O fim da canção (em torno do último Chico)

serrote #3, novembro 2009

O fim da canção (em torno do último Chico)

FERNANDO DE BARROS E SILVA

 

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, “ÁPORO”

 

Foi numa tarde de dezembro de 2004, durante uma longa entrevista concedida em seu apartamento, em Paris, que Chico Buarque levantou dúvidas a respeito da relevância e do lugar da canção no mundo contemporâneo. Quem sabe ela fosse um gênero do século passado, e a irrupção de um fenômeno como o rap, o sinal mais evidente de que seu tempo passou.1 Vindo de quem vinha, causou um discreto alvoroço. Ainda que enunciada na forma de uma interroga­ção e cercada de cuidados, a declaração daria outro alcance a uma discussão que já havia se insinuado em círculos espe­cializados, mas sem maiores repercussões. Chico instaurava a questão para um público amplo. Mais do que isso, dava lastro e rosto a um mal-estar de que era não só observador, mas protagonista, tocando mais uma vez em um nervo sen­sível da cultura brasileira.

Convém iniciar relembrando o núcleo do que ele disse, para então procurar discernir, sob o primeiro impacto que a ideia provoca, qual é seu peso real, o que nos permite tratar de alguns mal-entendidos que ela engendrou. Tomar o “fim da canção” ao pé da letra, pelo valor de face, parece tão equi­vocado quanto imaginar, na ponta oposta, que estamos diante de um artifício retórico, um mero truque de linguagem.2 Nem uma coisa nem outra, a pedra, também aqui, está no meio do caminho.

Com isso, espera-se, enfim, esclarecer como a obra recente de Chico irá traduzir a desconfiança aguda de que sua existência se tornou, mais do que nunca, problemática, a despeito da consagração do artista. Em outras palavras, em Carioca, naquilo que ele tem de melhor, a canção, apesar de tudo, se constitui como cifra de uma experiência social que parece transbordar seus limites, desafiando-a.

Chico especulava naquela entrevista:

Talvez tenha razão quem disse que a canção, como a conhece­mos, é um fenômeno próprio do século passado. […] A minha geração, que fez aquelas canções todas, com o tempo só apri­morou a qualidade da sua música. Mas o interesse por isso hoje parece pequeno. Por melhor que seja, por mais aperfeiçoada que seja, parece que não acrescenta grande coisa ao que já foi feito. E há quem sustente isso: como a ópera, a música lírica foi um fenô­meno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido. Noel Rosa for­matou essa música nos anos 1930. Ela vigora até os anos 1950 e aí vem a bossa-nova, que remodela tudo − e pronto.

Logo em seguida, depois de apontar esse “interesse pequeno” pela produção atual de uma geração que, no entanto, só “aprimorou a qualidade da sua música”, Chico faz a conhecida referência ao rap, fala da sua dificuldade para voltar a compor e termina por associar seu trabalho à figura e à influência soberanas de Tom Jobim:

Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou. Estou dizendo tudo isso e pensando ao mesmo tempo que talvez seja uma certa defesa diante do desafio de continuar a compor. Tenho muitas dúvidas a respeito.

[…]

Esse pessoal [do rap] junta uma multidão. Tem algo aí. Eu não seria capaz de escrever um rap, e nem acho que deveria. Isso me interessa muito, mas não como artista e criador. O que eu posso é refazer da melhor maneira possível o que já fiz. Não tenho como romper com isso. E quando penso na melhor maneira possível, penso imediatamente em Tom Jobim. Ele foi meu mestre desde o começo. E, depois que ele morreu, eu sinto paradoxalmente ele mais presente na minha maneira de pensar a música e mais presente no panorama geral da música brasileira.3

No final de 2004, é muito possível que Chico tivesse em algum lugar da memória a entrevista com José Ramos Tinho­rão, publicada poucos meses antes. Nos termos daquele seu marxismo, movido a golpes de tacape, o crítico havia decre­tado sem mais o fim “dessa canção que nasce contemporâ­nea do individualismo burguês”, para saudar, com ares de vingança, a “grande novidade” do rap, que vinha “restaurar a música da palavra”. Mas dizia isso ressalvando − porque então não seria ele − que “a maior parte desses raps é bronca de otário da periferia”.4 Não é o caso de perder muito tempo com Tinhorão. Basta lembrar o esclarecimento feito por José Miguel Wisnik a respeito da paternidade da ideia (ou da origem da discussão em torno da ideia) de que o rap era “a grande novidade” no cenário musical brasileiro. No posfácio que escreveu ao seu ensaio “Global e mundial”, transcrição de um debate realizado em 2001 numa universidade carioca, Wisnik recorda que, na presença do próprio Tinhorão, com quem dividia a mesa, ele havia chamado a atenção para o sig­nificado do rap no país, o que é fato:

Quero comentar, entre tudo o que se seguiu à época áurea da MPB (cuja centralidade no mercado musical brasileiro parece ter durado até o início dos anos 1980), um acontecimento forte e significativamente fora do esquadro popular-nacionalista: refi­ro-me ao rap de São Paulo, tal como se encontra realizado, por exemplo, no CD Sobrevivendo no inferno, dos Racionais MC’S. Para mim, esse é o mais marcante fato novo da música no Brasil desde muito tempo, como expressão social, como linguagem, como fenômeno de produção, distribuição e criação de público.5

2 respostas para O fim da canção (em torno do último Chico)

  1. Pingback: Um outro Chico, um outro país: divagações sobre “Caravanas” – ESCUTA.

  2. Pingback: “Canções do Fim”, por Pedro Cazes (Colégio Pedro II e IESP/UERJ) – BVPS

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