Rugas – Sobre Nelson Cavaquinho

Abstratos, sóbrios e velhos – Cartola, entre os dois, representará um núcleo mais assentado, harmônico e clás­sico; Nelson será mais individuado e ímpar, quase desagra­dável. Cartola acena para a conciliação e Nelson, para o trá­gico. Em Cartola, o cantor, antes de mais nada, dá conselhos. Aquele que já viveu sopra aos ouvidos de quem escuta: “o mundo é um moinho” ou “acontece, acontece”. Quer pou­par o ouvinte, conduzi-lo a lugar seguro. “Eu bem sei que não queres voltar para mim”, mas, ainda assim, “devias vir, para ver os meus olhos tristonhos/ e quem sabe sonhar os meus sonhos/ por fim”. A canção é o veículo dessa reconci­liação, e a riqueza harmônica de Cartola parece permitir a esse percurso que se torne mais longo e abstrato. Assim, as grandes metáforas que conduzem seu trabalho – as rosas que não falam, os mundos que são moinho, os ninhos de amor que estão vazios – e os ricos percursos harmônicos, adiando o retorno da melodia, têm ambos a mesma função – postergar, enriquecendo-o, como um barco atracando lentamente, um percurso de reconciliação, ainda que triste. Cartola perdeu, mas ensina ao ouvinte aquilo que perdeu, assimilando-o novamente. Seu trabalho é a enorme metáfora dessa perda, que se parece com tudo – alvorada, morro, rosas –, estando, portanto, sempre ao dispor, pronta para encontrar (é isto a metáfora) a justa proporção com o mundo lá fora.

Para Nelson, o perdido é perdido e não retorna – não há conciliação, mas queixa, espanto, estupor. Ao contrário do princípio metafórico, e meta­mórfico, de seu amigo e parceiro, seu trabalho procede por contiguidade e metonímia – as folhas secas caídas de uma mangueira, em que o composi­tor pisa, fazem pensar na escola; as melodias, quase literalmente, sobem e descem, como passos da cruz ou do morro; as flores de Nelson, ao contrário das rosas de Cartola, falam, e o fazem quando ele passa por elas, “quando eu passo perto das flores/quase elas dizem assim: nós amanhã enfeitaremos o teu fim”; o amante é descoberto pelo indício físico: “o cigarro deixado em meu quarto é a marca que fumas, não podes negar”. Ao contrário de Cartola, em que um encanto inesgotável suspende os elementos para pô-los em rela­ção, em que tudo pode transformar-se naquilo que lhe é afim (tudo serve de metáfora para tudo), em Nelson as coisas, ainda que abstratas, são o que são, deixando marcas e sinais: “bem sei a notícia que vens me trazer/ os teus olhos só faltam dizer/ é melhor eu me convencer”.

Suas canções, quase sempre, têm rimas fixas (mágoa/olhos rasos d’água; rosto/desgosto; mundo/vagabundo; embora/agora), estruturas algo arque­típicas e invariáveis: o que conta, realmente, é o movimento de subida e descida da melodia. Se em Cartola as melodias parecem espalhar-se, num desenvolvimento arrebatador e expansivo, em Nelson progridem, passo a passo, num movimento pontual, mas inexorável, entre o aqui e o ali, como se pudéssemos apontar com o dedo o seu movimento. Parecem circunscri­tas, presas a um meio que lhes oferece resistência. Seu canto reforça como nenhum outro tal aspecto. Nelson parece cantar ca-da sí-la-ba como se fosse ela a unidade de significação final; separa-a de sua vizinha como se existisse por si mesma. Assim, o acento em cada ponto do percurso acaba impedindo a expansão lírica típica das canções de Cartola (e o bel-canto correspondente, ainda presente nas interpretações do próprio Cartola) e reforça o aqui e agora aprisionado do cantor. Há uma clausura, uma gravidade, uma força entrópica que a melodia deve vencer, ausentes em Cartola. Muito da beleza e singula­ridade de Nelson vem dessa espécie de conta final entre dois adversários – é quase um espanto que a canção tenha conseguido desenvolver-se, que tenha sido composta, afinal. Parece que poderia ter cedido, ter-se deixado perder em algum ponto. O compositor arrasta a melodia para cima e para baixo, numa espécie de câmera lenta entre as notas, fazendo questão de mostrar isso – estou indo daqui até ali. A composição, aliás, é exatamente assim – o sobe e desce, ponto por ponto, de uma melodia que ameaça falhar.

Por isso, talvez, alguma coisa nas canções de Nelson tenda ao coro, que une naturalmente essa melodia tensio­nada ponto a ponto, suprindo-a em suas fraquezas, contra­pondo-se à sua vulnerabilidade. Aqui, mais do que em qual­quer outro compositor, a voz coletiva se impõe. À exceção de alguns clássicos, como “A flor e o espinho” (cuja primeira e mais famosa parte parece ser de autoria de Guilherme de Brito) ou “Folhas secas” (parceria dos dois), quase todas as suas canções parecem prontas para ser cantadas em coro. Há vários motivos para isso: o ponto de vista, presente também na melodia, é de tal forma abstrato, moral, quase religioso, que prescinde das sutilezas do sujeito e tende ao coletivo. Suas interpretações, no entanto, tão pessoais, já contêm essa ambiguidade. Nelson canta, a um só tempo, de modo expressivo (voz rasgada, única, cheia de idiossincrasias; vio­lão percussivo, absolutamente original) e mecânico (divisão quase maquinal das sílabas), misturando uma singularís­sima antítese do bel-canto à marcação silábica monótona, que aceita a neutralização expressiva de um coro.

Além disso, o dilaceramento das canções parece tão intenso que a conciliação prévia de uma coletividade, com seu acolhimento e neutralização, se faz necessária. Muitas vezes (“O bem e o mal”, “Rei vadio”, “Minha festa” – prova­velmente, a única canção feliz de Nelson –, “Vou partir”, “Rei vagabundo”), o coro anuncia o tema com tamanha ênfase que o cantor, ao entrar, parece já aquietado, por contraste. Às vezes, ao contrário, é o cantor exasperado que se funde ao coro, no final da canção (“Juízo final”). De toda forma, o coro dá serenidade a esse sujeito trágico, acalmando-o em seu acolhimento. É isto exatamente o que Schiller diz do coro trágico grego: “As personagens trágicas necessitam deste intervalo […]. A presença do coro, que as ouve, qual uma testemunha julgadora, e que lhes doma as primei­ras explosões de paixão, motiva a circunspecção com que agem e a dignidade com que falam.”5 Nelson, quando canta, parece exatamente assim: circunspecto, digno, de algum modo contido – sóbrio. O coro clássico é um depositário de valores anteriores à ação a que sucumbe o herói – Vernant e Vidal-Naquet viam nele a forma poética do mundo agrá­rio, arcaico, aristocrático e homérico (anterior, portanto, ao mundo presente do teatro trágico), em oposição à fala em prosa do cidadão da pólis, representado pelo ator trágico.6 Claro que essas forças não estão organizadas em Nelson Cavaquinho, mas creio ser possível perceber em seu tra­balho uma tensão, que merece reflexão, entre o sujeito e o coletivo, entre o agora de quem canta e compõe e o imemo­rial derrisório de nossa história, que esse coro parece des­pertar e perdoar.

À diferença da tragédia grega, o coro em Nelson Cava­quinho funde o coletivo e o individual – não há duas vozes, sempre preservadas na tragédia grega, em que dois tempos diversos parecem conviver; nem oposição entre a ação trá­gica do herói e o inevitável rebarbativo cantado pela “teste­munha julgadora”, o coro. O cantor e o coro nas canções de Nelson querem cantar juntos, numa espécie de conciliação cósmica que a entrada das vozes femininas e masculinas no fim de “Juízo final”, na interpretação do próprio Nelson, exemplifica com perfeição. Ali, o cantor parece arrastado por essas vozes, que atuam no mesmo sentido que ele, elevando suas palavras a um patamar que não alcançariam sozinhas. Assim, os dois polos misturam-se, acalmam-se, consolam-se. A canção perde uma imparidade lírica quase insuportável, que tenderia talvez à dissipação, consolando-se com o ato mesmo de muitos estarem-na cantando agora.

Tudo em Nelson Cavaquinho tende ao arcaico, ou extemporâneo – mas, à diferença de outro Nelson (Nel­son Rodrigues, seu contemporâneo e conterrâneo), ele não parece dar-se conta disso. Não há dois polos aqui. Nel­son Cavaquinho não é o pai do samba brasileiro moderno, como Nelson Rodrigues é do teatro moderno brasileiro. Não há propriamente tensão entre forma moderna e conteúdo arcaizante aqui.? Essa questão, presente em quase toda a arte brasileira, simplesmente não se coloca. Muito mais do que arcaico, Nelson (como Cartola) parece ter nascido extemporâneo, na contramão da “promessa de felicidade” da década de 1 9508 e da agoridade exigente dos anos 1960. É desse patamar que Nelson e Cartola compõem, esque­cidos, mas também preservados – e é desse mesmo lugar que Paulinho da Viola enxerga o mundo, embora, digamos, sabendo disso. O coro, em Nelson, parece o próprio arcaico conciliado, tornado acolhimento – e não será exagero pôr na conta desse arcaico os maus-tratos da escravidão secu­lar, da distribuição de renda pífia, do racismo latente, do alcoolismo universal, da vida brutalizada por toda parte. O coro acalma o cantor, que se entrega a ele como quem nasce de novo, uma vez que é a negação imediata de seus males, dos males que o cantor está presentemente cantando – o coro é a solidão negada, a traição negada, a miséria negada. Ele diz o contrário da canção; a sua existência é a refutação cabal do que está sendo cantado, e não é de estranhar que acabe virando tema da canção “e é por isso que eu canto assim: lá, láláiá laiálaiá (coro)” (“Minha festa”). Se há coro, então o cantor não é mais um pobre-diabo, nem está sozi­nho, mas cercado de irmãos, que cantam agora com ele e para ele. Mangueira, a escola que vive até na morte (“vivo tranquilo em Mangueira porque/ sei que alguém há de chorar quando eu morrer”), é esse coro tornado gente, vida real, espalhado por aí. Cantar, assim, transforma o palhaço em rei e o pobre-diabo em centro do mundo. Nelson, que é em tudo um artista extremado, parece mostrar em diversas composições essa passagem limítrofe entre a dilaceração quase muda, de quem talvez não consiga cantar a próxima nota, e uma espécie de acolhimento que o coro (revelando o movimento da própria canção) oferece.

O trabalho de Nelson Cavaquinho coloca para a canção brasileira uma espécie de limite estético – sem prejuízo da beleza cabal de tantas de suas melodias,9 o fato é que ouvi-lo cantar é muitas vezes uma experiência rascante, quase desa­gradável. Seu violão “preparado”,10 percussivo, com notas que batem mais do que ecoam; sua voz absurda, espécie de anti-João Gilberto em seu fôlego mínimo, que se orgu­lha de dizer que está acabando a cada verso, ou meio-verso; seus temas recorrentes, suas rimas recorrentes e, principal­mente, suas melodias alpinistas, subindo e descendo passo a passo à nossa frente, formam um conjunto impressionante de tristeza, dilaceração e morte. Independentemente dos anos de formação dessa poética (entre as décadas de 1930 e 50), o fato é que, no momento em que efetivamente rea­parece para o mundo, gravando ou tocando em endereço conhecido (anos 1960), parece contrapor-se solidamente ao que se anunciava à sua volta. O trabalho de Nelson foge à ambivalência moderno/arcaico que atravessa toda a pro­dução dos anos 1950/60/70, entre o otimismo da primeira bossa nova e o dilaceramento tropicalista. Ele é nosso con­tato imediato com aquilo que deu profundamente errado em nós, sem remissão a nenhum outro: internacionalização, desejo, cosmopolitismo. Consegue sublimar nosso fracasso sem aludir à “vida que podia ter sido e que não foi”. Talvez deva muito de sua sobriedade e solidez formal à ausência desse elemento compósito, o desejo e a recusa do moderno, que caracteriza quase tudo o que fizemos. Em Nelson, a vida é o que é e, num certo sentido, aquilo que sempre foi. Por isso, não carrega ansiedade nem projeto. Parece tão desejá­vel quanto a morte.

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