V de Verso, ANTONIO CÍCERO

serrote #1, março 2009

V de Verso, ANTONIO CÍCERO

ALFABETO serrote


A palavra “verso”, na acepção que aqui nos interessa, opõe-se a “prosa”. Essa oposição pode ser esclarecida etimologicamente. “Prosa”, do vocábulo latino prorsus e, em última instância, de provorsus, que quer dizer “em frente”, “em linha reta”, é o dis­curso que segue em frente, sem retornar. “Verso”, do vocábulo latino versus, particípio passado substantivado de vertere, quer dizer “voltar”, “retornar”. Aqui, talvez, convenha alertar con­tra um erro comum: aquele que opõe a poesia à prosa, confun­dindo-a, portanto, com o verso.

O sentido da oposição entre verso e prosa na cultura oral primária (que é aquela que não conhece a escrita) não é idên­tico ao que tem na cultura que emprega a escrita. Refiro-me aqui, em particular, à escrita alfabética. Nesta, podemos dizer que o texto em prosa é aquele que não passa de uma linha para outra senão ao chegar à margem direita da superfície sobre a qual é escrito, isto é, senão devido a uma contingên­cia física. Em princípio, mesmo um texto extenso poderia ser escrito numa única linha que se prolongasse indefini­damente, sem jamais retornar à margem esquerda. Em con­traste com isso, o texto em versos é o que passa de uma linha para outra – retorna à margem esquerda – ainda que não haja nenhuma necessidade física para isso.

Já na cultura oral primária, o verso pode ser definido como um sintagma que exem­plifica um padrão sonoro (metro ou medida) recorrente. Sendo assim, a prosa não con­siste num gênero literário, mas apenas na fala em que não ocorre semelhante rei­teração. A rigor, não há nenhum gênero literário em tal cultura, pela razão óbvia de que a própria palavra “literário” provém de “letra”. O que nela existe é a diferença entre aquilo que se reitera e aquilo que não se reitera. O que se reitera é uma pala­vra, um verso, um provérbio, um poema. Na Grécia arcaica, cada uma dessas coisas é denominada epos pelo poeta oral Homero. O que não é epos, o que não se reitera, é mythos, palavra da qual provém a nossa mito, mas que originalmente significava simplesmente “fala”.

Evidentemente, a cultura oral primária não poderia ter concebido o verso livre, uma vez que, para ela, a noção de verso deriva da reiteração, e nada necessariamente se reitera no verso livre. Este só é concebível, portanto, a partir da cultura letrada. Se hoje, ao ouvirmos um poeta a recitar, podemos reconhecer seu discurso como composto de versos livres, é que a leitura os tornou conce­bíveis para nós.

Vimos que o texto em versos é aquele que, ao contrário do texto em prosa, passa de uma linha para outra, mesmo que não haja necessidade física para tanto. No caso do verso metrificado – que, nas línguas

indo-europeias modernas, como o por­tuguês, é classificado segundo o número de sílabas de que se compõe, contando-se até a última acentuada –— essa passagem é ditada pelo metro. Se o texto é escrito em decassílabos, por exemplo, então cada verso termina na palavra que contém a décima sílaba acentuada.

Cada metro tende a produzir determi­nado ritmo. O decassílabo, por exemplo, tende a ser acentuado na sexta e na décima sílaba (verso heroico), ou na quarta, na oitava e na décima (verso sáfico). Pois bem, o verso heroico tende a produzir um ritmo chamado pentâmetro iâmbico, que con­siste em cinco sequências de sílaba não acentuada seguida de sílaba acentuada, como no seguinte verso de Camões:

Os DEUses FAZ desCER ao VIL terREno

E quanto ao verso livre? O que deter­mina quando deve terminar? Será a deci­são do poeta totalmente arbitrária? É famosa a afirmação de T.S. Eliot de que “não há verso livre para quem quer fazer um bom trabalho”. Em que sentido será possível dizer não, que não é inteiramente livre o verso livre? Segundo uma resposta comum, ele é determinado pelo ritmo que se deseja imprimir ao poema. Entretanto, pelo menos no sentido corriqueiro de “ritmo”, que é o de uma “sucessão de tempos fortes e fracos que se alternam com intervalos regulares”, o verso livre não tem ritmo.

Mas examinemos a questão a partir de um exemplo famoso. O poema “A flor e a náusea”, de Drummond, começa com

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melancolias, mercadorias espreitam-me.

Seria a mesma coisa se ele houvesse sido escrito em prosa? Não creio:

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta. Melan­colias, mercadorias espreitam-me.

Algo parece perder-se, na prosa. O quê? Uma unidade de som e sentido que cada verso parece ter e que, por um lado, o separa e mesmo opõe ao verso que o antecede e/ou ao que se segue, e que, por outro lado, é por ele(s) complementada. Na verdade, não é propriamente um ritmo que o verso livre propõe, mas o modo espaço-temporal em que o discurso poé­tico deve ser apreendido.

Mas o que acabo de dizer pode ser mais bem percebido em outros trechos do poema. Por exemplo:

1. Vomitar esse tédio sobre a cidade.

2. Quarenta anos e nenhum problema

3. resolvido, sequer colocado.

Em prosa, isso ficaria:

Vomitar esse tédio sobre a cidade. Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.

Aqui, é claro que o enjambement entre o verso 2 e o 3 não pode ser reproduzido em prosa. A suspensão espaço-temporal entre o verso 2 (Quarenta anos e nenhum problema), que parece afirmar um fato, e o verso 3, (resolvido, sequer colocado), que muda o sentido do verso 2 para o oposto daquele que parecia ser, isto é, que o transfigura numa espécie de sonho, logo dis­sipado na queda ou no despertar para a rea­lidade que se revela com o verso 3, constitui um recurso poético por excelência. E como um problema “sequer colocado” equivale a “nenhum problema”, voltamos ao verso 2, cujo sentido se torna ainda mais problemático.

Desse modo, o verso livre, exatamente por não se confundir com nenhum metro ou ritmo, mostra – mais claramente do que o verso metrificado – algo essencial sobre todo verso escrito: é que ele constitui uma unidade espaço-temporal irredutivelmente poética, em que são indiscerníveis o som, o sentido e a disposição gráfica do poema.

Termino retornando, de certo modo, à advertência que fiz no começo: dizer que o verso constitui um recurso poético maior, como fiz aqui, está longe de querer dizer que o poema se reduza ao verso ou que a poesia se oponha à prosa.

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