5.
“Depois de quase duas horas de caminhada cega ao deixar o cemitério, caminhada durante a qual não sei o que me terá impedido de morrer atropelado como afinal coube a Roland Barthes, a fome trata de apurar meus sentidos”, escreve Carlito Azevedo em “Ritual”, quarta e última seção do longo poema em prosa “H.”, parte de Monodrama, primeiro livro em oito anos do poeta que estreou, aos 30, com o elogiado Collapsus Linguae.
Carlito não é poeta de arroubos ou da emoção bruta. Sua dicção é sóbria na melhor acepção da palavra. Incorpora referências e coloquialismo na mesma medida e, sobretudo em Monodrama, título que já apresenta essa tensão, arruma umas e outro em fragmentos narrativos, muitas vezes vizinhos da prosa. Viagens, países, tristezas, mulheres, notícias, vida – mas, no centro de tudo, está a morte. Não a morte qualquer, a morte da mãe, Hilda, com agá como a Henriette de Barthes.
A meio do livro, “Limpeza do aparelho” é um corpo estranho, em prosa, que avalia o que se leu até o momento e, levando o leitor para os bastidores, sinaliza o caminho para “H.”:
Você acha que seu livro precisa de um pouco de humor, você adoraria escrever alguns poemas bem-humorados, mas reconhece que agora, com mãe morta, amor no exílio e melhor amiga dizendo que não pode mais lhe ver e chorando porque acha que não presta para você, vai ser meio difícil encontrar alguma graça. Sua tríade pifou.
É da perda, portanto, da tríade pifada, que nascem os quatro movimentos de “H.”, cautelosa aproximação da morte. Da notícia, tão objetiva quanto possível, com direito a nota de pé de página (“O telefone tocou às 11h30.”), à plena assimilação do fim, a carapaça da linguagem vai sendo arranhada, trincada, escavada: “A ideia apavorante da morte de minha mãe, pelo que vejo, ultrapassou a superfície gelada, deixando-a intacta, e está fazendo sutis estragos em regiões que desconheço, não alcanço”.
O acesso a essas regiões, dura viagem de autoconhecimento, se dá precisamente através da escrita, que é a atividade incessante do poeta diante da própria dor, buscando apreender o desregramento que o surpreende. Como se respondesse à ambígua objetividade de Bishop – “A arte de perder não chega a ser mistério/ por muito que pareça (Escreve!) muito sério” –, o poeta afirma: “Sinto que se conseguir escrever agora o que se passa comigo estarei salvo, repito isso a mim mesmo algumas vezes, como repito mentalmente o refrão de que onde há obra não há loucura e onde há loucura não há obra e venho escrever”.
No segundo movimento, o poeta relê o que escreveu até então e aproxima-se mais, fisicamente até, da mãe, “imenso inseto preso no âmbar” do Alzheimer. O texto lhe traz “algo cinético e fluido”, combina a irritação provocada pelas primeiras manifestações da doença com o beijo diário de boa noite, filho transformado em mãe que vai repetir o gesto no velório, “o rosto molhado de lágrimas mas sem desespero”. Vacinado do sentimentalismo e talvez por isso exposto mais diretamente à dor, constata: “O composto harmonioso que fazia de H. minha mãe ficou destruído para sempre”.
“Motores” inicia o trabalho do luto. O poeta executa o “mandamento do exame da realidade” sobre o qual Freud escreveu inventariando, no cotidiano, os ruídos que dão ritmo à escrita. Durante a doença, no quarto ao lado, os espasmos da máquina de hemodiálise. Depois da morte, o “sistema de rumores” da casa altera-se fundamentalmente na vida solitária – “Às vezes, num ônibus antigo, rumo ao centro, me volta o motor que te adiava esse buraco na terra”.
“Ritual”, que encerra o poema, é precisamente o reajuste, sempre violento, da vida que segue com o estado de exceção da morte. Sentado na lanchonete popular, comendo, o poeta dirige-se à mãe pela primeira vez como Hilda e dela “ouve” o recado do fim irrevogável. Quando tudo cessa, diz a voz que tem origem na “larga eternidade de nada sentir, nada provar, nada tocar, ver e ouvir”, não há diferença entre a morte “tranquila”, durante o sono, de Chaplin e o corpo supliciado de Pasolini. Tanto faz, diz a mãe, “nesse louco planeta que agora, para você, gira também sem mim”.
P. S.: Consultada pela serrote sobre a possibilidade de licenciar as fotos de Susan Sontag aqui citadas, Annie Leibovitz responde através de sua assistente que essas imagens não podem ser publicadas separadamente das demais de A Photographer’s Life. A recusa é o melhor pós-escrito ao paradoxo que move a criação no luto, a dor mais íntima que talvez só se proteja com sua exposição pública.
PAULO ROBERTO PIRES é professor da Escola de Comunicação da UFRJ e editor da serrote.
1. O iceberg imaginário e outros poemas. Tradução de Paulo Henriques Brito. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
2. Este e todos os textos de Freud citados estão no volume 12 das Obras completas. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
3. As referências aos livros de Annie Leibovitz são das edições originais da Random House; o documentário foi lançado no Brasil em DvD.
4. Diante da dor dos outros. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
5. Uma das vozes mais duras foi a do filho de Sontag, David Rieff, que na memoir Swimming in a Sea ofDeath chega a botar em dúvida a existência de uma relação estável entre Leibovitz e sua mãe. Para o clima que gerou a publicação de A cerimônia do adeus, ver a biografia de Sartre por Annie-Cohen Solal.
6. Todas as citações de A câmara clara são da tradução de Julio Castañon Guimarães para a Nova Fronteira (19 84).
7. O lançamento de Journal du deuil (Seuil, 2009) também causou polêmica, do mesmo ponto de vista das boas intenções, pela exposição póstuma de seu autor. Um ano mais tarde, o curto ensaio de Eric Marty Roland Barthes, la littérature et le droit à la mort (Seuil, 2010) defende com brilho por que o Diário só poderia ter sido publicado postumamente.
8. Vita nova é reproduzida em fac-símile e transcrita no volume 5 das Oeuvres complètes de Barthes, com comentários e organização de Éric Marty (Seuil, 1995).
9. Os cursos do Collège vêm sendo traduzidos pela Martins Fontes nas Obras de Barthes, coordenadas por Leyla Perrone-Moisés.
10. Os detalhes estão jornalisticamente narrados por Hervé Algalarrondo em Les Derniers jours de Roland B. (Stock, 2006)