Elogio da mão

serrote #6, novembro 2010

Elogio da mão

HENRI FOCILLON

 

Empreendo este elogio da mão como quem cumpre um dever de amizade. No momento em que começo a escre­ver, vejo minhas próprias mãos, que solicitam meu espí­rito, que o arrastam. Cá estão, companheiras incansáveis, que durante tantos anos vêm cumprindo sua tarefa, a pri­meira mantendo o papel no lugar, a outra multiplicando sobre a página branca estes pequenos signos apressados, sombrios e diligentes. Por meio delas, o homem trava con­tato com a dureza do pensamento. Elas lapidam o bloco. Impõem uma forma, um contorno e, no domínio mesmo da caligrafia, um estilo.

São quase seres animados. Serão servas? Talvez. Mas ser­vas dotadas de um gênio enérgico e livre, de uma fisionomia – rostos sem olhos e sem voz, mas que veem e que falam. Há cegos que adquirem, com o tempo, um tal refinamento de tato que são capazes de discernir ao mero toque, pela espessura infinitesimal da imagem, os naipes de um bara­lho. Mas mesmo quem enxerga precisa de mãos para ver, para completar, tateando e apalpando, a percepção das aparências. As mãos têm suas aptidões inscritas em sua silhueta e em seu desenho: mãos finas, dedos longos e móveis do argumentador, mãos proféticas, banhadas por fluidos, mãos espirituais, cuja mesma inação tem graça e caráter, mãos ternas. A fisionomia, antes praticada assi­duamente pelos mestres, teria a ganhar com um capítulo suplementar sobre as mãos. A face humana é, sobretudo, um composto de órgãos receptores. A mão é ação, ela cria e, por vezes, seria o caso de dizer que pensa. Em repouso, não é uma ferramenta sem alma, largada sobre a mesa ou rente ao corpo: o hábito, o instinto e a vontade de ação meditam nela, e não é preciso um longo exercício para que se adivi­nhe o gesto que está a ponto de fazer.

Os grandes artistas dedicaram atenção extrema ao estudo das mãos. Advertiram sua virtude poderosa, eles que, mais que os outros homens, vivem por obra delas. Rembrandt exibe-as em toda a diversidade das emo­ções, dos tipos, das idades, das condições: mão pasma de assombro de uma das testemunhas da grande A ressurreição de Lázaro, erguendo-se, cheia de sombra, contra a luz; mão industriosa e acadêmica do doutor Tulp, na Lição de anatomia, prendendo na ponta da pinça um feixe de artérias; mão de Rembrandt no ato de desenhar; mão formidável de São Mateus escrevendo o Evangelho ao ditado do anjo; mãos do velho entrevado, na Moeda de cem florins, realçadas pelas luvas grossas e toscas que pendem de seu cinto. É bem verdade que certos mestres pintaram-nas de memória com uma constância que não se desmente jamais, útil índice antropométrico para as classifica­ções do crítico. Mas quantas folhas de desenho não revelam a análise, o afã do único! Mesmo sozinhas, essas mãos vivem com intensidade.

Que privilégio é o seu? Por que o órgão mudo e cego nos fala com tanta força persuasiva? Porque é um dos mais originais, um dos mais diferencia­dos, à maneira das formas superiores da vida. Articulado por meio de gon­zos delicados, o punho arma-se sobre um sem-número de ossículos. Cinco ramos ósseos, com um sistema de nervos e ligamentos, projetam-se por baixo da pele, para depois se separar de chofre e dar origem a cinco dedos separados, cada um dos quais, articulado sobre três juntas, com atitude e espírito peculiares. Uma planície abaulada, percorrida por veias e artérias, arredondada nas bordas, une o punho aos dedos, ao mesmo tempo que lhes encobre a estrutura oculta. O verso é um receptáculo. Na vida ativa da mão, ela é suscetível de se distender e de se endurecer, assim como é capaz de se moldar ao objeto. Esse trabalho deixou marcas no oco da mão, e podem-se ler aí, se não os símbolos lineares das coisas passadas e futuras, ao menos o traço e como que as memórias de nossa vida de resto já apagada – e quem sabe, até, alguma herança mais antiga. De perto, trata-se de uma paisa­gem singular, com seus montes, sua grande depressão central, seus estrei­tos vales fluviais, ora fissurados por acidentes, cadeias e tramas, ora puros e finos como uma escritura. Toda figura permite o devaneio. Não sei se o homem que interroga esta chegará a decifrar algum enigma, mas me parece bom que contemple com respeito essa sua serva orgulhosa.

Observe-se a vida livre das mãos, desobrigadas de função, sem o fardo de um mistério – em repouso, os dedos ligeiramente arqueados, como se elas se abandonassem a algum sonho, ou na elegante vivacidade dos gestos puros, dos gestos inúteis: parece então que desenham no ar, gratuitamente, a multiplicidade dos possíveis e que, brin­cando consigo mesmas, preparam-se para a próxima inter­venção eficaz. Capazes de imitar, por meio da sombra pro­jetada contra uma parede à luz de uma vela, a silhueta e o comportamento dos animais, são muito mais belas quando não imitam nada. Por vezes, enquanto o espírito trabalha e as deixa em liberdade, elas se agitam sem força. De um ímpeto, agitam o ar, ou então alongam os tendões e fazem estalar as juntas, quando não se apertam estreitamente para formar um bloco compacto, um verdadeiro rochedo de ossos. E acontece ainda que, subindo e descendo um atrás do outro, com uma agilidade de dançarinos, segundo cadên­cias inventadas, os dedos façam nascer ramalhetes de figuras.

Elas não são um par de gêmeas passivamente idênti­cas. Não se distinguem uma da outra à maneira da caçula e da primogênita ou como duas moças de dotes desiguais, uma afeita a todas as destrezas, a outra, serva embotada na monotonia prática dos trabalhos grosseiros. Não faço fé, em absoluto, na eminente dignidade da direita. Quando a esquerda lhe falta, ela recai numa solidão difícil e quase estéril. A esquerda, essa mão que designa injustamente o lado ruim da vida, a porção sinistra do espaço – na qual mais vale não dar de encontro com um morto, um inimigo ou um pássaro –, é capaz de se adestrar a ponto de cumprir todos os deveres da outra. Construída da mesma maneira, tem as mesmas aptidões, às quais renuncia para auxiliar a outra. Por acaso segura com menos vigor o tronco da árvore, o cabo do machado? Estreita com menos força o corpo do adversário? Tem menos peso quando golpeia? Ao vio­lino, não produz as notas, atacando diretamente as cordas, enquanto a direita, por intermédio do arco, não faz mais que propagar a melodia? É sorte que não tenhamos duas mãos direitas. Como se repartiria então a diversidade das tarefas? O que há de gauche na mão esquerda é certamente necessário a uma civilização superior;1 ela nos vincula ao passado venerável do homem, quando este não era tão hábil, quando ainda estava longe de poder fazer, como quer o dito popular, “o que bem entender com os dez dedos”. Não fosse assim e naufragaríamos por um terrível excesso de virtuosismo. Teríamos levado ao limite extremo a arte dos malabaristas – e provavelmente nada mais.

Tal como está constituído, esse par não apenas serviu aos desígnios do ser humano, como ainda auxiliou seu nascimento, conferiu-lhe precisão, deu-lhe forma e figura. O homem fez a mão, isto é, destacou-a pouco a pouco do mundo animal, libertou-a de uma antiga e natural servidão, mas a mão também fez o homem. Permitiu-lhe certos contatos com o universo que os outros órgãos e partes do corpo não facultavam. Erguida contra o vento, desabrochando e articulando-se como uma ramaria, incitava-o à captura dos fluidos. Multiplicava as superfícies delicadamente sensíveis ao conhecimento do ar, ao conhecimento das águas. Mestre em que subsiste, com muita graça, sob uma camada muito tênue de humanismo, um sentido um tanto turvo e selvagem dos mistérios da fábula, Pollaiuolo pintou uma bela Dafne arrebatada pelo gênio das metamorfoses no exato instante em que Apolo está a ponto de alcançá-la: os braços tornam-se galhos, as extre­midades são ramagens movidas pelo vento. Quase vejo o homem antigo respirando o mundo pelas mãos, esticando os dedos para transformá-los numa rede capaz de capturar o imponderável. “Minhas mãos”, diz o Cen­tauro, “tatearam os rochedos, as águas, as plantas inumeráveis e as mais sutis impressões do ar, pois eu as ergo, nas noites cegas e calmas, para que surpreendam a brisa e colham augúrios do meu caminho…”. Protegidos dos deuses, Dafne e o Centauro não tinham, em sua metamorfose como em sua estabilidade, outras armas que não as de nossa raça para “tatear”, para ter uma experiência do universo, mesmo nessas correntes translúcidas que não têm peso e que o olho não vê.

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