Pintura em suspensão

serrote #1, março 2009

Pintura em suspensão

HELOISA ESPADA

 

As imagens são um pouco confusas, pois as figuras pintadas sobre o vidro se sobrepõem ao rosto e aos gestos de José Pancetti. Nas folhas de contato guarda­das por Marcel Gautherot (hoje no acervo do Instituto Moreira Salles) não há registro sobre a data do material. É muito provável que as fotos sejam de 1956 ou 1957, sendo que a maior parte das obras de Pancetti sobre a lagoa do Abaeté, Salvador, foi feita nesses anos, às vésperas de sua morte, em fevereiro de 1958. Também não se sabe o propósito das imagens, se ilustraram alguma matéria de imprensa, o que é provável, ou se o ensaio foi iniciativa do fotógrafo ou do pintor. O certo é que Gautherot preparou cuidadosamente a cena, ciente de que, ao retratar o artista trabalhando sobre a superfície transparente, criaria um plano de interseção entre sua imagem, sua obra e a paisagem do Abaeté.

Retratos de Pancetti pintando ao ar livre não são incomuns, já que desde suas primeiras paisagens, feitas na década de 1920, quando era marinheiro, manteve o hábito de trabalhar a partir do motivo. Assim que se transferiu para Salvador, em 195 0 – ele viveu nessa cidade até 1957 –, foi fotografado por Pierre Verger pintando na praia da Barra. Na lagoa do Abaeté, ele aparece também em fotos de Luis Carlos Barreto, autor da reportagem “Abaeté posa para Pan­cetti”, publicada na revista O Cruzeiro, em 9 de fevereiro de 1957. Em imagens coloridas e em preto e branco, o artista é visto pintando as lavadeiras que tra­balhavam no lugar. Nessas fotos, bem como nas de Verger, não há obstáculo para a leitura da cena: Pancetti, a tela e a paisagem são apresentados em planos distintos. Os dois materiais enfocam com clareza seu método de trabalho e a relação de sua obra com a paisagem baiana, mas enquanto as fotos de Verger são documentos discretos do pintor concentrado em seu ofício, na matéria de O Cruzeiro ele posa como uma celebridade.

Assim como Alberto da Veiga Guignard e Alfredo Volpi, Pancetti está entre os artistas que conquistaram espaço no meio artístico brasileiro durante os anos 1940, ao longo de um gradual processo de institucionalização e reconhe­cimento público das linguagens modernas. Em 1941, ele foi o primeiro a ganhar o prêmio de viagem internacional oferecido pela Divisão de Arte Moderna do Salão Nacional de Belas-Artes, que havia sido criada um ano antes. Sobretudo em São Paulo e no Rio de Janeiro, surgiram salões, exposições, galerias e, no fim da década, três museus comprometidos com a educação do público para a apreciação da arte moderna: o Masp, o MAM/SP e o MAM/RJ.

Quando se transferiu para Salvador, Pancetti era conhecido como um dos mais importantes pintores modernistas brasileiros. Já havia participado da Bienal de Veneza e tinha obras no acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York. Outra matéria de O Cruzeiro, publicada em 7 de janeiro de 1956, exagera: “Pancetti é um dos grandes nomes universais da pintura moderna”, “o novo Gauguin”. Tendo alcançado essa popularidade, sua presença na Bahia era um estímulo para artistas como Mário Cravo Jr., Carlos Bastos e Genaro de Carva­lho, que desde o fim dos anos 1940 batalhavam para criar um circuito de arte moderna em Salvador. Esse período identificado com o início da modernidade nas artes plásticas da Bahia envolveu também a atuação de uma série de outros artistas brasileiros e internacionais que se transferiram para o estado entre o fim dos anos 1940 e a década seguinte. O fotógrafo Pierre Verger se radicou na cidade em 1948; o desenhista argentino Carybé, em 1951; o gravador alemão Hansen Bahia, em 1955; o músico Walter Smetak, em 1957. A presença mais marcante foi possivelmente a da arquiteta Lina Bo Bardi, que entre 1959 e 1964 fundou e dirigiu o Museu de Arte Moderna da Bahia e o Museu de Arte Popular do Unhão, instituições que transformaram o cenário cultural da cidade, con­tribuindo para a formação de Glauber Rocha, Caetano Veloso e Waly Salomão, por exemplo.

Embora a historiografia sobre a arte brasileira nos anos 1950 se volte sobre­tudo para a produção de arte abstrata e construtiva – e há razões para que seja assim –, parte considerável dos artistas brasileiros, entre eles Pancetti, perma­neceu ligada à figuração. Ele manteve o vínculo com a paisagem do país, mas sua produção não compartilha do mesmo teor nacionalista da obra de artistas como Portinari e Di Cavalcanti. Suas figuras são muito sintéticas e o lirismo de seus trabalhos assume um caráter demasiadamente melancólico e intimista para isso. Em 1945, o crítico argentino Romero Brest, em texto sobre a expo­sição de pintura brasileira que viajou para Buenos Aires nessa data, aponta a combinação entre “romantismo” e “sentido construtivo” na obra de Pancetti: “Não é um naturalista-romântico na acepção precisa do termo, porque em suas telas há demasiado sentido construtivo da forma e inclinação ao decorativismo moderno para sê-lo, mas o sentimento romântico está presente”.

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