A vida após a morte da canção

Não se tratava então de diagnóstico isolado. Flávio Macedo Soares como que resumiu uma análise em grande medida coletiva e compartilhada. E, de acordo com essa análise, comparada ao projeto pré-1964, a situação de 1966 parecia ser de puro e simples impasse. Nessa conversa de 1966, quem pro­pôs uma saída para o impasse e colocou a discussão em um novo patamar foi Capinam. Referindo-se ao tema geral do debate, que era o de descortinar linhas de ação coletiva dentro da MPB, Capinam falou explicitamente em um programa (de ação) no seguinte contexto:

Desde que se discutem os caminhos para nossa música popular, não vejo possibili­dade de fazer um programa, criar valores e uma saída para ela sem considerar um dado fundamental: o mercado. Para muita gente não descubro nada. A razão maior dessa afirmativa é, entretanto, o comportamento pré-capitalista da esquerda brasi­leira, que resiste à industrialização e vê o mercado como o grande sacrifício de sua arte.

E completou:

Preservar a música dos riscos do mercado é uma posição nega­tiva de acanhamento que terá como efeito o contínuo afas­tamento desta música das áreas onde deveria estar agora, e influindo, trocando recursos, informando, alimentando a nossa juventude com aquilo que ela necessita e em potencial a nossa música possui nas raízes: calor, participação e movimento.

Visto com olhos dos festivais da música popular dos dois anos seguintes, por exemplo, isso soa mesmo como um programa. Como o programa que foi efetivamente levado adiante, de diversas maneiras, por diferentes razões, por quem participava, direta ou indiretamente, dessa conversa. E que se cristalizou em diferentes formas de levar adiante o projeto de uma MPB como movimento. Porque o programa de ação que se seguiu dos debates e das intervenções con­cretas no campo da indústria cultural acabou por se tornar padrão para qualquer intervenção musical que não se con­tente simplesmente em existir segundo as regras estabele­cidas, mas que queira fazer parte de algo como um movi­mento. Foi assim que o padrão reconhecido de intervenção artística se dividiu oficialmente em três táticas de guerri­lha que iriam se prolongar até a década de 1980: dentro da indústria cultural, na sua periferia e à sua margem.

Mas, como era de esperar, quem se pôs dentro, na peri­feria ou à margem a partir da década de 1970 estava diante de algo novo. O próprio Capinam, no Iv Festival Internacio­nal da Canção, de 1969, realizado pela então nascente Rede Globo de Televisão, foi proibido pela produção de levar adiante a performance que tinha planejado com o parceiro Jards Macalé. Na defesa da música “Gotham City”, a dupla pretendia soltar morcegos no momento em que os músicos entrassem no palco, ao mesmo tempo que Macalé gritaria (como na letra da própria música): “Cuidado! Há um mor­cego na porta principal.” Uma paródia à revoada de sabiás do festival do ano anterior, no momento em que era apre­sentada a música vencedora, de Tom Jobim e Chico Buarque. Os tempos já eram outros. Não apenas a escalada da violên­cia ditatorial, mas, ao mesmo tempo, a indústria cultural que se consolidava, o mercado cultural que se integrava. As táticas de guerrilha que se estabeleceram na década de 1960 e que se consolidaram ao longo da década seguinte tinham que se haver com essas duas estruturas simultaneamente.

Não é de espantar, portanto, que as vertentes guerrilhei­ras estivessem conectadas e se alimentassem mutuamente, ainda que seguissem programas distintos. Essa análise per­mite entender a própria identidade artística de muita coisa da época: a identidade de “ser marginal”, por exemplo, cuja marca de nascença talvez esteja ali pelos anos de 1967, 1968. Não só Caetano Veloso tomou de Hélio Oiticica o lema da Tropicália. Na temporada que fez com Gilberto Gil e com os Mutantes na boate Sucata, em 1968 –— suspensa pela polícia –, usou como cenário a bandeira de guerra que Oiticica havia apresentado no ano anterior: “Seja marginal, seja herói”.

Quando se fala em cinema ou em poesia marginal, a refe­rência não é apenas à ditadura, mas a uma indústria cultu­ral que se consolida rapidamente. Só que, ao contrário do cinema ou da literatura, a música tinha já um lastro indus­trial respeitável. O cinema ou a literatura eram marginais na década de 1970 em um sentido que não dizia respeito à música: não tinham sido ainda objeto de integração por parte da própria indústria cultural brasileira.

No caso da música, aqueles personagens do festival de 1967 continuaram seus programas-movimentos dentro da indústria. Foi assim com Caetano, Chico, Gil, Edu Lobo, com os Mutantes, com tantos outros. Mas os que se posta­ram na periferia ou à margem também foram muitos. Tal­vez possam ser representados por alguns casos emblemá­ticos. O primeiro deles sintetizado por um músico que foi, ele sozinho, um movimento: Jards Macalé. Ao contrário do tropicalismo, ou de Chico Buarque, ou do Clube da Esquina, Macalé representou o padrão de intervenção próprio da periferia da indústria cultural.

Macalé não estava fora da indústria. Ao mesmo tempo não conseguia se manter dentro dela. Enquanto os avanços tecnológicos caminhavam para a busca de uma sonoridade cada vez mais “limpa” (a reação punk de meados dos 1970 tinha também esse óbvio alvo técnico), Macalé insistia em fazer um som “sujo”. Não conseguia assinar um contrato com uma gravadora sem romper em seguida.

Caso muito diferente foi o dos que se colocaram à margem da indústria, em alternativa a ela. Em continuidade com o movimento do início dos 1960, os chamados “independentes” não queriam se submeter à lógica das gravadoras nem da indústria cultural de maneira mais ampla. Tinham a ambição de manter um padrão técnico equiva­lente ao da indústria mais avançada do período. Mas consideravam mais grave ceder à lógica da indústria do que estar um degrau abaixo na escala tecnoló­gica. E conseguiram encontrar dessa maneira o seu público.

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