Rugas – Sobre Nelson Cavaquinho

Em 1968, Leon Hirszman realizou um pequeno documen­tário sobre Nelson Cavaquinho. Vale o esforço de assisti-lo.11 Em tudo despretensioso, soma aparentemente descosida de dez ou 15 takes, trata-se na verdade de um filme fortís­simo, essencial para a compreensão de Nelson. Nele, como nos penetráveis contemporâneos de Hélio Oiticica, tudo parece dentro. Estamos sempre colados ao que aparece, como se não fosse possível olhar nada de longe. No entanto, ou talvez exatamente por isso mesmo, aquela cumplicidade da câmera em relação ao seu objeto, e de seu objeto em rela­ção à câmera, típica de tantos documentários e reportagens recentes, ainda não nasceu aqui. A luz estourada, a presença acidental e absurda do microfone de som direto, a alusão àquilo e àqueles que estão atrás da equipe de filmagem, a absoluta ausência de naturalidade de todos os que aparecem no filme (menos do próprio Nelson), criam um “lado de lá” perturbado pela câmera, alheio e heterogêneo, mas por isso mesmo centrado e autêntico. Numa cena especialmente feliz, sob o som de “Tire o seu sorriso do caminho”, a câmera persegue uma moça, que foge ferozmente dela, esconden­do-se atrás das amigas, das mãos e do próprio cabelo, e ser­vindo, neste movimento, de mira para o que aparece atrás dela: um pátio cheio de gente e fachadas de casas, um pátio onde entramos sabendo, pelo comportamento de nossa anfitriã, que não deveríamos entrar. Em outra sequência, sob a trilha de um estranha canção, cuja letra fala de um pimpolho de cinco anos que fuma charuto e pede mulher, crianças bebem cerveja (mas pode ser tubaína), galinhas se espalham pela casa, tudo parece bêbado, disperso, em festa e deprimido, como uma cena de crueldade infantil de Dickens, mas na qual nossos valores já não servem: as crianças estão sendo aliciadas? Estão realmente bebendo álcool? O efeito é cômico? Trágico? A depressão explícita de Nelson é autêntica? Perigosa? Vai matar o pintinho que tem entre as mãos ou está brincando com ele? As coisas, neste filme, parecem alheias na medida mesma em que se mostram de todo despreparadas para aparecer para nós. Esse despreparo é a matéria primeira do filme, sem que se saiba bem se não será nosso ao olhá-lo. Por isso não é tanto a miséria, tema por excelência do cinema novo, que está sendo captada nesses longos travellings, com os grandes valores que sempre se depositam nela – estupor, piedade, princípios, revolta. Não, pois a passi­vidade da miséria ficou de fora, expulsa pelo comportamento incomodado de tantos que aparecem no filme, pela figura estranhíssima, cabocla e albina, de Nelson, mas principalmente pelas canções que surgem ao fundo. O que está sendo flagrado é alguma coisa que foi esquecida, mas que parece ter-se organizado plenamente nesse esquecimento. Algo que tolera a câmera, mas não se entrega a ela, que consegue fugir dela, ou mostrar-se enquanto foge, dirigindo a câmera em sua fuga. As figuras e canções vêm daí, voltam para aí e querem ficar aí. Não precisam de nós. A última e extraordinária cena do filme merece descrição. A canção é “Vou partir”, e Nelson está cantando sozinho (“Vou partir/ Não sei se voltarei/ Tu não me queiras mal/ Hoje é Carnaval// Partirei para bem longe/ Não precisa se preocupar/ Só voltarei pra casa/ Quando o Carnaval acabar, acabar”). A tomada, noturna, começa de fora das portas abertas de um bar. Um zoom revela uma mesa em cujo centro Nelson toca e canta, cercado de pessoas. Corte para uma tomada de longe, do alto, inteiramente preta, onde a luz do bar se tornou um pequeno retângulo na parte inferior do quadro, numa composição que remete dire­tamente, com incrível fidelidade, ao mundo das xilogravuras de Goeldi. No momento do corte, o coro entra. Pela primeira vez em todo o filme, ouvi­mos o coro típico das canções de Nelson; pela primeira vez em todo o filme, alguma coisa é filmada de longe. De longe, para que o coro entre. De longe, porque ficamos de fora.

 

Artista plástico e escritor, NUNO RAMOS é autor de Cujo (1993) e O pão do corvo (2002), ambos pela Editora 34. Ensaio geral, sua coletânea de ensaios editada pela Globo, foi um dos mais importantes lançamentos editoriais de 2007. Em 2008, lançou Ó, reunindo contos e crônicas.

 

1. Não se deve esquecer, além disso, o quanto a própria forma do samba é aberta: basta ralentar o andamento que se torna samba-canção, a um passo já do bolero. Isso dá aos compositores uma abertura estilística que torna ainda mais difícil o reconhecimento. Alguém diria que Ataulfo Alves, caracterizado por sambas de grande marcação rítmica e temática (“bravos”, talvez seja a palavra), é o autor de “Saudade da professorinha”?

2. É preciso lembrar Thelma canta Nelson Cavaquinho, de 1966, em que a cantora baiana divide o microfone com o próprio Nelson Cavaquinho, num 1p inteiramente dedicado às suas composições.

3. Basta pensar no início de “Foi um rio que passou em minha vida” do que fala afinal a canção? É com uma adversativa – o “Porém, ai, porém” da segunda parte – que o tema (“Um caso diferente/ que marcou num breve tempo/ meu coração para sempre”) é introduzido. Procurei desenvolver esse ponto de vista em “Ao redor de Paulinho da Viola”, in Ensaio geral

4. Encontrei a citação num texto de Ronaldo Brito sobre Goeldi. “A nossa sombra”, in Oswaldo Goeldi. Rio de Janeiro: Instituto Cultural The Axis, 2002

5. Friedrich Schiller, “Acerca do uso do coro na tragédia”, in Teoria da tragédia, introdução e notas de Anatol Rosenfeld. São Paulo: EPU, 1992, p. 81.

6. Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, Mito e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Perspectiva, 1999, pp. 2-3 e 12-13. O argumento de Vernant e Vidal-Naquet pode ser resumido assim: o coro fala em poesia arcaica e o herói, em prosa atual, talhada pelo vocabulário jurídico da cidade se constituindo. No entanto, o herói é a encarnação (daí o uso da máscara) do semideus homérico, e o coro, a consciência atual da comunidade, que percebe essa impossibilidade. Assim, na tensão entre o herói, que já não tem lugar, mas se expressa através da prosa jurídica da cidade, e o coro, que fala a linguagem arcaica, mas incorpora a consciência atual da falência do herói, o conflito sem solução entre o mito e as instituições civis, entre o arcaico e o tempo presente, ganha forma.

7. Procurei tratar Nelson Rodrigues a partir desta tensão entre arcaico e moderno em “A noiva desnudada”, in Ensaio geral, op. cit., pp. 51-68.

8. Ver Lorenzzo Mammì, “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”. Novos Estudos, n. 34, São Paulo: Cebrap, nov. 1992.

9. A versão de Elis Regina, com arranjo de Cesar Camargo Mariano, para “Folhas secas”, por exemplo, faz justiça a uma das mais delicadas e belas melodias do nosso cancioneiro.

10. Como se sabe, John Cage fez diversas peças para “Piano preparado”, em que o instrumento, por meio da inclusão de borrachas, clavilhas e outros artefatos em seu interior, passa a soar como um batuque imprevisível.

11. A obra inteira de Hirszman está sendo restaurada. De todo modo, encontrei oito minutos do filme (mais que a metade) no YouTube.

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