G de Galinha, NINA HORTA

serrote #3, novembro 2009

G de Galinha, NINA HORTA

ALFABETO serrote

 

A galinha do vizinho bota ovo amarelinho, bota um, bota dois…

 

Não foi a Clarice Lispector quem inventou a galinha. Fui eu. Percebi a galinha pela primeira vez em Minas Gerais, no lado doido de Minas, dos pomares sombreados de mangueiras, das minhocas sob o tronco das bananeiras, das galinhas cegas afogadas no seu próprio escuro, se debatendo no rego gelado. Sabem que nos pagos com uma rua, uma igreja e um cruzeiro, ninguém se aguenta por muito tempo. Não se pode sentar praça nesses fins de mundo, sob pena de virar santo ou louco – as duas alternativas completamente sujas de cocô de galinha.

Bem pequena ainda, me vejo no colo da mãe jogando milho, dentro do galinheiro. Ela sentada numa pedra alta, eu espar­ramando risadas no divertimento de levantar os braços com o milho, e as pobres bichinhas naquele escândalo incoercível que é o das galinhas. E a primeira história que escutei foi a de Pin­doba, Pindobinha e Pindoboba, que fugiram do galo e, quando já estavam a ponto de morrer de cansadas, acharam um saco.

Do quê? perguntava eu ao pai de bigo­dinho e cabelo à brosse carrée. De milho, do amarelinho. E eu entupia o papo como o das fujonas, saciada de milho, de milho amarelinho.

Depois, as férias na roça, tudo um mis­tério, tudo doía, porque era novo, nunca sentido ou visto. Assim, no momento em que o galo correu e pegou a galinha, senti um frio na barriga. Ela, a própria submissão entediada; ele, o macho orgulhoso e rápido. Senti que todo o mistério da vida estava ali, que o mundo era aquilo. E continuávamos judiando da galinha cega, não a do João Alphonsus, mas a galinha branca e cega do quintal, e a jogávamos no riacho onde ela se debatia feito louca, levada pela própria correnteza e depois pescada por nós, Jucas e Chicos tupiniquins muito malvados.

Mais tarde, vida afora, só deu galinha. Galinha para matar, galinha para comer, galinha para se emocionar. Porque eu me emociono quando vejo uma galinha, seja lá quem for. Me impressiono com a franga,

uma Gisele Bündchen de vida curta, não dura nada, só corre daqui para lá, num desfile de pernas finas, e pluft, vira galinha redonda de avental. Vestida sobriamente, gorda, choca os filhos, sem nenhuma seme­lhança com a franga que deixou para trás; acomoda-se em matrona, quentinha, o olhar muito burro, e não é só o olhar, a gali­nha gosta de ser burra, porque concentra todo o seu amor naqueles ovos; quem diria que um bicho tão sem graça produziria a perfeição da elipse do ovo. Incoerências. Lindos, ela choca sonhos, símbolo, nas­cimento, glória, clichês. Tem coisa mais bonita que um ninho de ovos proclamando em flashes brancos o mistério da vida?

Com o galo já dá para implicar um pouco, un peu ridicule, mas deixa pra lá…

E não dá para esquecer da galinha, ela é meio arroz de festa, viva ou morta, na panela ou na arte. Pela sua simplicidade, astuta ou verdadeira, é sempre usada esteti­camente para denotar o bom campo, as lides campestres. Pintada, filmada, esculpida, é reconfortante até na canja. E graças a essa forte impressão causada pela galinha, não se vê um filme francês, brasileiro, finlandês, japonês, que ao mostrar o campo não ponha em primeiro lugar na tela uma galinha cis­cando, pois uma galinha vale mil takes, ela explica o clima, aquilo é uma fazenda, uma casa, uma terra escondida, o refúgio da batalha; e a galinha é filmada por todos os cabeças de ovo –— ela, sim, é a dona do ovo.

E o pior – ou melhor, não sei –, é que me mandam recortes de jornais sobre ela. Um caminhão se espatifou, cheio de legor­nes, contra o muro de uma escola. Aí, elas saíram imediatamente e, com a habilidade afiadíssima das galinhas de se acostumar a tudo, começaram a construir o ninho nos escorregadores, balanços, quadrados de areia, como se aquilo fosse seu cotidiano, sua obrigação, seguindo o galo por onde ele fosse, numa submissão tácita e tolerante.

Um cientista japonês descobriu que as ner­vosas meninas desorientadas têm uma grande tendência à depressão, à roxa depressão, mas que se acalmam com óculos de lentes roxas. Levou a cabo a experiência. Do alto do seu poleiro passaram a enxergar em plangente roxo. Tudo. O galo, o riacho, o milho. Parece que melhoraram e, inclusive, quando postas na estrada com um carro atrás, elas fugiam se desviando, e não correndo bem loucas e se esgoelando em frente às máquinas.

Em verbetes, geralmente se conta a histó­ria do sujeito. Não se pode dizer que elas não tenham história. Já foram retratadas como deusas, mas de deusas a criadas foi um passo. É uma história meio atropelada, pois tudo que se escreve sobre seu passado é de ouvir falar, porque galinha nem fóssil tem, quem a come tritura os ossinhos, chupa o caldo lá no fundo.

Há um concurso, verdade, de miss Gali­nha numa cidadezinha perdida, onde as frangas são maquiadas, enfeitadas com brincos e turbantes, pulseira dourada na canela fina, tutu de filó, óculos gatinho (com certeza roxos, nem dá para acreditar, qual outro bicho aguentaria esta infâmia sem piar?). É que são vaidosas.

Falando assim, parece que são todas iguais. Não são. O filósofo romano Julius Alexandrinus diz, confirmando Aristóteles: “Tenho visto galinhas aqui e ali que se apo­deraram do espírito dos machos, depois de alguma vitória sobre eles, e cobrem o galo como num coito, em tentativas infrutíferas, é claro, mas às quais se acostumaram”.

No Brasil, a história da galinha remonta ao descobrimento, já que a nau de Cabral ainda tinha uma quando aportou aqui. E ele mostrou um carneiro a índios de boa índole que não fizeram dele caso. E Caminha con­tinua: “Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela, não lhe queriam pôr a mão, depois a tomaram como que assus­tados”. Que história é essa? Como é que quase tiveram medo? Como é que índios acostumados a uma enorme variedade de pássaros, vestidos com sua arte plumária, teriam medo justamente de uma galinha? Podemos dizer que a ave era da Índia, des­conhecida para eles. E daí? Não conheciam o carneiro e dele não fizeram caso. É fácil imaginar o que aconteceu. Temos intimi­dade com esse bicho inseguro, medroso, cheio de incertezas, vamos lá, burro mesmo. A galinha é burra, todo mundo acha. Vinha viajando há 40 dias, cheirava mal, o pescoço já não tinha penas, coçavam-lhe os piolhos. E, ao ser mostrada aos nativos, bateu-lhe aquele medo súbito, viscoso. Olhos miúdos de pânico, o que poderia pensar a pobre coi­tada, enjoada da terra pouco firme do navio, viajando de quinta classe, agora segura pelas pernas, nariz beijando as alcatifas de Cabral? Pensou no perigo, com certeza. E entrou com aquele bater de asas fremitoso, no grito muito alto e estridente, no alvo­roço, seu choro.

Confesso que também tinha um pouco de medo de galinhas, especialmente de matá-las, e invejava minha mãe, que lhes torcia o pescoço sem o menor problema. Lá no fundo de mim, eu queria e sabia que ainda teria de matar uma galinha para exorcizar… o quê? O medo de matar uma galinha. Mas não tinha ideia de quando nem onde. Um dia, no sítio, um americano em lua de mel pediu galinha de cabidela. Tivemos vontade de enganá-lo, dizendo: esquece, as cabidelas só dão no tempo das pitangas. Mas não deu jeito, a mulher dele falava bem português, desci para o gali­nheiro. Traidora, joguei milho bem perto de mim, a franga não resistiu, parou a cor­reria e veio. Pisei nos pés dela, com a faca amolada raspei a penugem do pescoço, e depois corri a lâmina afiada, rasgando a pele. Cortei mais fundo. O sangue fresqui­nho pingou no banco rústico. Que chatice, vai entranhar na madeira, fiel testigo de mi traición, nunca mais vou conseguir esque­cer. É impressionante. Um bicho vivo e alerta há um segundo tinha uma vidinha de nada, um sopro, um fio, uma piscada. Enfiei na água fervente, depenei, facílimo, as penas se soltam sozinhas, a pele como a de um pulso, finíssima, esgarçando. Pronto, já tinha um frango pelado como os da viúva Chaves, que também gostava de aves. Pen­sei que o mundo ficaria como um Gólgota, nós ali debruçados sobre a morte, mas a vida continuava igual, numa radiosidade intensa e parada. Todos e tudo, impávidos diante do sangue. Restou uma ave magrela e sua bacia de sangue para cabidela, que não dá no tempo das pitangas.

Só contei esta história de matar a gali­nha porque o verbete precisa da vida e da morte. E aprendi um tanto com aquele enfrentar a morte, bem naquele sítio. Me deu vontade de mudar para lá depois que consegui matar. Temei, penas, temei. Sozi­nha, sem relações humanas para adminis­trar, força no coração para matar sem medo e sem perder a ternura, dia após dia, as estações passando, o mar azul, o cheiro de lenha, a chuva criadeira, lugar perfeito para criar a galinha. O silêncio, as pedras da rua, a lua que se bota sobre o cavalo branco, o galinheiro tosco, mas o mais importante é a sozinhez de velha louca, a absorção diária e ínfima da escuridão, até alcançar a indife­rença feroz das galinhas para com a vida e a morte, incautas, imortais.

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