Elogio da mão

Se quisermos ir ao extremo oposto, que nosso pensamento se remeta a obras em que, mais que em outras, respiram a vida e a ação – os desenhos, que nos dão a alegria da plenitude com um mínimo de meios. Pouca maté­ria, e quase imponderável. Nenhum dos recursos suplementares, das vela­turas e da fatura, nenhuma das ricas variações do pincel que conferem à pintura o brilho, a profundidade e o movimento. Um traço, uma mancha sobre a aridez da folha em branco, devorada de luz: sem se comprazer em artifícios técnicos, sem se deter numa alquimia complicada, é como se o espírito falasse ao espírito. E, contudo, todo o peso generoso do ser humano está lá, com todo seu impulso vivaz, com o poder mágico da mão que nada, doravante, vem entravar ou retardar, mesmo quando procede lentamente, ciosa de estudo. Qualquer instrumento serve para escrever seus signos, ela os fabrica de aspecto estranho ou ousado, toma-os de empréstimo à natu­reza — uma lasca de madeira, uma pena de pássaro. Hokusai desenhava com uma casca de ovo, com a ponta do dedo, procurando incessantemente novas variedades de forma e novas variedades de vida. Quem poderia se cansar de contemplar seus álbuns e os de seus contemporâneos, álbuns que eu bem gostaria de chamar Diário da mão humana? Neles, nós a vemos mover-se com uma rapidez nervosa, com uma surpreendente economia de gestos.

O traço brusco que ela deposita sobre essa delicada superfície – papel feito de restos de seda, de aparência tão frágil e, contudo, quase impossível de rasgar –, o ponto, a mancha, a pincelada e os longos traços contínuos que exprimem tão bem a curva de uma planta, a curva de um corpo, os pon­tos de pressão esmagadora em que formiga a espessura da sombra, tudo traz até nós as delícias desse mundo e ainda alguma coisa que não é desse mundo, mas do próprio homem, uma feitiçaria natural que não se deixa comparar a nada mais. A mão parece saltar em liberdade e deleitar-se com sua própria destreza: explora com uma segurança inaudita os recursos de uma longa ciência, mas explora também esse elemento imprevisível que está além do campo do espírito — o acidente.

Há uns bons anos, quando estudava as pinturas da Ásia, eu me propunha escrever um tratado do acidente, que certamente jamais redigirei. Quanto sentido não faz a velha fábula do artista grego que, desesperando-se em vão, arremessa uma esponja carregada de tinta à cabeça de uma imagem de cavalo espumando pela boca! Não apenas ela nos ensina que é no momento em que tudo parece perdido que tudo pode ser salvo, apesar de nós mesmos, como também nos faz refletir sobre os recursos do acaso. Estamos aqui nos antí­podas do automatismo e do mecanicismo, e não menos distantes das habi­lidosas providências da razão. No funcionamento de uma máquina em que tudo se repete, tudo se encadeia, o acidente é uma negação explosiva. Para a mão de Hokusai, o acidente é uma forma desconhecida de vida, um encontro entre certas forças obscuras e um desígnio clarividente. Por vezes, dir-se-ia que ele o provoca, com um dedo impaciente, para ver o que acontece. Mas isso porque ele é de um país em que, longe de se dissimularem por uma restauração ilusória as fissuras de uma peça de cerâmica quebrada, subli­nham-se com um filete de ouro seus elegantes percursos. O artista recebe com gratidão essa dádiva do acaso e a põe respeitosamente em evidência. É uma dádiva que lhe vem dos deuses, e o mesmo vale para os acasos de sua própria mão. Apodera-se deles com presteza, para daí fazer surgir algum sonho novo. O artista é como um prestidigitador (adoro esta palavra longa e velha) que tira partido de seus erros, de seus deslizes e os transforma em proezas – e nunca é tão gracioso como quando transforma o desastre em des­treza. O excesso de tinta, que foge caprichosamente em finos riachos negros, o passeio de um inseto sobre um esboço ainda fresco, o traço desviado por um solavanco, a gota d’água que dilui um contorno, tudo isso é a irrupção do inesperado num universo em que ele deve ter seu lugar, onde tudo parece se mover para acolhê-lo. Trata-se de capturá-lo no ar e dele extrair todos seus poderes ocultos. Malditos sejam o gesto lento, os dedos dormidos! Todavia, é assim que a mancha involuntária, com seu esgar enigmático, penetra no mundo da vontade. Ela é meteoro, raiz retorcida pelo tempo, rosto inumano, instala a nota decisiva onde esta era necessária e onde ninguém a procurava.

E, contudo, uma história que sem dúvida tem teor de verdade, em se tratando da vida de um homem como tal, nos conta que Hokusai tentou pintar sem as mãos. Diz-se que, um dia, diante do xógum, tendo desdobrado no chão um rolo de papel, deitou por cima um pote de tinta azul; depois, molhando as patas de um galo num pote de tinta vermelha, ele o pôs a correr por cima da pintura, sobre a qual a ave deixou suas pegadas; e então todos reconhece­ram as águas do rio Tatsuta, levando as folhas de bordo que o outono tornara vermelhas. Feitiçaria encantadora, em que a natureza parece se esforçar sozinha por reproduzir a natureza. O azul que se espalha corre por filetes divididos, como uma onda de verdade, e a pata da ave, com seus ele­mentos separados e unidos, é semelhante à estrutura da folha. Seu passo que mal pesa deixa vestígios desiguais em força e pureza, e sua andadura respeita, com as nuanças da vida, os intervalos que separam os frágeis despojos levados pelas águas rápidas. Que mão poderia traduzir o que há de regular e de irregular, de acidental e de lógico nessa sequên­cia de coisas quase sem peso, mas não sem forma, descendo um rio de montanha? A mão de Hokusai, precisamente. E foram as lembranças de longas experiências de suas mãos com os diversos modos de sugerir a vida que levaram o mago a tentar mais esta. Suas mãos estão presentes sem se mostrar e, não tocando nada, guiam tudo.

Esse concurso do acidente, do estudo e da destreza é fre­quente nos mestres que conservaram o sentido do risco e a arte de discernir o insólito nas aparências mais corriquei­ras. A família dos visionários oferece mais de um exemplo. Seria de pensar que as visões apoderam-se deles de um só golpe, de maneira total, com despotismo, e que eles as transferem tais e quais para uma matéria qualquer, com a mão guiada de fora, como esses artistas espíritas que dese­nham às avessas. Nada de mais discutível, quando se exa­mina um dos maiores, Victor Hugo. Nenhum espírito mais rico de espetáculos interiores, de contrastes exuberantes, de irrupções verbais que pintam o objeto com uma precisão que cativa. Nós o julgaríamos e ele se julga inspirado como um mago, habitado por presenças impacientes por se con­verter em aparições, todas elas já prontas, já plásticas, num universo ao mesmo tempo sólido e convulsivo. Pois bem, Victor Hugo é o próprio tipo do homem dotado de mãos e que delas se serve não para operar milagres de cura ou propagar ondas, mas para atacar a matéria e trabalhá-la. Essa paixão, ele a leva ao cora­ção de alguns de seus estranhos romances, como Os trabalhadores do mar, no qual respira, ao lado da poesia da luta contra as forças elemen­tares, a insaciável curiosidade sobre a fábrica das coisas, o manejo das ferramentas, seus recursos, seu comportamento, seus nomes arcaicos e desconcertantes. Livro escrito com mão de marinheiro, de carpinteiro e de ferreiro, que toma posse, rudemente, da forma do objeto e que o modela no mesmo ato de se moldar a ele. Tudo aí pesa com todo seu peso, mesmo as ondas, mesmo o vento. E é justamente porque essa sensibilidade extraordinária mediu-se com a dureza das coisas, com a renitência da inércia, que ela é tão receptiva à epopeia dos fluidos, aos dramas da luz, e que ela os pintou com uma potência quase maciça. É sempre o mesmo homem que, em Guernesey, fabricava móveis e mol­duras, colecionava baús antigos e, não contente de fixar suas visões em versos, vertia o excesso em desenhos espantosos.

Temos o direito de nos perguntar se essas obras, que se situam ao termo de uma confusão interior, não são também e ao mesmo tempo um ponto de partida. Esses espíritos necessitam de balizas. Para surpreen­der a configuração do futuro, a adivinha precisa buscar os primeiros con­tornos nas manchas e nos meandros que a borra deixa no fundo de uma xícara. À medida que o acidente define sua forma nos acasos da matéria, à medida que a mão explora esse desastre, o espírito desperta por sua vez. Esse ordenamento de um mundo caótico arranca os efeitos mais surpreendentes de matérias à primeira vista pouco afeitas à arte e de fer­ramentas improvisadas, de restos, de dejetos que, gastos ou quebrados, oferecem recursos singulares. A pluma que se quebra e goteja, a ponta da madeira embotada, o pincel desgrenhado trabalham em mundos turvos, a esponja libera luzes úmidas, traços de aguada que constelam o espaço. Essa alquimia não desenvolve, como se pensa de hábito, o clichê de uma visão interior: ela constrói a visão, confere-lhe corpo, amplia-lhe as pers­pectivas. A mão não é a serva dócil do espírito, ela busca, dá tratos à bola, mete-se em todo tipo de aventura, tenta a sorte.

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