Virando o jogo

serrote #4,março 2010

Virando o jogo

DANIEL GALERA

Era uma vez um… Não, melhor: você é um ladrão que vaga por cidades e desertos de uma Pérsia mitológica roubando tapetes e pequenos tesouros. Como um ator que acaba de entrar no mundo das novelas, você é belo, jovem e atlético; a barba sempre por fazer no rosto bronzeado de surfista oca­sional. Seus aliados são uma cimitarra afiada e uma besta (o animal, não a arma que arremessa setas). Você é o protago­nista do jogo Prince of Persia,1 e sua situação, no momento, é a seguinte: você foi surpreendido por uma tempestade de areia e perdeu de vista Farrah, a besta, que carregava no lombo o mais recente butim. Sem ver nada, você avança com dificuldade contra o vento abrasivo da tempestade, cai dentro de um cânion e só não quebra o pescoço devido às extraordinárias habilidades atléticas já mencionadas.

Ao mesmo tempo, os pezinhos angelicais de uma moça correm pela areia dura do deserto tentando escapar de sol­dados armados. A fuga a leva a saltar para dentro do cânion, e ela cai em cima de você. É uma garota linda, magrela, de cabe­los cortados a navalha e visual meio hippie-chique composto de uma blusinha branca esvoaçante e finamente decorada e uma calça corsário de sarja cinza-escura. Seu belo rosto lem­bra uma Natalie Portman de traços mais esguios e angulosos. O corpo esparramado sobre o seu. Você diz “Oi”. Ela cobre sua boca com a mão até verificar que os soldados foram des­pistados, olha brevemente nos seus olhos e sai correndo.

Até agora, você – o jogador, não o ladrão – estava apenas observando a cena como num filme, mas nesse instante o controle passa para as suas mãos. Instruções que surgem na tela ensinam como conduzir, com comandos do joystick, o personagem do ladrão, de uma perspectiva afastada em ter­ceira pessoa, na perseguição à garota .2 Em poucos segundos, você aprende a andar, olhar para todos os lados, saltar e cor­rer ao longo de paredes como um herói de filme de kung fu ou um exímio praticante de parkour. Quando você alcança a garota, ela está cercada pelos soldados, e então você aprende a enfrentá-los com espadadas, saltos e arremessos que se combinam em coreografias de notável plasticidade ao toque de poucos botões. Enquanto isso, os personagens conversam, e desde as primeiras falas fica claro que você, o ladrão, prefere se comunicar com um encadeamento inter­minável de piadinhas narcisistas, enquanto a garota não tem tempo para brincadeira. “Por que está me seguindo?”, ela quer saber, e você desdenha: “Estou apenas procurando Farrah”. Quando ela sugere que você pegue sua namorada e caia fora, é possível notar a semente do ciúme irracional. Você explica que Farrah é uma besta, e agora ela volta a achar que você não passa de um idiota.

Seguem-se dois momentos narrativos importantes. Pri­meiro, você despenca de uma ponte que foi destruída com uma rocha pelos soldados. Está caindo para a morte quando a garota executa alguma espécie de magia e, envolta por fitas azuis luminescentes, flutua, pega sua mão e o resgata em segurança até a beira do penhasco. A manobra a enfra­quece, e você a ergue nos braços e a carrega carinhosamente para um local mais seguro. Nessa sequência, o jogador pode apenas controlar os passos lentos do ladrão,3 enquanto a dupla conversa automaticamente. A súbita mudança de ritmo e padrão de controle, somada à interrupção da trilha sonora, instala na mesma hora um clima de intimidade. A garota confessa que não sabe de onde acabam de surgir seus poderes mágicos e diz que precisa chegar a um certo tem­plo. Os soldados não estão tentando matá-la; querem ape­nas capturá-la por ordem do pai. Pouco depois, no segundo momento importante, você é obrigado a enfrentar mais alguns espadachins e, após derrotá-los, pergunta à garota para que lado fica o templo. Ela indica o caminho e diz: “Vá na frente, eu te sigo”. E a partir de agora, até o final do jogo, é ela quem seguirá fielmente seus passos. Na luta seguinte, você descobre que pode combinar seus próprios movimen­tos de luta com os ataques mágicos da garota para impor dano maior aos oponentes. De repente, você não é mais tão narcisista. De repente, ela não é mais tão orgulhosa. Nasce, assim, a relação que será desenvolvida por aproximada­mente 12 horas de jogo.

Uma figura corpulenta e hirsuta surge no alto de um penhasco e chama a garota pelo nome, Elika, ordenando que vá embora. É o pai dela. Vocês seguem até o templo, um palá­cio encimado por uma árvore colossal. O bate-papo dos per­sonagens vai revelando mais detalhes. Esse é o templo que aprisiona Ahriman, o deus da escuridão, que ali foi trancado pelo deus da luz, Ormazd, com a ajuda do povo que costu­mava habitar a cidade, os Ahura.4 Elika parece desesperada para alcançar a Árvore da Vida, que lacra a cela de Ahriman, e logo entenderemos por quê: o pai de Elika, que é o rei dos Ahura, pretende libertar a divindade maligna. Vocês tentam impedi-lo, mas é tarde. Para horror de Elika, seu pai corta a árvore com a espada e Ahriman escapa, tratando imedia­tamente de corromper a terra-mãe dos Ahura com seres demoníacos e uma substância negra mortífera que neutra­liza a luz e a cor do mundo. Com muita dificuldade, vocês escapam do palácio que desmorona e saem a tempo de ver Ahriman assomar no céu apocalíptico, berrando com uma voz cavernosa: “Sou a escuridão! Sou o seu fim!”

Você confronta Elika com seu típico sarcasmo egocên­trico: “Algum outro parente seu vai tentar nos matar, ou é apenas seu pai que deseja acabar com o mundo?”. Ela explica que ainda há tempo para impedir a fuga de Ahriman. Basta alcançar todos os “terrenos férteis” que alimentam a Árvore da Vida e restaurá-los com a magia de Elika. Você hesita em aderir à causa, mas é só charminho. “Eu estava voltando pra casa cheio de ouro!”, grita, desconsolado. “Eu teria vinhos! Mulheres! Tapetes desta grossura! Agora estou preso com um deus irritadinho e uma mulher louca!” Elika ignora esses rompantes de comédia barata. É uma mulher séria com uma missão. É uma princesa que quer salvar seu reino. Além do mais, ela acha que tudo isso é culpa dela.

4 respostas para Virando o jogo

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