Os Aforismos reunidos de Franz Kafka

100 Pode haver um conhecimento do que é diabólico, mas nenhuma fé nele, pois, mais diabólico do que está aí presente, não existe.

101 O pecado sempre chega abertamente e pode ser captado logo pelos sentidos. Ele vai às raízes destes e não precisa ser arrancado.

102 Todos os sofrimentos ao nosso redor nós também temos de sofrer. Temos todos não um corpo, mas um estilo de crescer, o que nos faz atravessar todas as dores, seja nesta ou naquela forma. Assim como a criança evolui por todos os estágios da vida até a velhice e a morte (e cada estágio no fundo parece inalcançável ao anterior, na exigên­cia ou no medo), do mesmo modo evoluímos (ligados não menos profundamente à humanidade do que a nós mesmos) por meio de todas as dores deste mundo. Nesse contexto, não existe lugar para a justiça, nem também para o medo da dor ou para a interpretação do sofrimento como um mérito.

103 Você pode se conter diante dos sofrimentos do mundo – é algo que tem liberdade de fazer e corresponde à sua natureza, mas talvez seja esse autocontrole o único sofri­mento que você poderia evitar.

104 O ser humano tem livre-arbítrio, na realidade de três espécies:

Primeiro, livre quando quis esta vida; agora, seja como for, já não pode revogá-la, pois não é mais aquele que antes a quis; seria livre, portanto, enquanto realiza a antiga vontade ao viver.

Segundo, ele é livre na medida em que pode escolher o modo de andar e o caminho desta vida.

Terceiro, é livre enquanto for aquele que outra vez será o que tem vontade de ir pela vida sob qualquer condição, para deixar que ela venha até você; na verdade, por um caminho passível de escolha, mas de qualquer maneira tão labiríntico que não deixa intocado qualquer pedacinho desta vida.

São estas as três espécies de livre-arbítrio, mas ele é também – uma vez que são coisas simultâneas –, no fundo, de uma só espécie, tanto que não há espaço para a vontade, seja ela livre ou sem liberdade.

105 O meio de sedução deste mundo, bem como o signo de garantia de que ele é apenas uma transição, é uma e a mesma coisa. Com razão, pois só assim este mundo pode nos seduzir de uma forma que corresponda à verdade. O pior, no entanto, é que, depois da sedução bem-sucedida, nós nos esquecemos da garantia; foi dessa maneira, na realidade, que o bem nos atraiu para o mal e o olhar da mulher, para a sua cama.

106 A humildade oferece a todos, mesmo ao que se desespera na solidão, a relação mais forte com o semelhante, e na realidade, imediatamente, mas, com certeza, só no caso da humildade completa e duradoura. Ela é capaz disso por ser ao mesmo tempo a verdadeira linguagem da oração e a mais sólida das ligações. A relação com o seme­lhante é a relação da prece; a relação consigo mesmo, a relação do esforço para alcan­çar algo; a energia para esse esforço é extraída da oração.

Você pode conhecer outra coisa que não seja a fraude? Fosse ela um dia obstruída, você de modo algum poderia olhar para lá se não quisesse virar uma coluna de sal.

107 Todos são muito amáveis com A., como quando se procura proteger cuidadosa­mente uma excelente mesa de bilhar, mesmo de bons jogadores – pelo menos até o momento em que chega o grande jogador, examina com precisão a superfície, não tolera nenhum erro precipitado, mas depois, quando ele próprio começa a jogar, tem o mais brutal acesso de fúria.

108 “Mas depois ele voltou ao trabalho como se nada tivesse acontecido.” Essa é uma observação que nos é familiar de uma profusão de velhas histórias, muito embora talvez não tenha acontecido em nenhuma delas.

109 “Não se pode dizer que estamos carentes de fé. O simples fato de nossa vida é, por si só, inesgotável em seu valor de fé.”

“Seria isso um valor de fé? Não é possível não-viver.”

“Já nesse ‘não é possível’ reside a força insana da fé; é nessa negação que ela assume sua forma.”

Não é necessário que você saia de casa. Fique junto à sua mesa e escute. Nem mesmo escute, só espere. Nem mesmo espere, fique totalmente em silêncio e sozinho. O mundo irá oferecer-se a você para o próprio desmascaramento, não pode fazer outra coisa, extasiado ele irá contorcer-se a seus pés.

 

Nota

1. Dicionário etimológico da língua portuguesa, 3. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1977. 5 v.

 

Nascido em Sorocaba, em 1937, MODESTO CARONE é o principal tradutor brasileiro de Franz Kafka, tendo já publicado nove volumes de suas obras pela editora Companhia das Letras. Mas é, também, professor de literatura e autor de ficção. Suas duas teses estão publicadas: Metáfora e montagem (Perspectiva, 1974), sobre o poeta Georg Trakl, e Poética do silêncio (Perspectiva, 1979), sobre João Cabral de Melo Neto e Paul Celan. Seus títulos de ficção completam o quadro: As marcas do real (Paz e Terra, 1979), Aos pés de Matilda (Summus, 1980), Dias melhores (Brasiliense, 1984), Resumo de Ana (Cia. das Letras, 1998) e Por trás dos vidros (Cia. das Letras, 2007). Seu próximo livro de ensaios, Lição de Kafka, tem o lançamento previsto para junho de 2009, pela Companhia das Letras.

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