Sair da linha: uma introdução a Saul Steinberg e Black Friday

serrote #1, março 2009

Sair da linha: uma introdução a Saul Steinberg

RODRIGO NAVES

 

Certa vez, um alfaiate das redondezas em que Saul Steinberg trabalhava precisou fechar sua loja no meio da semana. Na porta da oficina, em vez do protocolar “Fechado por motivo de saúde”, afixou um cartaz em que se lia: “Estou doente”. Adam Gopnik, amigo do desenhista e crítico da revista New Yorker – publicação em que Steinberg também trabalhou, por quase 60 anos, 87 capas e mais de 1.200 desenhos –, conta que a frase fez seu colega sorrir por vários dias. E com razão: havia nela a sem-cerimônia que caracterizou seus desenhos, sempre espicaçando com fina ironia as conven­ções que podem tornar a vida uma monótona sucessão de comportamentos previsíveis.

Mas afinal qual a diferença entre “fechado por motivo de saúde” e “estou doente”? Convenhamos, quem diz “estou doente” parece estar em piores condições do que aquele que pôs a adequação às boas normas de conduta acima de tudo, incluída aí a própria saúde. E a Saul Steinberg interes­sava sobretudo pôr em questão o papel dessas rotinas – de costumes a carimbos, do corte de cabelo à forma de conce­ber o mundo – na vida que levamos.

O violinista que se entrega com paixão a seu instrumento (veja a capa de serrote) encarna todos os músicos que fazem de seu ofício um ritual de enlevo e sentimentalidade. No entanto, é a precisão do traço de Steinberg que revela de maneira notável o tradicionalismo de tantas execuções musi­cais. Violino e violinista se compõem basicamente de uma única linha. E essa continuidade entre músico e instrumento transpõe para o mundo visível a aspiração a uma transição plena entre subjetividade e arte, ambição res­ponsável por muitos arroubos românticos e sempre no limite do kitsch. Mas a natureza da linha contínua de Steinberg – sinuosa aqui, angulosa acolá –introduz com precisão ruídos num desenho musical que ambicionaria a pura plasticidade, e assim furta-o a sua ambição máxima. E no entanto difi­cilmente recusaríamos alguma simpatia a esse ser tão convencionalmente compenetrado, pois também é da arte de Steinberg sempre partilhar algo com seus temas: não há vida sem rotinas, por isso rimos.

Dois aspectos da biografia de Steinberg podem ter contribuído para sua capacidade de identificar os ritos sociais que tornam a existência menos ameaçadora e imprevisível: o judaísmo e os Estados Unidos, ou seja, a falta de lugar e o lugar por excelência (a outra terra prometida). O desenhista nas­ceu em 1914 em uma família judaica romena e com 19 anos mudou-se para Milão, onde se formou em arquitetura e publicou seus primeiros desenhos na imprensa. Em 1941, as pressões crescentes do fascismo italiano levam-no a abandonar a Europa via Portugal, com a intenção de conseguir residência nos EUA, o que só obtém após uma estada forçada em Santo Domingo.

E então, nos Estados Unidos, esse judeu franzino se pôs a cutucar com humor e simpatia aquilo que os americanos produziam de mais sólido: clichês, imagens idealizadas, tipos populares, comportamentos e con­venções, que podiam ir de Papai Noel a Tio Sam, dos Pais Fundadores aos anúncios baratos, do dólar às estrelas do cinema. Um de seus trabalhos mais conhecidos – e com toda a razão – traça um mapa-múndi a partir de Manhattan, em que cosmopolitismo e provincianismo trocam de posição a todo instante, como se o imaginário de toda uma população encontrasse ali sua síntese perfeita. Em primeiro plano, a Nona Avenida funda a rea­lidade de uma metrópole que se desdobra na Décima Avenida, começa a dispersar-se no rio Hudson, em vagas localidades americanas (Nebraska, Las Vegas), para logo desembocar na China, Japão e Sibéria, regiões apenas ligeiramente delineadas, como se na mente de um nova-iorquino médio tivessem a definição de uma miragem.

Essas circunstâncias de sua vida, porém, não levariam a nada se Stein­berg não encontrasse uma forma de expressão condizente com seu olhar dissonante. Ele afirmava que “toda a história da arte me influenciou: pin­turas egípcias, desenhos de banheiros públicos, arte primitiva e de loucos, Seurat, desenhos infantis, Paul Klee”. Nada a objetar. Mas faltaria acres­centar que a atração por todas essas manifestações não existiria se a arte moderna não tivesse mostrado um enorme interesse por aqueles que fugiam aos convencionalismos acadêmicos. E de fato Steinberg não foi apenas um dos grandes artistas modernos. De certo modo, seria possível reconstruir toda essa formidável tradição a partir de seus cartuns: a eco­nomia formal de seu conterrâneo Brancusi, a liberdade das linhas de Miró e Klee (talvez o artista que mais lhe abriu caminhos), as estranhas justa­posições dos surrealistas, as colagens cubistas (o uso preciso de carimbos e tantos outros signos gráficos), o rigor formal dos construtivistas… mais a ironia dos dadaístas.

Clichês, convenções, rituais e lugares-comuns alcançam sua eficácia máxima apenas quando proporcionam respostas automáticas. Ou seja, só existem de fato quando não se mostram. Se pararmos para refletir diante de um “bom dia” lançado ao acaso por um conhecido qualquer, a engrenagem do mundo emitirá um rangido. E assim a forte reflexividade moderna – sem­pre às voltas com a verdade de linhas, cores, planos e manchas, que tinham deixado de ser um instrumento para a reprodução do mundo e valiam por si mesmas – caía como uma luva para a consecução do plano de Steinberg, pois constituía o oposto da positividade balofa das convenções. “Minha linha”, afirmou ele numa entrevista de 1965, “quer lembrar constante­mente que é feita de tinta. Eu reivindico a cumplicidade de meu leitor, que transformará essa linha em significação, utilizando nosso solo comum, feito de cultura, história e poesia. O leitor, seguindo minha linha com os olhos, torna-se um artista.”

Steinberg sempre evitou tornar-se um estilista. Ao contrário, lançou mão de todos os estilos imagináveis, porque sabia que também eles, estilos, poderiam se tornar mais um lugar-comum. No entanto, decididamente foi a linha que marcou seus trabalhos. Uma linha que, por ser feita de tinta e por não ser a reprodução servil dos traços de outra coisa, trazia toda a fra­gilidade e leveza dos seres que só têm a si mesmos como justificativa. E a simplicidade moderna do traço de Steinberg tinha também a capacidade de pôr em evidência o esquema de coisas e situações, como uma circunferên­cia com dois pontos e uma linha curva consegue remeter ao rosto humano sem imitá-lo fielmente. Assim, ao mesmo tempo em que, por esse esquema­tismo, guardava semelhança com hábitos e convenções, afastava-se deles pela recusa à verossimilhança. Seria então com esse instrumento delicado que o artista estaria pronto a enfrentar as fortalezas deste mundo.

A decisão de fazer da imprensa seu veículo por excelência tornou sua arte ainda mais aguda. Afinal teria como público as mesmas pessoas que punham em circulação os estereótipos que ironizava, num meio que os produzia aos milhares e com a modéstia que a delicadeza de seu traço pedia. Os dese­nhos que seguem – todos inéditos – foram realizados numa agenda de 1954. Podem ter a desvantagem de não fazer parte de um projeto gráfico maior, em relação ao qual Steinberg quase sempre pensava seus trabalhos. No entanto, além de serem todos excelentes, têm uma qualidade que ajuda a entender melhor a sua arte: sua simplicidade, sem as relações intrincadas de muitos de seus trabalhos, faz ver nitidamente como o desenhista procedia.

O senhor venerável que submete a esposa à frase “Frankly we are dis­appointed” [Francamente, estamos desapontados] incorpora todos os traços dos dramalhões moralistas. Se nos limitássemos às linhas que constroem homem e mulher, já veríamos com clareza como o traço de Steinberg é ele mesmo significativo. Enquanto o vetusto senhor se delineia com traços firmes e decididos, sua esposa mal se firma em seu contorno molenga. A admoestação moralista, porém, de imediato remete à probidade da esposa, às aparências que, supostamente, não soube manter.

E aí se revela ao máximo o talento do desenhista, pois praticamente todo o ambiente em que o casal se encontra – ou seja, o mundo das aparências que a mulher ousou violar – se articula a partir de carimbos, da figura de George Washington (cuja efígie ilustra as notas de Us$ 1) e da águia americana, às várias padronagens decorativas. Como as burocracias, das quais os carimbos – e Steinberg tinha uma formidável coleção deles – são o símbolo, a moral também pode não passar de uma mascarada, jogo que orientou a atenção de outro moderno, James Ensor. Mas sua perspicá­cia não para aí. Entre a fala do ordeiro senhor (“frankly”) e o ambiente (as faces de George Washington) se estabelece um termo comum que asso­cia a honorabilidade do cavalheiro à cédula de Us$ 1, Steinberg aproxima valores morais, valores monetários e subserviência. Assim, não espanta que a extremidade em que sua indignação alcança o ponto máximo – a mão direita com o indicador a espetar a face da senhora – também mude de natureza e se converta em carimbo, a mais perfeita prótese desse estra­nho membro do corpo humano, a hipocrisia.

O crítico norte-americano Harold Rosenberg – autor de alguns dos melho­res ensaios sobre sua obra – afirma que Steinberg soube incorporar a seus desenhos procedimentos que a arte pop tornaria correntes apenas a partir dos anos 1960, de cédulas de dinheiro a rótulos de mercadorias. O desenho comentado acima mostra que Rosenberg tem razão no que diz. Os carimbos presentes nele não têm a estrita função formal que jornais, selos ou rótulos possuíam nas colagens cubistas. São também conteúdos. No entanto, convém não esquecer que essa visualidade banal passava, nas mãos de Steinberg, por um banho ácido que decididamente não interessava a Andy Warhol, para quem a indiferença diante do mundo elevou-se à categoria de valor supremo.

Steinberg afirmou certa vez que “quando admiro uma paisagem, logo procuro pela assinatura no canto inferior direito”. Essa visão irônica de si mesmo ajuda a entender melhor uma modéstia e uma argúcia que iam além da escolha de jornais e revistas como veículos para seus desenhos. Por não estar livre das concepções cristalizadas que criticava em seus trabalhos, o artista também abdicava da tentativa de alcançar uma espécie de estrato social primeiro, um solo de absoluta espontaneidade e totalmente alheio às normas e convenções, do qual, evidentemente, ele seria um lídimo repre­sentante, como Jean-Jacques Rousseau certa feita chegou a imaginar.

A cantora lírica que teve o corpo cortado em dois, cada metade deslocada para um lado, fez por merecer. Afinal, ao conceber-se como um duto de ar e delegar apenas aos pulmões a força de seu canto – a impostação típica do gênero –, só restou ao desenhista parti-la ao meio e, assim, interromper o fluxo de alguém que se entendia como um tubo. Mas a leveza das linhas com que Steinberg a constrói não conduz apenas ao riso, ao contribuir para esvaziar o corpão sólido, típico dos grandes cantores líricos. Como Steinberg não se jul­gava melhor que os tipos que satirizava, vemos simpatia e compaixão acom­panharem permanentemente seus julgamentos. E assim, a cantora, feita com linhas tão frágeis, parece pronta a redimir-se e rearticular-se, já que o artista deu a seu corpo os próprios instrumentos com que poderia redesenhar-se.

A cena de lazer aquático encimada pela palavra “Liberty” também mostra bem como ele olhava com simpatia os costumes que insistia em ironizar. O bucolismo da situação está longe de ocultar seus possíveis vínculos com o poderio americano, tanto bélico quanto econômico. E por isso o recurso ao reflexo dos símbolos do poder na superfície da água adquire tanto sen­tido. Mas é também o reflexo dos barcos que os torna ainda mais líricos, pois faz com que a leveza dessas atividades que nos livram das duras rotinas se transforme numa quase miragem, com tudo que têm de transcendência e fantasia. Mesmo a família real cujos rostos se resumem a carimbos – tão goyesca que parece A família de Carlos IV, pintada pelo espanhol em 1800 –, termina, de tão mordaz, por despertar nossa compaixão.

E o gato que monta um cavalo resume com singeleza as ideias de Stein­berg, mesmo porque o felino se assemelha muito às feições do desenhista que o traçou. Em lugar de orgulhar-se por controlar um animal mais possante, o gato revela admiração e espanto. Invertidas as posições de força, em lugar de dominação surge simplesmente perplexidade, a condição de uma compre­ensão mais aguda do mundo. Não surpreende então que o desenhista vol­tasse tanto a esse felino em seus trabalhos. Gatos são bichos domésticos que, diferentemente dos cães, não passam a vida em busca do reconhecimento dos humanos. E essa autonomia – a renúncia a seguir o que esperam de nós –havia de instigar Steinberg. Apenas quando adormecidos (ver o desenho na contracapa de serrote) se deixam conformar pacificamente.

Mas Steinberg também amava os cães e tudo que eles representam de leal­dade. No catálogo de sua grande retrospectiva no Whitney Museum of Ame­rican Art, em 1978, não por acaso a última prancha traz um cachorro apoiado sobre as costas de uma tartaruga, olhando para trás, como se revisse o tra­balho de toda uma vida. Sem essas alusões, o artista perderia em riqueza e complexidade, ainda que uma lágrima furtiva escape do olho do bicho. Se a um artista era dada a possibilidade de ver o mundo de pontos de vista muito diversos – como no desenho em que um mesmo homem é observado de qua­tro posições diferentes, transformando-se completamente –, impossível não levar em conta que seu passado aos poucos também cria um lastro que atra­vanca seus movimentos e sua liberdade. Não reconhecer isso, mesmo com tristeza, implicaria uma limitação que Steinberg, como poucos, soube evitar.

Kierkegaard dizia que, enquanto o cinismo era o infinito que zombava do finito, a ironia constituiria seu oposto: o finito que escarnecia o infinito. Em seus desenhos, Steinberg revela ter plena clareza disso, e sem essa cons­ciência sua obra não alcançaria a grandeza que alcançou. Como epígrafe de seu livro The New World, de 1965, colocou a frase “Cogito ergo Cartesius est” [Penso, logo Descartes existe]. A ilusão de uma identidade sólida (penso = existo) pouca vezes foi tão acidamente corroída.

Muitas vezes, Steinberg pôs em xeque as verdades estabelecidas por meio de labirintos, paradoxos e charadas visuais – no entanto, sem nunca sugerir um grande mistério ou fundamento último por trás das aparências que questionava. Afinal, o que buscava combater era justamente a transfor­mação de convenções humanas em verdades metafísicas. Se a vida social não pode prescindir de códigos e convenções, sua aceitação passiva signifi­caria também a esterilização da vida. Magritte também adorava criar para­doxos visuais, situações em que a realidade e suas representações mal se deixavam diferenciar. Mas Magritte levava-se bem mais a sério que Stein­berg, e muitas vezes suas pinturas deixam no ar um enigma cuja chave ape­nas o artista parece conhecer. E por isso, hoje em dia, a muitas de suas obras restou apenas o respeito que votamos a superstições.

Desde o início do século 20, a cultura visual americana se viu às voltas com o vertiginoso crescimento do país e com as representações que a vida nacional fazia de si mesma. Alguns, como Grant Wood e Thomas Hart Benton, julgaram por bem dar as costas ao americano das grandes cidades e, em suas pinturas, fizeram o elogio de homens e mulheres ope­rosos e puros, solidamente ligados ao trabalho na terra. Edward Hopper apegou-se mais aos homens das cidades, ainda que os visse fadados a uma solidão e a um desamparo terríveis. Já Norman Rockwell, ao contrário, can­tou as delícias da prosperidade e da singeleza de seus compatriotas, com um quê de malícia e ironia. E Andy Warhol quis colocar um fim a esses questionamentos, já que a seu ver a vida americana havia se transformado num carrossel de fetiches que impediria a própria pergunta sobre a ori­gem e o sentido das coisas.

Saul Steinberg desde sempre esteve consciente dessas questões e das dificuldades que envolviam. E uma passagem real de sua vida revela admiravelmente como tinha clareza da situação que enfrentava e da sin­gularidade da saída que encontrou. Saul Steinberg era um nome bastante comum em Nova York, uma cidade com grande número de habitantes de origem judaica. O artista chegou a ter um homônimo no mesmo andar do edifício em que vivia. Certo dia, resolveu ligar para um dos seus xarás, sabe-se lá por quê:

“– Falo com Saul Steinberg?, perguntou.

– Sim, responderam do outro lado.

– Mas se trata do verdadeiro Saul Steinberg?

– Não, respondeu o interlocutor.

– Tem certeza?”

Está tudo aí. Saul Steinberg soube quem era pelo telefone.

 

RODRIGO NAVES é crítico independente, professor de um curso livre de história da arte que ele mesmo criou em 1987, escritor, ensaísta e consultor do Instituto Moreira Salles. Praticamente um autodidata, tem doutorado em estética pelo departamento de Filosofia da USP. Foi editor do extinto suplemento “Folhetim”, da Folha de S.Paulo, e da revista Novos Estudos, do Cebrap. É autor de cerca de uma dúzia de livros, entre eles El Greco – Um mundo turvo (Brasiliense, 19 85), A forma difícil (Ática, 1996), Raquel Arnaud e o olhar contemporâneo (entrevistas, pela Cosac Naify, 2005), O filantropo (1998) e O vento e o moinho (2007), ambos pela Companhia das Letras.

 

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