Elogio da mão

É nesse ponto que um visionário como Hugo separa-se de um visio­nário como Blake. Este é, também ele, grande poeta e homem da mão. Sua própria essência é operária. É um homem do esforço, um craftsman ou, antes, um artista da Idade Média que, por uma mutação brusca, surge na Inglaterra no umbral da era das máquinas. Não confia seus poemas ao impressor, caligrafa-os e grava-os, ornando-os de floreios à maneira de um antigo pintor de iluminuras. Mas as visões encandeadas que o perseguem, sua Bíblia da Idade da Pedra, suas veneráveis antigui­dades espirituais da humanidade, ele as conta quase sempre por meio de uma forma já feita, no mau estilo de seu tempo: tristes atletas de rótu­las e peitorais desenhados com esmero, máquinas pesadas, o Inferno de Gavin Hamilton e do ateliê de David. Um respeito popular ao belo ideal e à maneira aristocrática neutraliza seu idealismo profundo. Da mesma forma, os espíritas e os pintores de domingo reservam sempre toda deferência para o academicismo mais gasto. É de resto natural que seja assim: neles, a alma extermina o espírito e paralisa a mão.

Encontraremos nosso refúgio em Rembrandt. Sua história não é a de uma libertação progressiva? Sua mão, de início cativa do adorno barroco, dos festões e dos floreios, e mais tarde da bela execução laqueada, acaba por conquistar, no crepúsculo da vida, não uma liberdade incondicional, não um virtuosismo a mais, mas a audácia necessária a novos riscos. Captura de um só golpe a forma, o tom e a luz; traz ao dia dos vivos os hóspedes eternos da sombra. Acumula os séculos no momentâneo do instante. No homem comum, desperta a grandeza do único. Confere a poesia da exceção aos objetos familiares, aos hábitos de todo dia. Extrai riquezas fabulosas da sujidade e do cansaço da pobreza. Como? Ela mergulha no coração da maté­ria para forçá-la a metamorfoses; dir-se-ia que a submete ao cozimento num forno e que as chamas, correndo sobre essas planícies rochosas, ora calcinam, ora douram. Não que o pintor multiplique os caprichos e as experiências. Ele bane as singularidades de fatura para prosseguir ousadamente caminho afora. Mas a mão está presente. Não atua por passes magnéticos. O que ela dá à luz não é uma aparição chã no vazio do ar, é uma substância, um corpo, uma estrutura organizada.

A melhor contraprova disso, eu encontrei observando as maravilho­sas fotografias que um amigo de boa vontade teve a gentileza de me tra­zer de Suez! Há naquelas paragens um homem habilidoso e sensível que faz posar, diante de sua objetiva, os velhos rabinos do lugar. A seu redor, dispõe a luz com a arte de um mestre, de tal modo que ela parece ema­nar deles, de sua meditação secular num gueto sombrio do Egito. A fronte inclinada sobre o Talmude todo aberto, o nariz de nobre curva orien­tal, a barba de patriarca, o manto sacerdotal de belas dobras, tudo neles evoca, tudo neles afirma Rembrandt… São bem os seus velhos proféticos, vivendo fora do tempo na miséria e no esplendor de Israel. Mas que mal- -estar, todavia, toma conta de nós diante dessas imagens tão perfeitas! São como um Rembrandt esvaziado de Rembrandt. Uma percepção pura, des­pojada de substância e de densidade, ou antes uma luminosa recordação óptica, fixada nessa memória cristalina que tudo retém –— a câmara escura. A matéria, a mão, o homem estão ausentes. Esse vazio absoluto na totali­dade da presença é uma coisa estranha. Talvez eu tenha diante dos olhos uma amostra de uma poética futura –— seja como for, ainda não tenho como povoar esse silêncio e esse deserto.

Mas, ao falar de mestres plenos de calor e de liberdade, não nos limitamos a um tipo, a uma família? Teremos banido de nossas reflexões, como artesãos de habilidade em tudo maquinal, aqueles que, com uma paciência delicada e infalível, despertaram em matérias seletas e sob formas refinadas os sonhos mais concentrados? A mão do gravador, do ourives, do laqueador, do pin­tor de iluminuras será apenas uma doméstica destra e dócil, votada à prática de trabalhos refinados? A perfeição seria pois uma virtude de escravo? No campo mais concentrado, segura de si mesma e de seus movimentos, essa mão que sujeita às dimensões do microcosmo as enormidades do homem e do mundo é um prodígio por direito próprio. Não é uma máquina de redu­zir. O que lhe importa é menos o rigor de uma medida estreita e mais a sua própria capacidade de ação e de verdade. Os carrosséis e as batalhas de Callot parecem, à primeira vista, lâminas de entomologia, migrações de insetos em paisagens subterrâneas. Em seu O assédio de La Rochelle, as fortalezas, os navios não parecem brinquedos? Numerosos, apinhados, precisos, comple­tos em todos os detalhes, não parecem vistos pelo lado maior do binóculo, e a maravilha dessa coisa “feita à mão” não reside em se ter capturado e ordenado tudo na exiguidade de um teatro ao mesmo tempo minúsculo e imenso? Isolemos cada um desses personagens, este ou aquele navio, para examiná-los à lupa: não somente aparecem em toda a sua grandeza simples, sua aptidão para viver, sem nada perder de si mesmos, como no mundo de dimensões normais, mas também são autênticos, isto é, não se parecem com mais nada, levam a marca grafológica de Callot, o traço inimitável de sua elasticidade nervosa, de sua arte atenta à leveza dos funâmbulos e dos saltimbancos, de sua esgrima elegante, de seus golpes de arco dignos de um concerto real. Tudo revela a “bela mão”, como se dizia outrora dos calígrafos, tudo é escrito com mão de mestre – mas essa mão, tão orgulhosamente hábil, permanece sempre amiga da vida, evocadora do movimento e, nos ritos da perfeição, conserva o sentido e a prática da liberdade.

Debrucemo-nos sobre um outro mundo encantado. Observemos longa­mente, sustando a respiração, o Livro de horas de Étienne Chevalier. Essas pequenas figuras absurdamente perfeitas teriam sido capturadas sob o gel de uma execução milagrosa, feita de toques minúsculos, segundo regras de ateliê, por um homem dotado de excepcional acuidade visual? Longe disso, pois são uma das mais altas expressões daquele sentido monumental que é o traço característico da Idade Média francesa. Pode-se ampliá-las 100 vezes sem que percam a força de seu ímpeto, a unidade fundamental. São seme­lhantes a estátuas de igreja, das quais são irmãs ou descendentes. A mão que as traçou pertence a uma dinastia formada por séculos de estatuária. Dessa dinastia, ela conserva, por assim dizer, o caráter e a virtude até os mais ínfi­mos baixos-relevos, sombrios e dourados, pintados em trompe-l’oeil, que por vezes acompanham as miniaturas e que, eles também, são tratados com uma largueza encantadora. Assim, dois mundos se reú­nem, como no espelho circular que Van Eyck suspendeu ao fundo do retrato do casal Arnolfini, o mundo dos vivos de alta estatura, construtores de catedrais, entalhadores de imagens, e o mundo do infinitamente pequeno. Aqui a mão emprega o malho e o cinzel num bloco de pedra inclinado sobre cavaletes, e ali é sobre um quadrado de pergaminho que instrumentos afilados trabalham as sutilezas mais pre­ciosas do desenho. Não sei se ela se faz sentir ou se faz tudo por se fazer esquecer: mas a mão está lá, afirma-se na amar­ração dos membros, no traçado enérgico de um rosto, no perfil de uma cidade azulada pelo ar e mesmo nas hachuras de ouro que modelam a luz.

Nerval conta a história de uma mão amaldiçoada que, separada do corpo, corre o mundo para fazer das suas.2 Não separo a mão nem do corpo nem do espírito. Mas entre espírito e mão, as relações não são tão simples como as que se dão entre um patrão imperioso e um servidor dócil. O espírito faz a mão, a mão faz o espírito. O gesto que não cria, o gesto sem devir provoca e define o estado de consciência. O gesto que cria exerce uma ação contínua sobre a vida interior. A mão arranca o tato à passividade receptiva, organiza-o para a experiência e para a ação. Ela ensina o homem a possuir o espaço, o peso, a densidade, o número. Criando um universo inédito, deixa sua marca em toda parte. Mede-se com a matéria que ela metamorfoseia, com a forma que ela transfigura. Educadora do homem, a mão o multiplica no espaço e no tempo.

 

1. O leitor brasileiro perdoará o termo deixado em francês na tradução, recordando o célebre verso de Drummond no “Poema de sete faces”, publicado em Alguma poesia (1930). [N. do T.]

2. Cf. Gérard de Nerval, “La Main enchantée. Histoire macaronique” (1S52). [N. do T.]

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