A vida após a morte da canção

Claro estava que o padrão da bossa-nova – comparado, por exemplo, ao gigantesco bloco histórico que o precedeu, o da era do rádio – tinha uma ingenuidade artesanal que, em vista dos acontecimentos, só poderia ser retomada tal e qual como cinismo. Mas mesmo quem não queria se entocar nas células de resistência só topava a disputa aberta na indústria cultural se enxergasse ali margem para outro tipo de guerrilha. Ou seja, se encontrasse na indústria cultural espaço para a disputa política, naquele sentido amplo e largo do termo que é próprio de um movimento artístico que se preze.

A hora histórica não poderia ter sido mais propícia. A música era de longe a forma artística dominante no país. E muitos dos principais progra­mas da televisão nascente eram programas musicais. Com a televisão e a progressiva integração entre os diferentes meios, a indústria cultural bra­sileira estava em um momento de transição para um modelo que só viria a se estabilizar ao longo da década de 1970. As brechas para a intervenção tinham potencial para se tornar grandes avenidas.

O que havia de ilusório nisso veio a cavalo no final de 1968 e deitou con­sequências até muito depois. Mas, ao mesmo tempo, talvez o que havia de ilusório nesse aproveitamento de brechas tenha tido sua parte na própria reação que significou o At-5. Seja como for, em 1966 a questão ainda estava em aberto. E é essa abertura que interessa aqui.

Para quem lê hoje os textos sobre música publicados pela revista Civi­lização Brasileira na década de 1960, as intervenções parecem desconexas, não parecem ser realmente diálogos em muitos momentos. E é mesmo difí­cil reconstruir todo o pano de fundo político e social presente nas diferentes falas, de modo a reconhecer os pontos da teia cultural em que se encontra cada um dos participantes. Grande parte do muito que está implícito na conversa só poderia ser mesmo recuperado por uma exegese histórica.

Mas é possível olhar a conversa do ponto de vista do que aconteceu depois dela. Principalmente no período de pouco mais de dois anos que separa o debate da decretação do AI-5. Olhada assim, a conversa desconexa ganha ares de programa de intervenção. E estende seus efeitos para muito além daquele período. É com esses olhos que podemos ler duas decisivas intervenções nesse debate de 1966, a de Flávio Macedo Soares e a de José Carlos Capinam.

Flávio Macedo Soares abriu a discussão apresentando o diagnóstico do momento. Comparou a situação anterior ao golpe com o momento em que se dava o debate. Note-se que, ao mencionar os novos nomes da MPB, cita exa­tamente os quatro primeiros colocados no Festival da MPB da Rede Record de Televisão do ano seguinte de 1967, o que mostra o quanto sua interven­ção tinha gume para o presente. Ele se exprimiu nos seguintes termos:

Realmente, dentro da conjuntura que havia antes e de certas linhas que já se tinham denunciado na bossa-nova, cresceu toda uma nova geração de músicos, como Caetano Veloso (aqui presente), Gilberto Gil, Chico Buarque, Edu Lobo etc. Essa geração, se bem que ampliando uma área que já fora explorada antes pela bossa-nova mais antiga, não conservou nesse período (dois anos) de crise certas características que reputo essenciais. Uma delas era a visão da cultura não como manifestação isolada, mas como parte de um todo uno, no qual a música popu­lar, a poesia, a literatura, o cinema e o teatro estavam entrosados. Podia-se dizer que havia, através de certas instituições como o ISEB, o cpc, uma tentativa séria – embora pequena ainda, no sentido de fazer uma universidade brasileira (univer­sidade no sentido real da palavra) na qual houvesse um entrosamento tanto no plano ideológico como no prático, com apoio de parte a parte. Essa tentativa se perdeu. Atualmente, os músicos da boa música popular brasileira estão por uma série de razões agindo e pesquisando individualmente.

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