Os Aforismos reunidos de Franz Kafka

70-71 O indestrutível é um só: cada indivíduo em particular o é, e ao mesmo tempo ele é
comum a todos, daí a força sem paralelo da união indissolúvel entre os homens.

72 Existem no mesmo ser humano conhecimentos que, a despeito da completa diferença entre eles, têm o mesmo objeto, de tal forma que só é possível concluir que há sujeitos diferentes no mesmo ser humano.

73 Ele devora os despojos que caem da própria mesa; sendo assim, na verdade, fica por algum tempo mais satisfeito que todos, mas se esquece de comer à mesa; com isso, porém, deixam de cair no chão também os despojos.

74 Se o que devia ser destruído no paraíso fosse passível de destruição, então isso não era decisivo; mas se era indestrutível, então vivemos numa falsa crença.

75 Teste a si mesmo pela humanidade. Ela faz quem duvida, duvidar, quem acredita, acreditar.

76 O sentimento: “Aqui eu não ancoro” –— e imediatamente sente a sua volta as ondas da maré montante arrastando.

Uma reviravolta. À espreita, com medo, esperançosa, a resposta cerca a pergunta, examina desesperadamente seu semblante inacessível, segue-a pelos caminhos mais sem sentido, ou seja: os que se empenham em chegar ao lugar o mais distante da resposta.

77 O convívio com os seres humanos atrai para a auto-observação.

78 O espírito só fica livre quando deixa de ser um suporte.

79 O amor sensual nos ilude sobre o amor celeste; sozinho, não poderia fazê-lo; mas pode, uma vez que tem dentro de si, inconscientemente, o elemento do amor sensual.

80 A verdade é indivisível, portanto não pode ter conhecimento de si mesma; quem quer que diga conhecê-la está se referindo a uma mentira.

81 Ninguém pode exigir o que, em última análise, o prejudica. Se uma pessoa em particular, afinal de contas, parece ser assim – e talvez existam sempre pessoas desse tipo –, isso se explica pelo fato de que alguém, no ser humano, exige algo que na verdade o beneficia, embora prejudique seriamente um segundo, em parte atraído para julgar o caso. Se a pessoa foi colocada logo de início, e não apenas na hora do julgamento, ao lado da segunda, então a primeira teria desaparecido aos poucos e com ela a exigência.

82 Por que nós nos queixamos do pecado original? Não foi por sua causa que fomos expulsos do paraíso, mas por causa da árvore da vida.

83 Não somos pecadores somente por termos comido da árvore do conhecimento, mas também porque ainda não comemos da árvore da vida. O estado em que nos encon­tramos é pecaminoso independentemente de culpa.

84 Fomos criados para viver no paraíso, o paraíso estava destinado a nos servir. Nosso destino foi modificado; que isso tivesse acontecido também com a determinação do paraíso, não é dito em parte alguma.

85 O mal é uma irradiação da consciência humana em certas situações de transição. Não é propriamente o mundo sensorial que é aparência, mas o mal que carrega consigo e, seja como for, constitui o mundo dos sentidos para os nossos olhos.

86 Desde o pecado original fomos essencialmente iguais para conhecer o bem e o mal; no entanto, é exatamente neste ponto que buscamos nossas vantagens particulares. Mas é só além desse conhecimento que começam as verdadeiras diferenças. A apa­rência recíproca é provocada pelo seguinte: ninguém consegue contentar-se apenas com o conhecimento, mas tem de lutar para agir de acordo com ele. Contudo, não lhe foi atribuída a força para fazer isso; em consequência, ele tem de se destruir, mesmo correndo o risco de não adquirir com isso o poder necessário, mas não lhe resta nada senão essa última tentativa. (É este também o sentido da ameaça de morte associada à proibição de comer da árvore do conhecimento; talvez também o sentido original da morte natural.) Ora, ele tem uma tentativa; prefere revogar o conhecimento do bem e do mal; (a expressão “pecado original” tem origem nesse medo) mas o que aconteceu não pode ser suprimido, apenas turvado. É com esse objetivo que as moti­vações vêm à tona; com efeito, todo o mundo visível talvez não seja outra coisa senão uma motivação do ser humano para sua vontade de descansar um momento. Uma tentativa de falsear o fato do conhecimento, para só então transformá-lo em objetivo a ser atingido.

87 Uma fé como uma guilhotina, tão pesada e tão leve.

88-89 A morte está diante de nós, pouco mais ou menos como um quadro da batalha de Alexandre na parede da sala de aula. O que interessa é obscurecer ou até borrar, com nossos atos, ainda nesta vida, essa imagem.

90 Duas possibilidades: fazer-se infinitamente pequeno ou ser assim. A primeira é a perfeição, ou seja, a inação; a segunda, o início, a ação.

91 Para evitar um equívoco verbal: o que deve ser ativamente destruído precisa antes ter sido sustentado com firmeza total; o que desmorona, desmorona, mas não pode ser destruído.

92 A primeira adoração dos ídolos foi sem dúvida medo das coisas, mas também, rela­cionado com este, o medo da necessidade das coisas e, relacionado com isso, o medo da responsabilidade por elas. Essa responsabilidade parecia tão gigantesca, que nem mesmo se ousou impô-la a um único ser humano, pois, pela mera mediação de um ser, a responsabilidade humana não teria sido aliviada o suficiente, o con­vívio com um ser apenas teria sido contaminado de uma maneira mais profunda ainda pela responsabilidade; por isso, deu-se a cada coisa a responsabilidade por si mesma, mais: deu-se a essas coisas, também, uma medida da responsabilidade para o ser humano.

93 Pela última vez, psicologia!

94 Duas tarefas do início da vida: limitar seu círculo cada vez mais e verificar continuamente se você não está escondido em algum lugar fora do seu círculo.

95 O mal às vezes está na mão como um instrumento conhecido ou desconhecido; se alguém tem vontade de fazer isso, ele pode ser posto de lado sem oposição.

96 As alegrias desta vida não são as dela, mas o nosso medo de ascender a uma vida mais elevada; os tormentos desta vida não são os dela, mas o nosso autotormento por causa daquele medo.

97 Só aqui o sofrimento é sofrimento. Não como se aqueles que aqui sofrem devam ascender a outro lugar em função desse sofrimento, mas no sentido de que aquilo que neste mundo se chama sofrimento, em outro mundo, inalterado e tão-somente libertado do seu oposto, é êxtase.

98 A ideia da extensão e da plenitude infinitas do cosmos é o resultado da mistura levada ao extremo da criação laboriosa e livre autorreflexão.

99 Tão mais opressiva que a convicção implacável de nosso presente estado pecaminoso é a mais frágil convicção da antiga, eterna justificação de nossa existência temporal. Só a capacidade de suportar desta segunda convicção, que em sua pureza abrange completamente a primeira, é a medida da fé.

Muitos consideram que, ao lado da grande fraude primitiva, existe em cada caso par­ticular uma pequena fraude especial, encenada em proveito próprio, do mesmo modo como, por exemplo, numa intriga amorosa, representada no palco, a atriz, além do falso sorriso para o seu amante, tem ainda outro, particularmente pérfido, dirigido a um espectador determinado na última fileira da galeria. Isso significa ir longe demais.

2 respostas para Os Aforismos reunidos de Franz Kafka

  1. Pingback: s.t. (aforismo de Kafka) |

  2. Pingback: quites – CORJA

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *