Linhas e trilhos

serrote #4,março 2010

Linhas e trilhos

VILMA ARÊAS


E.J. disse ao telefone que era preciso contar tudo. Para isso não podia sair do trem. Não fique de conversa fiada, não cruze isso com aquilo, não esconda nada, não pense que alguém se engana.

Mas tudo era confuso, ela disse, com muita coisa mistu­rada, inclusive alguns mortos, não todos, sentados em volta da mesa como numa sessão de gala naquela casa antiga, que não era a verdadeira. Contar como aconteceu era difí­cil de compreender. Mas decidiu fazer um esforço e voltar ao cenário, esquecendo o risco das balas perdidas naquele labirinto de ruas atrás da Central. Tinha chovido e pela sar­jeta corria água suja misturada com lixo, rodeando os pés dos casarões magníficos mas abandonados.

A estação está agora rodeada de grades e de carros da polícia. Faz pena olhar o saguão livre de antigamente atra­vancado de lojinhas, anúncios que piscam, uma igreja enfiada num canto, catracas pra todo lado. E o antigo bar que a gente frequentava virou um prosaico McDonald’s.

A vantagem é que o poema voltou límpido. É do Polari, que pegou prisão perpétua, mas saiu um dia e fugiu a bordo de um foguete interplanetário estacionado nas matas da Amazônia. Acho que você nunca ouviu falar. O poema dava o ritmo, o trem corria pelas mesmas linhas e trilhos. Era o mesmo grito. Eu dormia e acordava, os versos vinham pontuais como a luz do dia: as quatro latas susten­tando a cama suspensa, a marca da tinta do mimeógrafo na pele fina do corpo.

Ela disse que a desconfiança de uma branquela metida com um negro, azul de tão retinto, não podia ser desprezada. Além disso, ele também podia não ser quem dizia que era.

Mas o tempo passou, insistiu, é como enfiar a mão num saco e tirar uma pedra ao azar. Como a história da foto encontrada na revista, depois é que fiz a relação. A ordem é pra não cruzar isso com aquilo, mas não posso evitar. Virei a página e lá estava ela. Hoje é como um relógio quebrado, não tem antes nem depois. Olhei muito. Senti uma aflição, talvez a única coisa que restou do sofrimento. O fotógrafo devia estar na plataforma quando bateu o instantâneo. Parecia um grupo a caminho do trabalho, não me lembro direito, acho que estavam sendo procurados. Seis ou sete amontoados num trem. Eram quase todos negros, mas também pardos e um puxando pra branco. Mas só dois estavam realmente visíveis, porque havia muitas sombras e a luz deslumbrava. Também melancolia, um clima pesado. Nessa época eu já andava no trem. E o que ocupava o centro era igual a Laudelino.

Sei, pelas datas talvez seja impossível, fiquei confusa depois de tanta per­gunta. Acho que a impressão veio arrastada pelo poema, escrito a tinta no fino lençol. Na época tivemos mesmo de sumir com um mimeógrafo, esta­vam passando pente-fino depois que estouraram o aparelho. Fomos des­cendo a rua Valparaíso mortas de medo, com ele na cabeça. Aí passou um gari com sua carrocinha, ofereceu pra levar o mimeógrafo até a praça Saenz Peña. Fomos atrás dando risadinhas, quem podia desconfiar de tal escon­derijo caído do céu para o asfalto da rua? Depois disso passamos pelas vera­neios com a tranquilidade de pombas, a maior comunhão de interesses e sentimentos, gracejou Laís.

Acho que achei parecido, daí recortei a foto e guardei, o que deu o maior problema. Quando procurei anos depois, tinha sumido.

Disse que o calor de março era uma chapa ardente, a saudade da água fria do mar entre as coxas entristecia, o suor escorrendo, o matraquear do trem mastigando alto a poeirada do subúrbio, me levando pra Matadouro. Porque o colégio era junto de um abate de animais. O cheiro de carne crua ficava colado na roupa e no cabelo, tinha que lavar a cabeça todos os dias quando chegava em casa. Sonhava com os bichos pacíficos sendo degolados. E também não podia desviar os olhos dos urubus. Aquele voo bonito, pareciam os mesmos de minha infância, flutuando no vento com as asas paradas. Recortados em pano preto. O lugar também era Matadouro, porque do mesmo modo tinha um abate perto do rio. A molecada andava em cima do dique pra espiar. Eu também, embora fechasse os olhos na hora em que os bois entendiam tudo, iam recuando, recuando. O governo mandou fazer o dique por causa das enchentes. Só que foi construído atrás da vila operária. Quando o rio enchia, invadia as casas, estragava tudo. Era um bairro operário.

O colégio também ficava num bairro operário. Às vezes diziam que os meninos eram maltratados em casa, desconfiavam daquela gente bruta, não sei. Mas os delicados também não adiantam nada, não conhecem a gente. Houve o caso de um jogral que a professora queria ensaiar, mas a culpa não foi da mãe. Porque ninguém sabia ler direito na casa do menino. Um vizi­nho que chegou bêbado disse à mãe que era um bilhete da professora para dar uma surra no filho. Ela deu. O menino chegou todo rebentado na escola, a senhora, hein?, por que fez isso?, a professora desatinou, chorou muito, assoou o nariz com papel higiênico a tarde toda, não pôde trabalhar. Cha­mou a mãe. A mãe só disse, a senhora mandou, né?

Mas o certo, disse, era que naquela época o diretor entregou um menor de idade aos órgãos de segurança e ele sumiu para sempre. O menino, fico pensando no pai dele que nunca apareceu, talvez fosse órfão, tinha escrito no quadro-negro: morra o embaixador, Brasil para brasileiros. Nunca mais. Pensamos em fazer um abaixo-assinado, afinal era um colégio estadual, mas ninguém topou.

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