi no Taiti que fez amizade com seu anfitrião e guia Ori-a- Ori. Mais tarde, seguiria viagem rumo a Samoa, onde ficaria até morrer, em 1894.

 

De Henry James para Stevenson

CARTA ABERTA

DE VERE GARDENS, 34, WEST LONDON 31 DE JULHO DE 1888

Meu caro Louis,

Você está longe demais – ausente demais –, invisível, inaudível, inconcebível demais. A vida é brevíssima, e a amizade é matéria muito delicada para tais lances, para que se cortem nacos sanguinolentos assim –— um ano de uma vez! Por isso, volte. Que tudo vá à breca, que tudo vá a pique – e que você volte logo. Mais um pouco e deixarei de acreditar em você: não quero dizer (no sentido habitual do termo) em sua veracidade, porém literalmente e mais fatalmente em sua verdade – sua existência objetiva. Você se tornou um belo mito –— uma espécie de mort inusitado, incômodo, insepulto. Mês a mês, você faz soar sua voz em tons tão felizes –— todavia, ela vem de muito longe, do outro lado do globo, e então você é para mim como um mosquitinho andando pela superfí­cie inferior da minha poltrona. Suas aventuras são, sem dúvida, maravilhosas; só não consigo, de fato, evocá-las, entendê-las, acreditar nelas. Posso crer nas que você escreve, Deus sabe, mas não nas que você vive, ainda que as últimas, eu sei, levem a novas revelações acerca das primeiras, e sua habilidade com elas seja, decerto, maravilhosa o bastante. Este é um brado pessoal e egoísta: eu o quero de volta; pois a literatura é solitária, e Bournemouth é árida sem você. Seu lugar em meus afetos não foi usurpado por outro, porque não há nem sequer a sombra de outro que possa usurpá-lo. Se houvesse, eu tentaria perver­samente me interessar por ele. Mas não há, repito, e literalmente não me inte­resso por nada senão por sua volta. Não tenho nem mesmo seu romance para enganar o estômago. Os lânguidos e úmidos meses vão passando e nem sinal dele. Sobre a cornija da lareira, vejo tremeluzir o belo retrato de sua mulher – o gentil McClure o trouxe há alguns meses, entretanto, a imagem parece difusa, distante e deliciosa como a de uma beldade do século passado. Quisera eu que você tivesse saudade – quisera eu que sua farra chegasse ao fim. O tempo anda sem feição. O verão está impregnado de reumatismo – uma estação sombria, sufocante, como nunca se viu. A cidade está vazia, mas não vou partir. Não tenho dinheiro, porém tenho algum trabalho. Faz pouco, escrevi uma série de relatos breves – esses você não vai ver enquanto não voltar para casa. Acabo de começar um romance [The Tragic Muse] que deve sair pela Atlantic [Monthly] a partir de 1º de janeiro e que espero concluir antes do fim deste ano. Na verdade, acho que não estarei livre dele até meados do ano que vem. Depois disso, se Deus quiser, não vou, por um bom período, escrever nada que não seja breve. Quero deixar uma multidão de imagens do meu tempo, projetando meu pequeno foco circular sobre o maior número possível de pontos, primando tanto pelo número como pela qualidade, de tal forma que o número chegue a um conjunto que tenha valor como observação e testemunho. Mas não há uma única criatura aqui para quem eu possa sequer murmurar tal intenção. Nada se destaca nestas ilhas a não ser a vil politicagem. A crítica é de uma estu­pidez e de uma puerilidade abjetas – ela não existe –; ela rebaixa a inteligên­cia de nossa raça a um nível muito rasteiro. Todas as manhãs, Lang, no D[aily] N[ews] e, creio, em centenas de outros lugares, emprega seu estro fácil e frágil para reduzir tudo ao mais baixo nível da falação filistina – é a visão da velhota aqui ao lado ou do sabichão a uma mesa de jantar. Outro dia, a Sociedade dos Autores Ltda. (sou membro e acho que você também, embora não saiba bem de que se trate) ofereceu um jantar aos literatos americanos para lhes agra­decer as preces em prol do copyright internacional. Eu tive o cuidado de me abster por achar precipitada a comemoração, e vejo pelo Times desta manhã que a ventilada ventura nunca esteve tão distante. Edmund Gosse enviou-me uma engenhosa biografia de Congreve, que acaba de sair, e eu a li, contudo não é tão boa quanto a outra, de Raleigh. Mas basta deste assunto insuportável… Vamos, meu caro Louis, não vivamos à míngua. Não tenho como demovê-lo porque, como disse, mal consigo concebê-lo. Você matou a imaginação em mim – aquela fração que o figurava e na qual você aparecia vívido e próximo. Sua mulher, sua mãe e o sr. Lloyd sofrem também, devo confessar, desta falta de alento, de fé. Tenho, claro, sua carta de Manasquan (é este o nome estú­pido?) do dia… Mas que ingenuidade a minha, pensar que havia uma data! Era terrivelmente impessoal – de pouco me serviu. Mais um tempo e já não acre­ditarei em você, já não poderei lhe mandar minhas bênçãos. Tome esta, por­tanto, como sua última chance. Sigo seus passos com uma asa dolorida, uma geografia inadequada e uma esperança imorredoura. Sempre seu, meu caro Louis, até o último ralho,

Henry James

 

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