A petulância de ser Wilde

serrote #7, março 2011

A petulância de ser Wilde

ARTHUR DAPIEVE

 

Na letra de “Cemetry Gates”, música do melhor e mais popular LP do grupo inglês The Smiths, The Queen Is Dead, de 1986, Morrissey tratava daquilo que definiu como “o mais absorvente passatempo”: a atração por túmulos. Os adeptos do hábito conhecido pelo neologismo “tafofilia” alegam que os passeios buscam a paz de espírito e a beleza dos cemitérios. “Posso gastar horas e horas num deles, ape­nas inalando os indivíduos”, disse Morrissey. “Quando vive­ram, quando morreram, tudo é inspirador.”

O vocalista dos Smiths visitava necrópoles – em especial o Southern Cemetery, em sua Manchester natal – desde o final da adolescência, na companhia ou de sua amiga Linder Ster­ling ou de Howard Devoto, membro de outras duas impor­tantes formações do rock local, os Buzzcocks e o Magazine. O encanto de “Cemetry Gates” começava pela leveza, inco­mum num disco sombrio de uma banda triste. O guitarrista Johnny Marr chegara à melodia ao experimentar uma troca de acordes. Em vez do sol para si menor de “I Wanna Hold Your Hand”, dos Beatles, de si menor para sol. Fiat lux.

A “tafofilia” fornecia o cenário, mas não era o único assunto da letra que grafava a palavra inglesa cemetery de modo errado. Morrissey descrevia um “temido dia enso­larado”, no qual encontrava alguém na porta do cemité­rio para uma conversa sobre literatura e plágio entre as lápides. Na ocasião do lançamento de The Queen Is Dead, o terceiro dos cinco álbuns dos Smiths, o próprio Morrissey vinha sendo acusado pela imprensa inglesa de se apoderar de palavras alheias na cons­trução de suas letras.

Nesse passeio pelo cemitério em particular, Morrissey tecia considera­ções insinceras sobre ser errado plagiar – o que era particularmente engra­çado se se soubesse que a própria letra citava Shakespeare (Ricardo iii) e os diálogos de um velho filme de Bette Davis (Satã jantou lá em casa) – e sobre como isso mais cedo ou mais tarde seria descoberto. Além disso, no refrão dirigido ao companheiro de jornada, e ao ouvinte solidário, ele explicitava a idolatria quintessencial para a compreensão de sua vida e sua obra: “Keats e Yeats estão do seu lado/ Enquanto Wilde está do meu”.

Havia uma ironia adicional nessa referência ao escritor, poeta, drama­turgo e frasista irlandês Oscar Wilde (1854-1900). Sua própria poesia havia sido acusada de plagiar os mestres do passado. E entre os inúmeros epigra­mas do artista mais popular na Londres dos anos 90 do século 19, estava um que casava com o contexto de “Cemetry Gates”: “O talento toma empres­tado, o gênio rouba”. Morrissey nunca teve dúvidas de que era um gênio e de que Wilde estava desde sempre do seu lado. Ou vice-versa.

Em meio a centenas de marcas de batom deixadas por fãs no monu­mento que abriga os restos mortais de Wilde no cemitério Père-Lachaise, em Paris, não é raro encontrar uma pichação com o nome Morrissey. Nou­tro toque da justiça poética tão cara ao líder dos Smiths (também conhecido como “Mozzer” ou “Moz”), sob a escultura alada de Jacob Epstein repousa, além do pó daquele que um dia foi Oscar Wilde, o de seu primeiro e mais fiel amante, Robert Ross, que à época do início do affair tinha 17 anos.

Morrissey nunca deixou dúvidas sobre a importância de Wilde para sua formação artística e para a condução de toda a sua vida. A bibliografia mor­risseyana comprova: o nome de Wilde aparece em 28 páginas da biografia Saint Morrissey, publicada por Mark Simpson em 2004 — para se ter uma ideia, o nome de Marr, parceiro na breve e gloriosa época dos Smiths (1982- 1987), aparece em meras 26, e o do ator americano James Dean, outra divin­dade para o cantor irlandês, em 24. Já na impressionante Mozipedia – The Encyclopedia of Morrissey and The Smiths, publicada por Simon Goddard em 2009, o verbete de Wilde só perde em tamanho para o de Marr e para o da batalha legal que o guitarrista e o cantor enfrentaram em 1996.

Naquele ano, o baterista Mike Joyce processou os dois autores das músi­cas dos Smiths alegando, com base numa lei de 1890, que os rendimentos relativos a direitos autorais de todos os ex-membros da banda deveriam ser iguais. Havia um acordo verbal de Morrissey e Marr com Joyce e com o bai­xista Andy Rourke de que os dois primeiros teriam 40% desse dinheiro cada um, e os outros dois, 10% cada. O juiz deu ganho de causa a Joyce e determi­nou a divisão em quatro partes iguais. Embora a decisão tenha sido revista, o veredicto foi uma das principais causas, se não a principal, para Morrissey ter ido morar nos Estados Unidos. Com uma passagem pela Itália.

O cantor sentiu-se tão injustiçado quanto Wilde nos célebres julgamen­tos que o arruinaram física e moralmente em 1895, depois de seu ídolo ter processado o marquês de Queensberry, que, por escrito, o acusara de ser sodomita. Criador das regras do boxe, o truculento nobre estava contrariado com o notório envolvimento — para o qual o resto da sociedade fazia vista grossa – entre seu filho, lorde Alfred Douglas, mais conhecido como “Bosie”, e o famoso dramaturgo. A homossexualidade ainda era crime na Inglaterra, e, instigado pelo amante, Wilde decidiu levar o ofensor ao tribunal. Erro crasso.

A princípio, Wilde conduziu o julgamento, como se este fosse apenas mais uma das rodas de conversas sofisticadas nas quais costumava pontifi­car. Então, inquirido se beijara um empregado de Bosie, foi traído pela língua. Respondeu que não, não o tinha beijado porque “ele era, infelizmente, muito feio”. Naqueles tempo e circunstância, a boutade valia por uma admissão de culpa. O jogo virou. O marquês de Queensberry foi absolvido no mesmo dia em que Wilde era preso, acusado de cometer atos indecentes. Depois de um segundo julgamento inconclusivo, o irlandês acabou sentenciado no terceiro, no qual o juiz o declarou “morto para todo senso de vergonha”, a dois anos de trabalhos forçados na prisão de Reading. Wilde cumpriria a pena, iria se exilar na França e morreria de verdade, de meningite, aos 46 anos.

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