Um homem de letras

Foto de Carlos Moskovics (1916- 1988), Rio de Janeiro, c. 1950 ©Carlos Moskovics/Instituto Moreira Salles

serrote #2, julho 2009

Um homem de letras

BERNARDO CARVALHO

 

Não abro os olhos há quatro anos. Não é que eu seja cego; simplesmente não quero ver. Sou um homem de letras. Ou fui. Fechei os olhos no dia em que compreendi que não via como os outros, e decidi nunca mais abri-los. O problema não era você achar lamentável o que eu fazia; era eu achar incrível o que você achava lamentável. O problema não era a falta de sentido do que eu fazia. O problema era eu conti­nuar vendo sentido onde você e os outros não viam sentido nenhum. A sua opinião não foi capaz de mudar a minha; só me deixou pasmo. Eu estava ficando louco por não ver o que você via – ou por ver o que você não via. Tanto faz. Tudo depende do ponto de vista. E decidi por bem fechar os olhos. Antes cego do que louco. Ninguém é louco pra forçar um cego a ver. Mas ainda estou pra ver quem nunca desejou trazer um louco de volta à razão.

Quando digo homem de letras, talvez não me faça com­preender. Letras e números. Não quero que me interpretem mal. Não vim pra criar mal-entendidos. Explico: componho letras e números. Tenho uma pequena loja. Sou letrista – ou letreirista, como você sempre fez questão de lembrar em prol da minha modéstia. A sua opinião pode não ter tido consequências na minha própria opinião, mas arruinou o meu negócio. Porque eu era um homem de visão. E estava decidido a criar uma linguagem que qualquer homem com­preendesse pela simples disposição e pela forma das letras. Me baseei nos egípcios. Os egípcios são a origem de tudo.

Desde que vi hieróglifos num manual escolar, entendi o que queriam dizer. Quer maior silêncio? Ninguém precisou me explicar. Entendi pra mim, é claro. Mas bastava abrir a boca e contar aos outros, e o entendimento desa­parecia, e o que fora genial passava a ser ridículo. Você é a prova viva. Foi o primeiro a me pedir explicações quando resolvi criar a minha linguagem. Quando eu disse que era uma linguagem. Você apareceu no dia em que comecei a escrever, pra me pedir explicações sobre o que não se explica.

Eu não podia evitar a influência deles. Dos hieróglifos, é claro. Muita gente demorou a entender que as letras aparentemente independentes, avulsas, soltas no espaço, formavam na verdade frases, ensaios, poemas e prosas. E que a disposição dos caracteres e a diferença de formas e de tamanhos faziam todo o sentido. Não me deram crédito. A começar por você. Mesmo assim eu escrevi. Prosa, poesia e ensaio. Na minha língua que você não podia ler. Uma língua ao mesmo tempo simples e indecifrável sem necessidade de nenhuma pedra de Roseta –, cujo sentido estivesse bem aí, diante dos olhos. E tampouco estivesse. Uma língua pra escrever o que não se entende.

Mas assim como pra tudo deve haver uma explicação (era o que você vivia repetindo), também deveria haver uma explicação para uma língua que só pode ser explicada por si mesma. Logo se veem os constrangimen­tos que ela cria. Mal comecei a escrever e já foi preciso explicar. Também é preciso dizer que, apesar de tudo, na falta de uma explicação, há sempre alguém pronto pra interpretar. Um sabichão ou outro. E não foi por acaso que fechei os olhos.

Escrever provoca a voz dos outros quando tudo o que você procura é o silêncio. Um dia um homem veio me falar dos textos que eu compunha. Havia compreendido os meus textos. Para o bem ou para o mal, lia o que eu mesmo não podia ler pra você nem pra ninguém. Foi só o primeiro. Porque depois veio outro e mais outro e mais outro, cada um com a sua interpreta­ção, uma diferente da outra. Todos tinham compreendido os meus textos e, muito excitados, queriam compartilhar a sua interpretação comigo. Inva­riavelmente, já sabiam o que liam antes de ler. Em alguns desses homens, as letras despertaram uma ira que eu tampouco saberia explicar. E eu fugi. Que mais podia fazer? Fechei os olhos. Para não ter que vê-los nem conver­sar com eles – nem com ninguém – sobre o que não se traduz (afinal, é uma língua para todos). No início, ainda me insultaram e me ameaçaram, que­riam que eu abrisse os olhos e a boca. Mas logo me esqueceram. Ninguém xinga por muito tempo um homem de olhos fechados.

Pelo menos, ganhei a solidão. E você sumiu da minha frente. Desde então, quando abro a porta da oficina, sempre de olhos fechados, já não corro o risco de deparar com alguém pra me interpelar sobre o sentido do que escrevo. Já não se atrevem a decifrar nenhum código. Nem a me insultar.

Resignaram-se às letras aleatórias. Já não sou notado. Como se também tivessem deixado de me ver desde que fechei os olhos.

Se você não tivesse desaparecido no dia em que fechei os olhos, na certa diria, em prol da minha modéstia, que está tudo na minha cabeça, que ninguém nunca esteve nem aí pra mim nem pra minha língua, que é tudo mistificação.Você me perguntaria, com o seu despeito habitual, por que é que não escrevi este texto na minha própria língua. E eu diria que esta é uma despedida. É a última vez que me explico. Você faria questão de lem­brar que não é língua; é grafia. E eu teria de concordar. Uma grafia. Que seja. Tudo em prol da minha modéstia. Sou (fui) um homem de letras. E por tudo o que vi antes de fechar os olhos (e que o espanto da sua incompreensão só confirmou), inventei essa grafia, se é assim que você prefere chamá-la, ao mesmo tempo simples e intraduzível, e fechei os olhos, pra nunca mais passar pelo constrangimento de ter que explicar a você (nem a ninguém) o seu próprio espanto.

 

Um dos mais destacados autores brasileiros contemporâneos, o escritor e jornalista BERNARDO CARVALHO lançou recentemente O filho da mãe. É autor de 11 livros, entre eles O sol se põe em São Paulo, Nove noites, Mongólia e Aberração, todos editados pela Companhia das Letras. Suas obras estão traduzidas em mais de dez idiomas. Ele é também tradutor e autor da peça BR-3, encenada às margens do rio Tietê.

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