A arte de perder

3.

“Eu não tenho duas vidas”, escreve Annie Leibovitz no pre­fácio de A Photographer’s Life 1990-2005, explicando por que os momentos de intimidade com Susan Sontag estão no centro do livro que é um balanço de seu trabalho mais recente. Lançado em 2006, A Photographer’s Life daria início a uma revisão de carreira, complementada naquele mesmo ano por Annie Leibovitz – A vida através das lentes, documen­tário indulgentemente dirigido por sua irmã, Barbara, e, em 2008, pelo livro At Work,3 que narra os bastidores de algu­mas de suas fotos mais conhecidas não sem um toque de autoglamurização.

A Photographer’s Life é pontuado por duas perdas: a morte de Susan, em dezembro de 2004, depois de 15 anos de uma relação que ambas evitavam nomear (mas que na prática resultava, publicamente até, em uma convivên­cia conjugal), e a do pai de Leibovitz, menos de três meses depois. O que justifica o livro e o diferencia daqueles organi­zados por grandes fotógrafos em retrospectivas de carreira é o apagamento voluntário das fronteiras entre público e privado, obra e vida. Que, neste caso, é a distancia abissal entre as páginas superproduzidas da Vanity Fair e as auste­ras imagens do pai no leito de morte, gesto que atualiza o de Richard Avedon, que também documentou os últimos momentos do próprio pai na série Jacob Israel Avedon.

Têm portanto um mesmo peso a célebre pose de Demi Moore linda e grávida e Susan nua, na banheira, mal escon­dendo a mastectomia que pontuou seu extenso sofrimento com o câncer. Estão lado a lado o portrait assustador de George W. Bush e seu staff, as ruínas, fumegantes, do World Trade Center, a família Leibovitz reunida, Sontag dormindo na casa de campo. De forma sutil, narra-se a cerimônia do adeus: aqui e ali documentos das quimioterapias, as inter­nações, a raspagem do cabelo e, finalmente, os momentos finais, de cara para a morte.

“Desde quando as câmeras foram inventadas, em 1839, a fotografia flertou com a morte”, escreveu Susan Sontag no que ficaria sendo seu último livro, Diante da dor dos outros,4 curto ensaio sobre a fotografia das vítimas de guerra escrito explici­tamente no calor do 11 de setembro. Em dado momento, refle­tindo sobre este universo particular de imagens, ela observa que, no extremo oposto das mortes públicas, “o sofrimento decorrente de causas naturais, como enfermidades ou parto, é escassamente representado na história da arte”.

Aí está, a meu ver, a melhor explicação para a estranheza provocada por estas imagens – previsivelmente, Leibovitz foi hipocritamente acusada pela sociedade de “expor” Son­tag, assim como Simone de Beauvoir o fora em 1981 pela crônica dos últimos dias de Jean-Paul Sartre em A cerimônia do adeus.5 O corpo macerado pela doença, ligado a apare­lhos, é explorado sem pudor. Uma série de flagrantes, que nada têm a ver com fotos “de fotógrafo”, documenta em detalhes o cadáver: as mãos inchadas, os pés aprisionados em sapatos que parecem absurdos, o rosto desfigurado que não deixa lembrar a imponência da escritora, invariavel­mente altiva posando ou falando em público.

Na sequência, Sontag em câmara ardente se transforma num retrato que lembra a solenidade do Proust morto de Man Ray. Mais adiante, a imagem, desoladora, do apartamento de Sontag visto do terraço do apartamento de Leibovitz, numa Nova York soterrada pela neve no inverno de 2004-2005. Entre essas imagens, no início e no final de A Photographer’s Life, panoramas do deserto e anotações de Sontag para O amante do vulcão, romance que ela publicou em 1992.

 

4.

“Se a fotografia se torna então horrível é porque ela certifica, se assim podemos dizer, que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma coisa morta”, escreve Roland Barthes em A câmara clara ,6 publicado menos de dois meses antes de sua morte, em março de 1980. Escrito por encomenda para as edições do Cahiers du Cinema, esse ensaio é e não é sobre fotografia. Sua ambição principal não é teórica, mas literária: trata-se de uma meditação, persona­líssima, sobre a morte da mãe, o evento sob vários aspectos definidor de seus últimos dois anos de vida.

A publicação do Diário do luto,7 em janeiro de 2009, dá conta desse período e é importante para entender como o que chamava de “intratável realidade” da orfandade deter­minou importantes mudanças na escrita – e, portanto, na vida – de um homem de 62 anos, intelectual consagrado e influente. “Primeira noite de núpcias. Mas primeira noite de luto?”, escreve ele em 26 de outubro de 1977, um dia depois da morte de Henriette Barthes, na primeira das 330 fichas (ele amava as fichas) que formam o “diário”, coleção de fragmentos que não se organizam como narrativa ou sucessão, mínima que seja, de episódios.

Naquele ano que terminaria com a morte da mãe, Bar­thes alcançou uma dupla e rara consagração para uma mesma vida: o reconhecimento do grande público, que transformou em best-seller Fragmentos de um discursoamoroso, e a entrada no Collège de France, o posto máximo que um intelectual e professor francês poderia almejar. Seus cursos atraíam pequenas multidões, suas ideias espa­lhavam-se na academia e fora dela, e o Colóquio de Cerisy dedicava a edição de 1977 a discutir sua obra.

Barthes mergulha em profunda melancolia. O Diário registra o que Freud chamou de “sério afastamento da con­duta normal da vida”. Um afastamento que não acontece na superfície – continua a viajar, publicar livros, escrever artigos –, mas no mais íntimo de sua criação. Mais precisa­mente na escrita. “Escrever para lembrar? Não para lembrar, mas para combater o dilaceramento do esquecimento na medida em que ele se anuncia, absoluto. Em breve o ‘nem sombra de’, em nenhum lugar, em ninguém.”

Engolfado pela dor – “Não dizer ‘luto’. É psicanalítico demais. Não estou de luto. Estou triste” –, Barthes decide fazer da literatura, da escrita literária, seu horizonte de sobrevivên­cia e, implicitamente, de renascimento. Em A câmara clara, escrito em 48 dias, ele explica essa lógica da escrita: “Minha particularidade não poderá nunca mais universalizar-se (a não ser, utopicamente, pela escritura, cujo projeto, a partir de então, devia tornar-se o único objetivo de minha vida). Eu só podia esperar minha morte total, indialética.”

Nesse projeto, do qual se conhece apenas um planeja­mento do que seria um romance expressivamente bati­zado Vita nova, o prólogo é definido por uma palavra: “luto”. Dele restaram oito páginas manuscritas, lacunares, versões alteradas de um mesmo sumário que, até onde se sabe, não tiveram nenhuma continuidade. No primeiro esboço, há a indicação de uma “decisão de 15 de abril de 1978” e a pista: “A literatura como substituta do amor”.8

No dia 25 de fevereiro de 1980, ao deixar o Collège de France depois de mais uma aula do seminário A preparação do romance,9 Barthes é atropelado num acidente que, espe­cula-se inconclusivamente, teria resultado mais de sua von­tade que da fatalidade.1 0 Internado, morre em 26 de março. Naquela altura, já havia abandonado o diário – a última ficha datada registra simplesmente “Há manhãs que são tão tristes…” –— e seu projeto de literatura não havia chegado a termo. A escrita, no entanto, de certa forma o redimiu por contraste ao vazio deixado pela fotografia, “esse signo impiedoso de minha morte futura”.

 

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