C de Cadeira, EUCANAÃ FERRAZ

serrote #4, março 2010

C de Cadeira, EUCANAÃ FERRAZ

ALFABETO serrote

 

Do grego KaeÉspa (kathédra), o que serve para sentar; assento, banco, fundamento, base de coluna; pelo latim, cathedra, cadeira de espaldar, cadeira de transporte, cadeira de pro­fessor, cadeira de igreja, sede episcopal.1 Em seu celebrado Dicionário etimológico,2 José Pedro Machado registra o ano de 952 como a data da entrada da palavra na língua portuguesa e cita: “et pumares casas cubus cubas ledos et cadeiras”.3

Muitas são as variedades classificadas pelo uso: cadeira de jantar, cadeira de balanço, cadeira de escritório, cadeira gira­tória, cadeira de rodas, cadeira de auditório, cadeira de den­tista, cadeira de massagem, cadeira de bebê, cadeira de banho, cadeira-escada, cadeira de praia, até mesmo a cadeira elétrica, além de outras.4

Cadeiras incorporam valores culturais que parecem se materializar nelas, emergir delas, alcançando-nos direta­mente, numa experiência física que repercute em nós inte­lectual, emocional e simbolicamente.

Sentar-se em certa cadeira significa, muitas vezes, ocupar uma posição específica em determinada comunidade, e é a partir do lugar em que nos sentamos que – para o bem ou para o mal – seremos reconhecidos. Não raro faz parte de um conjunto, em que se constitui como objeto de alto valor sim­bólico numa série de objetos interdepen­dentes .5 O fato é que a cadeira foi sempre um elemento fundamental na encenação social do status, e, nos contextos de indus­trialização e produção em série, permanece apta a comunicar e transferir valores de diferentes ordens. Não por acaso, lojas de mobiliário de luxo, de design e antiquários em todo o mundo exibem cadeiras como obras de arte capazes de diferenciar, e nobi­litar, ambientes.

A história da cadeira está diretamente ligada, portanto, à sua atribuição de evi­denciar a posição hierárquica do ocupante. Foi assim no antigo Egito, na República e no Império romanos e durante a Idade Média. E o mesmo se passa hoje, quando declaramos que alguém ocupa uma cadeira em corpo­ração política, científica ou literária, numa comissão, num conselho de diretores ou num departamento acadêmico. A língua inglesa torna isso manifesto ao nomear tal personagem como chairperson. Do mesmo modo, o professor titular de uma cadeira (entendida aqui como determinada dis­ciplina) atende pelo nome de catedrático. Além da simbologia de tal ou qual palavra, muitas vezes o indivíduo que ocupa um determinado posto senta-se, literalmente, em uma cadeira diversa – na posição e/ou na forma – dos membros de seu grupo, como no caso dos presidentes de grandes empresas.

É comumente descrita como uma peça do mobiliário constituída por um assento apoiado sobre quatro pés, um encosto e, algumas vezes, braços. Tal retrato ade­qua-se ao desenho mais reconhecível do objeto ou, ainda, ao seu protótipo. Quanto a apresentar braços ou não, em inglês, aquela que os tem leva o nome de armchair; em francês, a distinção entre as cadeiras com e sem braços aparece, respectivamente, nas palavras, fauteuil e chaise.

Pode-se, no entanto, ir além desse “estado de dicionário”, porquanto muitas cadeiras desenvolvem-se bem adiante das descrições habituais. Foi durante o século passado – o século 21 não tem se mostrado diferente – que essa peça fundamental da vida cotidiana no Ocidente teve o seu dese­nho mais experimentado, com o descumpri­mento de padrões que se fixaram ao longo dos tempos, como o uso dos quatro pés. Quanto a esse aspecto particular, o design brasileiro tem um bom modelo na cadeira Trípode, criada em 1947 por Joaquim Ten­reiro (1906-1992), cuja sustentação em três apoios não violenta o desenho clássico do objeto. O mesmo se dá com a Three-legged plywood chair, projetada em 1963 por Hans J. Wegner, designer e arquiteto dinamar­quês. Estruturas bem mais radicais são os bancos Mezzadro e Sella, dos irmãos Achille e Pier Giacomo Castiglioni, criados em 1957: o primeiro é um assento de trator apoiado sobre uma perna de aço achatado que se fixa na trava de madeira que o equilibra; o segundo é um selim de bicicleta posto sobre um único pé de aço tubular preso a uma semiesfera de ferro fundido .6 Resulta daí um humour – desconhecido pelos célebres pioneiros da Bauhaus7 – ao qual os anos de 1950 a 1970 acrescentariam um ingênuo sabor de science fiction com as criações de Eero Saarinen, Verner Panton, Eero Aarnio, Joe Colombo, Peter Ghyczy, entre outros.

Considerando que todos os grandes arquitetos projetaram pelo menos uma cadeira, é possível fazer alguns paralelos. Nos edifícios, há divisões, ramificações, divi­sórias, e, por isso, Le Corbusier cunhou o conceito de promenade architectural, valo­rizando a experiência arquitetônica como percurso: descobertas constantes, motiva­das pelas ações de caminhar, voltar, circular. Já na cadeira tudo está em fusão. Ela é um objeto indiviso, que se frui num só olhar ou num breve giro em torno dela. E quando a experimentamos objetivamente, desaparece de nosso campo de visão. Não há dúvida de que estar sentado é uma vivência do corpo na qual o olho tem papel secundário. Ainda assim, sentar-se é uma experiência com­pleta, cuja qualidade depende da forma e dos materiais da cadeira, que, em conjunto, nos afetam física e psicologicamente.

A cadeira é sempre uma síntese e, com isso, impõe sua economia – ser um objeto total, uma forma não analítica, mas con­centrada – àquele que a projeta. Além disso, exibe não raro uma surpreendente força poética, ou, ainda, metapoética, já que pode alcançar o estatuto de declaração de princípios estéticos e éticos. Projetá-la com o escopo de nela substantificar certas ideias do campo da arquitetura e mesmo do urba­nismo foi sempre o programa – com maior ou menor sucesso – dos arquitetos. É sem dificuldade que podemos indagar o ideal arquitetônico-urbanístico de Mies van der

Rohe nas cadeiras que concebeu, o mesmo valendo para Le Corbusier, Alvar Aalto ou Frank O. Gehry.

Tecnologias variadas e pesquisa de mate­riais fizeram que aquele desenho mais ele­mentar – assento apoiado sobre quatro pés, encosto e, algumas vezes, braços – pudesse ser expandido quase infinitamente, e a fabri­cação em série fez projetos inovadores serem adaptados e massificados.

Por ser um utensílio que alia forma e função como poucos (nem mesmo a mesa, frequentemente sua companheira, terá alcançado valor semelhante; decerto, só o automóvel granjeou tão alta posição no con­junto de objetos que nos cercam), e, por sua natureza escultural, a cadeira converteu-se, ao longo do século 20, numa ideia plástico-arquitetônica que refletiu os inúmeros e contraditórios sentidos da modernidade.

 

1. Sem entrar em detalhes, o Dicionário Houaiss observa que o deslocamento do acento tônico se deu “por via popular”.

2. José Pedro Machado, Dicionário etimológico da língua portuguesa, v. 1, 2a ed. Lisboa: Editorial Confluência, 1967.

3. Diplomata et Chartae (documentos régios e particulares desde o século 9 até o ano 1100, reunidos em Portugaliae Monumenta Historica a Saeculo Octavo post Christum usque ad Quintum Decimum, Diplomata et Chartae, v. 1. Lisboa: Academia Real das Ciências, 1867-1873).

4. A cadeira tem merecido especial atenção quando se relaciona ao trabalho. Normas técnicas de padronização internacionais foram estabelecidas pela iso (International Organization for Standardization). A de número 9241 cuida de aspectos ergonômicos específicos para pessoas que trabalham com computador (originalmente com o nome Ergonomic Requirements for Office Work with Visual Display Terminals-VDTS, teve seu nome mudado para Ergonomics of Human System Interaction). A organização responsável pela iso no Brasil é a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

5. O trono é um bom exemplo, na medida em que depende de outras peças-símbolo, como a coroa.

6. Alguns veem nisso o princípio do ready-made.

7. Talvez Gerrit Rietveld seja uma exceção.

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