Elogio da mão

Mas tudo o que se faz sentir com um peso insensível ou com o cálido bati­mento da vida, tudo o que tem casca, roupagem, pelagem, e mesmo a pedra, seja ela talhada aos estilhaços, arredondada pelo curso das águas ou de grão intacto, tudo isso é presa para a mão, é objeto de uma experiência que a visão ou o espírito não podem conduzir por si sós. A possessão do mundo exige uma espécie de faro tátil. A visão desliza pelo universo. A mão sabe que o objeto é habitado pelo peso, que é liso ou rugoso, que não está soldado ao fundo de céu ou de terra com o qual ele parece formar um só corpo. A ação da mão define o oco do espaço e o pleno das coisas que o ocupam. Superfície, volume, densidade e peso não são fenômenos ópticos. Foi entre os dedos, no oco da palma das mãos, que o homem primeiro os conheceu. O espaço, ele o mede não com o olhar, mas com a mão e com o passo. O tato preenche a natureza de forças misteriosas. Sem ele, a natureza seria semelhante às deli­ciosas paisagens da câmara escura, diáfanas, planas e quiméricas.

Assim, os gestos multiplicavam o saber, com uma variedade de toque e de desenho cuja potência inventiva é ocultada pelo hábito milenar. Sem a mão, nada de geometria, pois é preciso lançar mão de varas e aros para se especular sobre as propriedades da extensão. Antes de reconhecer pirâmi­des, cones e espirais nas conchas, não foi necessário que o homem “jogasse” com as formas regulares, no ar ou na areia? A mão punha diante dos olhos a evidência de um número móvel, maior ou menor conforme os dedos se dobrassem ou se esticassem. Por muito tempo, a arte de contar não teve outra fórmula, e foi assim que os ismaelitas venderam José aos servidores do Faraó, como mostra o afresco românico da igreja de Saint-Savin, onde a eloquência das mãos é extraordinária. E foi por meio delas que se modelou a própria linguagem, inicialmente vivida pelo corpo inteiro e mimetizada nas danças. Para os usos correntes da vida, os gestos da mão emprestaram ímpeto à linguagem, ajudaram a articulá-la, a distinguir seus elementos, a isolá-los de um vasto sincretismo simbólico, a ritmá-la e mesmo a colori­-la de inflexões sutis. Dessa mímica da fala, dessas trocas entre a voz e as mãos, resta alguma coisa naquilo que os antigos chamavam de ação ora­tória. A diferenciação fisiológica especializou os órgãos e as funções. Uns quase não colaboram mais com os outros. Falando com a boca, nós cala­mos as mãos, e há lugares em que é de mau gosto exprimir-se ao mesmo tempo com a voz e com o gesto; outros, ao contrário, conservaram com vivacidade essa dupla poética: mesmo quando o efeito é um tanto vul­gar, ela traduz com exatidão um estado antigo do homem, a recordação de seus esforços por inventar um modo inédito. Não é o caso de escolher entre as duas fórmulas que fizeram Fausto hesitar: no começo era o Verbo, no começo era a Ação, uma vez que a Ação e o Verbo, as mãos e a voz, estão unidas já desde o princípio.

Mas é a criação de um universo concreto, distinto da natureza, que é o dom mais nobre da espécie humana. O animal sem mãos, mesmo nos pon­tos altos da evolução, não cria mais que uma indústria monótona e perma­nece no umbral da arte. Não foi capaz de constituir nem seu mundo mágico, nem seu mundo inútil. Podia mimetizar uma religião por meio da dança amorosa ou mesmo esboçar certos ritos funerários: continuava, assim mesmo, incapaz de “encantar” mediante imagens ou de dar à luz formas desinteressadas. E o pássaro? Seu canto mais delicioso não é mais que um arabesco sobre o qual compomos nossa própria sinfonia interior, à maneira do murmúrio das ondas ou dos ventos. Talvez um sonho confuso de beleza se agite no animal soberbamente adereçado, talvez ele participe obscura­mente das pompas de que é revestido; talvez mesmo certos acordes que não discernimos e que não têm nome definam uma harmonia superior no campo magnético dos instintos. Tais ondas escapam a nossos sentidos, mas nada nos proíbe de pensar que suas correspondências ressoam com brilho e profundidade no inseto e no pássaro. Essa música está sepultada no indi­zível. E as histórias mais surpreendentes a propósito de castores, formigas e abelhas mostram-nos o limite das culturas que têm por agentes apenas as patas, as antenas e as mandíbulas. Tomando em mãos alguns restos desse mundo, o homem pôde inventar um outro, que é todo seu.

Tão logo tenta intervir na ordem a que está submetido, tão logo começa a introduzir na natureza compacta uma ponta, uma lâmina que a divide e que lhe dá uma forma, a indústria primitiva traz em si todo seu desen­volvimento futuro. O habitante do abrigo sob a rocha que talha o sílex aos estilhaços e que fabrica agulhas de osso me causa mais espanto que o cien­tista construtor de máquinas. Ele deixa de ser movido por forças desconhe­cidas para agir por forças próprias. Antes, mesmo no interior da caverna mais profunda, vivia na superfície das coisas; mesmo quando rompia as vértebras de um animal ou os galhos de uma árvore, ele não penetrava, não tinha acesso. A ferramenta, em si, não é menos notável que o uso a que se destina, é ao mesmo tempo valor e resultado. Ei-la separada do resto do universo, inédita. Se a borda de uma concha fina possui um gume tão cor­tante quanto o da faca de pedra, o fato é que esta não foi recolhida ao acaso em alguma praia, pode-se dizer que é obra de um deus novo, obra e prolon­gamento de suas mãos. Entre a mão e a ferramenta começa uma amizade que não terá fim. Uma comunica à outra seu calor vivo e a molda perpetua­mente. Nova, a ferramenta não é nunca um “fato”, é preciso que se estabe­leça entre ela e os dedos que a seguram aquela harmonia que nasce de uma possessão progressiva, de gestos suaves e combinados, de hábitos mútuos e mesmo de um certo desgaste. Então, o instrumento inerte torna-se alguma coisa de vivo. Nenhuma matéria se presta tão bem a isso quanto a madeira, que outrora viveu na floresta e que, mutilada, tratada de modo a se prestar às artes do homem, conserva sob outra forma sua leveza e sua flexibilidade primitivas. A dureza da pedra e do ferro, tocada, manipulada longamente, dir-se-ia que acaba por se esquentar e se dobrar. Corrige-se assim a lei serial que tende ao idêntico e que se exerce sobre as ferramentas desde as épo­cas mais antigas, quando a constância dos tipos de fabricação facilitava a amplitude das trocas. O contato e o uso humanizaram o objeto insensível e, da série, destacaram em maior ou menor medida o único. Quem jamais viveu entre os “homens da mão” ignora o poder dessas relações ocultas, os resultados positivos dessa camaradagem em que jogam a amizade, a estima, a comunidade cotidiana do trabalho, o instinto e o orgulho da posse e, por fim, nos estratos mais elevados, o gosto por experimentar. Ignoro se há rup­tura entre a ordem manual e a ordem mecânica, não tenho certeza a res­peito, mas, na extremidade do braço, a ferramenta não contradiz o homem, não é um gancho de ferro aparafusado a uma haste; entre o braço e a ferra­menta está o deus quíntuplo que percorre a escala de todas as grandezas, a mão do pedreiro das catedrais, a mão do pintor de iluminuras.

Se, por um lado, o artista representa o tipo humano mais evoluído, por outro ele dá continuidade ao homem pré-histórico. O mundo lhe parece fresco e novo, ele o examina, desfruta-o com sentidos mais aguçados que o do civilizado, conservou o sentimento mágico do desconhecido, mas sobretudo a poética e a técnica da mão. Seja qual for a faculdade recep­tiva e inventiva do espírito, ela não é mais que um tumulto interior sem o concurso da mão. O homem que sonha pode acolher visões de paisagens extraordinárias, de rostos perfeitamente belos, mas não haveria como fixar essas visões sem suporte nem substância, e só a custo a memória as registra, como lembrança de uma lembrança. O que distingue o sonho da realidade é que o homem que sonha não tem como engendrar uma arte: suas mãos dormitam. A arte se faz com as mãos. São elas o instrumento da criação, mas também o órgão do conhecimento. Para todos os homens, conforme demonstrei; mais ainda para o artista, e por caminhos singulares. Pois o artista recomeça todas as experiências primitivas: à maneira do Centauro, tateia as fontes e os ventos. Enquanto nós sentimos esse contato passiva­mente, ele o busca e o põe à prova. Nós nos contentamos com uma aquisição milenar, com um conhecimento automático e quiçá desgastado, embutido em nós. Ele a reconduz ao ar livre, renova-a, parte do princípio. Não acon­tece o mesmo com a criança? Mais ou menos. Mas o homem feito interrompe essas experiências e, uma vez que está “feito”, deixa de se fazer. O artista pro­longa os privilégios da curiosidade infantil muito além dos limites daquela idade. Ele toca, apalpa, estima o peso, mede o espaço, modela a fluidez do ar para nele prefigurar a forma, acaricia a casca de todas as coisas e é a partir da linguagem do tato que compõe a linguagem da visão – um tom quente, um tom frio, um tom pesado, um tom vazio, uma linha dura, uma linha mole. Mas o vocabulário falado é menos rico que as impressões da mão, e é preciso mais que uma linguagem para que se traduzam seu número, sua diversi­dade e sua plenitude. Devemos estender a noção de valor tátil, tal como foi formulada por Bernard Berenson: a mão não se limita a proporcionar, num quadro, a ilusão do relevo e do volume, convidando-nos a tensionar nossas forças musculares para imitar, com um movimento interior, o movimento pintado, com tudo o que este sugere de substância, de peso e de ímpeto. Ela está na origem mesma de toda criação. Adão foi moldado no limo, como uma estátua. Na iconografia românica, Deus não sopra sobre o globo do mundo para lançá-lo no éter. Ele o põe no lugar com um gesto da mão. E é uma formidável manzorra que Rodin, a fim de figurar a obra dos seis dias, faz manar de um bloco em que dormitam as forças do caos. Que significa a lenda de Anfião, que fazia as pedras se moverem ao som de sua lira, a tal ponto que se abalavam por conta própria para ir construir as muralhas de Tebas? Certamente, nada mais que a leveza de um trabalho bem caden­ciado pela música, mas realizado por homens que se serviam de suas mãos, como os remadores das galeras, cuja batida era sustentada e escandida por uma ária de flauta. Conhecemos mesmo o nome de quem se encarregava da tarefa: Zeto, irmão do tocador de lira. Não se fala de Zeto. Quem sabe há de chegar o dia em que bastará uma frase melódica para que nasçam flores e paisagens. Mas, suspensas no vazio do espaço como sobre uma tela de sonho, terão elas mais consistência que as imagens dos sonhos? Oriundo da terra dos entalhadores de mármore e dos fundidores de bronze, o mito de Anfião me desconcertaria, se eu não recordasse que Tebas jamais brilhou no domínio da grande estatuária. Talvez esse seja um mito de compensação, um consolo inventado por um músico. Mas nós, lenhadores, modelado­res, pedreiros, pintores da figura do homem e da figura da terra, seguimos sendo amigos do nobre peso: e quem luta com ele em chave de emulação não é a voz, não é o canto, é a mão.

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