A vida após a morte da canção

serrote #6, novembro 2010

A vida após a morte da canção

MARCOS NOBRE

JOSÉ ROBERTO ZAN

 

Ali por 2004 parecia fazer todo o sentido debater a vida e a morte da canção. Em entrevista à Folha de S. Paulo em 29 de agosto, José Ramos Tinhorão decretou: “A canção acabou”. E explicou: “Acabou essa canção que nasce contemporânea do individualismo burguês, feita para você cantar e outras pes­soas ouvirem sentindo-se representadas na letra”. Em 26 de dezembro do mesmo ano, também na Folha de S. Paulo, Chico Buarque disse coisa parecida, mas já vinculando o problema explicitamente ao Brasil: “Como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20. No Brasil, isso é nítido.” Sintomaticamente, Chico, como antes Tinhorão, também vinculou o declínio da canção à ascensão do rap: “Quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Tal­vez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou.” Desde então, pode-se dizer que o rap já não é mais aquele. Mas o que importa é que não se tratava de qualquer debate. Se a canção perdeu seu lastro, é toda a história da música brasileira que passa a fazer parte do passado e tem pouco ou nada a dizer ao presente. Em tradução mais ou menos literal, aquele país que então parecia não encontrar seu rumo uma vez mais recorria à música para pensar a própria sorte.

Pouco tempo depois, quando a certeza do futuro radiante do país se estabeleceu de vez, sumiram os debates e as dúvidas existenciais. Depois da confirmação dada pela medalha econômica do “grau de investimento”, em abril de 2008, nem se sabe bem o que haveria por debater, afora uma ou outra correção meramente técnica. E a MPB, cuja existência com sentido e densidade estava tão ameaçada, dá a impressão de ter voltado a afirmar sem mais sua exis­tência pelo seu ser. E o debate sobre o estatuto da canção simplesmente evaporou.

O documentário Uma noite em 1967 ilustra isso muito bem. Mal se fica sabendo que eram tempos de ditadura militar. E, pela primeira vez em mais de 40 anos, a lição é a de que todo aquele tumulto enfim passou. Toda a energia dos festivais ficou naquela noite. Uma noite. Toda a cons­trução do filme, todos os depoimentos fazem questão de soldar um dos mais emblemáticos momentos culturais brasileiros a um ano que, por fim, terminou. E, qualquer que seja a intenção, nenhum dos envolvidos acha lá grande coisa o que fez e o que aconteceu naquela noite.

Se é assim para a caixa de ressonância histórica que foram os festivais, que dizer de um obscuro debate, reali­zado no ano precedente de 1966, promovido pela revista Civilização Brasileira, que serve de empurrão para a con­versa que serrote propõe aqui? A resposta não é simples. Também porque é mais um caso da famosa prova da exis­tência do pudim: só mesmo comendo.

Mas que, de saída, tem a vantagem do abismo histórico. Em 1966, havia algo de obviamente errado. Um golpe de Estado, uma ditadura. Vista dessa maneira, a moldura do bloqueio mental de hoje fica bem mais aparente: a dificul­dade de encontrar o que há de obviamente errado. Não porque esteja ausente. Mas porque está difícil enxergar onde estão as energias que permitem colocar o obviamente errado à vista de todo mundo. Porque o obviamente errado só ganha cara quando o bloco ganha a rua. Quando, de algum jeito, vira movimento.

Mais ainda, o obviamente errado apareceu no debate de 1966 de maneira instigante porque juntou coisas que antes andavam separadas: política e indústria cultural, música e mercado. Àquela altura, o movimento musical mais bem sacado do pós-guerra, a bossa-nova, era dado por fogo de palha já devidamente consumido. Bossa-nova que nunca viu, aliás, qualquer problema na sua relação com a indústria fonográfica – a não ser no dado biográfico-social de que ser “músico profis­sional” não era de bom-tom na classe média do eixo Rio-São Paulo dos anos 1950. Já os movimentos musicais do início dos 1960, ao contrário, tinham uma pauta abertamente adversária da indústria, só enxergavam vida musi­cal autêntica fora do mercado, em alternativa a ele. Só no elemento da polí­tica encontravam arte autêntica. O interessante e artisticamente relevante é que a busca de autenticidade, a busca das raízes da MPB, vinha junto com o material musical mais avançado de que se dispunha.

Difícil dizer no que poderia ter dado esse projeto de substituir o mercado pela política como enquadramento da autenticidade artística. Mas o fato é que as tropas do general Kruel desmontaram o experimento. E, dois anos depois do golpe, já tinha ficado claro que não se tratava de quartelada de ocasião, que os milicos não estavam de passagem. De modo que os termos do problema se alteraram radicalmente. Ou o experimento se entocava em células de guerri­lha musical, ou os guerrilheiros aceitavam disputar o terreno do mercado.

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