O que não existe

serrote #3, novembro 2009

O que não existe

BEATRIZ BRACHER

 

Cinco horas da manhã, Helena não quer voltar ao quarto e incomodar o sono de Emílio. Entra no quarto de Frida e pega uma roupa dela. A calça larga e comprida e a blusa frouxa lembram as diferenças de conteúdo entre as pri­mas. No final do pasto, nasce um traço de luz laranja-escuro. Helena calça sua botina suja da terra desta última semana, e veste o casacão de Marcos.

Cinco e meia, na estrada de terra o dia já clareou e o ar gelado ocupa o lugar do ciúme noturno madrugada adentro, os pulmões se alargam, as mãos relaxam e esquentam com a caminhada rápida. Helena diminui o ritmo. Sonhou, lembra-se agora, com um rato. Havia outras pessoas na sala, era uma mistura de sala com quarto, ela, Emílio e amigos usavam as camas como sofás. O rato que surge de dentro do saco podia esconder-se, pensa Helena já definitivamente acordada. A ratazana poderia ter saído da boca do saco esquecido no chão pela menina, olhado o movimento e corrido para se esconder em um canto escuro, como ratos costumam fazer. Não, ele saiu, encarou Helena e pulou em direção ao seu rosto com os dentes arreganha­dos. Desde que a menina falara que havia um rato dentro do saco, Helena sabia que a luta seria com ela. Agora, na estrada de terra, procura controlar as lembranças de seu pesadelo, caminha mais devagar, mais depressa, sus­pira, pula pedaços e volta depois. Quem era esta menina? Por que ninguém fez nada?

Cinco e quarenta e cinco. Emílio chegou tarde ontem de noite, deve dor­mir até depois das dez, Marcos e Frida chegam para o almoço. Helena tira o casacão, estica-o sobre o capim úmido e deita-se. O rato não some, teme que ele volte a ser perigoso se ela cochilar. Precisa pensar e pensar até trans­formá-lo novamente em um camundongo covarde. Lembra-se que seus polegares estão doendo, no sonho ela apertava o pescoço do rato e com os polegares imobilizava sua boca, empurrando os maxilares para cima de modo que ele não pudesse mordê-la.

A menina do saco tinha cílios longos, cabelo preto e cacheado. No sonho era ainda uma menina, sem curvas; ali no capim, Helena vê os quadris e seios se arredondarem, e isso a incomoda, o cabelo e as curvas. Seu ciúme sempre é insuportável, sente-se intoxicada por uma nuvem imunda que dificulta sua respiração. Precisa deixar o ciúme crescer, crescer, até não aguentar mais e explodir. Essa menina deixou de matar o rato quando seria simples, antes do ataque. No sonho, Helena imobilizava o rato usando toda a sua força, sabia que não daria conta para sempre, que o rato conseguiria resistir e finalmente, quando seus polegares cedessem, ele iria lhe morder o rosto. Deitada, agora, sobre o casaco de Marcos, ela imagina seu polegar cedendo e o rato atacando seu olho. Antes de ele tocar seu rosto, ela simplesmente lhe acerta um soco que o faz voar longe. Emílio cai na gargalhada e olha para a menina buscando sua cumplicidade, a menina, esticada sobre a cama de bruços, com o queixo apoiado nas mãos, como se estivesse assistindo a um programa chato na tele­visão, sorri. Helena levanta-se cheia de ódio. Seu marido não se dá conta da monstruosidade que ela agora é e continua a rir. Helena está de pé com o punho levantado, caminhando em direção a Emílio; então, no capim, ainda muito cedo, ela é tomada por um desamparo sem fim, como ele pôde fazer isso comigo? Quer interromper a imaginação, esquecer o sonho, quer escon­dê-lo no fundo do saco, ela não tem forças para deixá-lo crescer e ser desmas­carado (é mentira, é mentira, é só um sonho). Como ele pôde? O melhor é parar com isso, abrir os olhos, levantar e continuar a caminhar. Vamos, diz para si mesma, quando sente os dentes da ratazana em sua perna e abre os olhos apavorada. É uma vaca que lambe sua canela.

Ela sente um monumental alívio por ser uma vaca, e não um rato. Se enche de amor pela vaca, por sua língua rosa com manchas pretas, áspera, parece a mãozinha suja de uma criança fazendo comida de lama.

Helena não tem filhos, é jovem, recém-casada. Muito branca e miúda, seu cabelo, castanho-claro, parece com o de uma menina de um ano de idade, ralo e fino. Por mais feminina que se faça, por mais colorida que se vista e por mais doce que seja seu olhar, é irremediavelmente miúda, branca, reta e com um estranho senso de humor.

Seis da manhã, o rato sumiu. Uma família de guaxinins cruza a estrada de terra. Os filhotes pendurados na mãe e vários outros jovens e adultos correm para dentro do mato baixo. Os urubus planando em círculos no céu mar­cam o lugar do matadouro. Helena finalmente se levanta, a vaca afasta-se com tédio amistoso. Outras vacas, que a observavam em um semicírculo já bastante fechado, abrem caminho para a mulher pequena e desperta.

Ela está com fome e vontade de fumar. Poderia ter comido alguma coisa antes de sair de casa, mas naquela altura do dia tinha contas a acertar consigo mesma. Uma hora depois, o débito já é menor, mas não liquidado, não quer voltar para casa e correr o risco de encontrar Emílio acordado. De um jeito ou de outro iria cobrar o que ele não lhe deve (ela não quer saber).

Helena não suporta seu ciúme, tem desejo de morrer. O desejo de matar arde em seus olhos, torna sua visão turva. Ficar ao lado de Emílio é o inferno. Vai aprendendo o que fazer com o ciúme que a ofende (cresce de repente, por qualquer coisa, ou o quê?), a humilha profundamente. Ver o sol e pas­sear costuma aliviar a dor.

O caminho até o matadouro passa por uma ladeira íngreme. No período das chuvas, quando desciam a cavalo, iam por uma faixa de capim que ladeava a estrada, para evitar o cascalho escorregadio. Um dia, ela e os primos viram a caçamba de um caminhão tombada, o motorista fumando um cigarro, um boi arfando deitado, já quase morto, e outros, sujos de barro, pastando.

Seis e quinze, Helena caminha devagar, em dúvida se quer mesmo chegar. Ela espera que ainda exista a pequena venda, ao lado do matadouro, onde possa tomar café e comprar cigarro. Seu medo é que o matadouro esteja fun­cionando. O lugar é no fundo do vale, construído sobre um brejo mal ater­rado. Mesmo quando não estava funcionando, o cheiro de sangue e vísceras permanecia na terra encharcada. Há anos não vai lá.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *