serrote #7, março 2011
E de Esquerda, VLADIMIR SAFATLE
ALFABETO serrote
Um dos chavões mais repetidos desde a queda do muro de Berlim continua sendo: “A divisão esquerda/direita não faz mais sentido”. Mesmo que ainda encontremos posições políticas e leituras dos impasses da vida social contemporânea radicalmente antagônicas, há uma clara estratégia que visa a evitar dar a tais antagonismos seu verdadeiro nome. Ela é feita para fornecer a impressão de que nenhuma ruptura radical está na pauta do campo político, ou, para ser mais claro, de que não há nada mais a esperar da política, a não ser discussões sobre a melhor maneira de administrar o modelo socioeconômico hegemônico nas sociedades ocidentais. No entanto, a função atual da esquerda é, primeiramente, mostrar que tal esvaziamento deliberado do campo político é feito para nos resignarmos ao pior, ou seja, para nos resignarmos a um modelo de vida social que há muito deveria ter sido ultrapassado e que mostra atualmente sinais de profundo esgotamento.
Uma maneira de iniciar a discussão é identificar quais são as posições que podem caracterizar, hoje, o pensamento de esquerda. Importante insistir que a plasticidade da política exige que a determinação dos problemas do presente defina a configuração de nossa posição. Isso significa que o pensamento político deve ter uma dimensão profundamente “estratégica”. Ele se move de acordo com os problemas postos pela vida social. Muitas vezes, várias correntes da esquerda ignoraram tal mobilidade, entrando assim em uma espécie de “petrificação do discurso”, o que acabou por afastá-los da capacidade de pautar a opinião pública.
Talvez a posição atual mais decisiva do pensamento de esquerda seja a defesa radical do igualitarismo. Tal defesa traz orientações muito claras a respeito de questões centrais no campo social e econômico.
Por “igualitarismo” devemos entender duas coisas. Primeiro, que a luta contra a desigualdade social e econômica é a principal luta política. Nossas sociedades capitalistas de mercado são sociedades “paradoxais” por produzirem, ao mesmo tempo, aumento exponencial da riqueza e pauperização de largas camadas da população. A história do século 20 mostrou que, sem forte intervenção de políticas estatais de redistribuição, tais sociedades tendem a entrar em situação de profunda fratura social por desenvolver uma tendência radical de concentração de riquezas. Ou seja, o problema da desigualdade só pode ser realmente minorado pela institucionalização de políticas que encontram no Estado seu agente. De outra forma, elas nunca terão a escala e a universalidade necessárias para funcionar. Por isso, em nome do combate à desigualdade econômica, a esquerda não pode abrir mão do fortalecimento da capacidade de intervenção do Estado.
Arautos do pensamento conservador procuram desqualificar a centralidade da luta contra a desigualdade, afirmando que a diversidade de talentos e de capacidades de engajamento deve ser respeitada. De fato, ninguém sensato poderia ser contrário à meritocracia e à recompensa pelo empreendedorismo. No entanto, tais valores apenas encobrem o pior cinismo quando não vêm associados à luta contra a desigualdade de oportunidades e condições. A diversidade de talentos é, muitas vezes, a capa que se usa para acobertar que a diversidade de riquezas é um problema que quebra a possibilidade de desenvolvimento individual por mérito.
Por outro lado, “igualitarismo” refere-se também a uma ideia sobre a vida social. Ela significa que a esquerda deve ser “indiferente às diferenças”. De certa forma, a políti- ca atual da esquerda só pode ser uma política da indiferença.
Durante os anos 1970 e 1980, setores importantes da esquerda compreenderam que era a hora de deslocar o eixo do político para uma dinâmica de afirmação das diferenças e das minorias. Esta era uma forma estratégica de universalizar direitos para grupos socialmente marginalizados (negros, homossexuais, imigrantes etc.). Mas note-se que a questão central aqui era a constituição de uma universalidade verdadeiramente existente na vida social, não o reconhecimento de que a sociedade é composta de grupos distintos fortemente organizados do ponto de vista identitário. A política descentra os sujeitos de sua identidade fixa, abrindo-os para um campo produtivo de indeterminação. Isso significa que nossas sociedades devem ser completamente indiferentes às diferenças, sejam elas religiosas, sexuais, de gênero, raça ou nacionalidade.
Pois o que nos faz sujeitos políticos está além dessas diferenças.
Hoje é o momento de lembrar que a grande invenção da esquerda foi o universalismo e o internacionalismo. Não temos nada que fazer com nacionalismos e delírios identitários que tentam fazer crer, por exemplo, que os “valores ocidentais” estão correndo risco toda vez que uma jovem muçulmana vai à escola com um véu na cabeça. Melhor seria perguntar por que tal jovem sente os ditos “valores ocidentais” como uma farsa vazia, como palavras sem efetividade, que servem apenas para mascarar a marginalização cada vez mais brutal de imigrantes pobres, sem direito a voto e sem representação política. Nessas horas, é bom a esquerda lembrar que o Estado moderno deve começar por ser absolutamente indiferente às diferenças, no sentido de aceitá-las todas, única maneira de esvaziar a afirmação da diferença de qualquer conteúdo político.
Outro ponto fundamental do pensamento de esquerda é a consciência da dissociação estrutural entre os campos do jurídico e do político. A esquerda desconfia daqueles que andam de cassetete na mão exigindo respeito ao “Estado democrático de direito”.
Pois ela sabe que a única maneira de falar da democracia é por meio de uma ideia importante de Jacques Derrida: só se fala em democracia por vir.
Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação contra o Estado de direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o direito em sociedades democráticas for uma construção heteróclita, onde leis de vários matizes convivem, formando um conjunto profundamente instável e inseguro? Por exemplo, nossa Constituição de 1988 não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela Constituição totalitária de 1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos. Nesse sentido, não seriam certas “violações” do Estado de direito condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir? Foi pensando em situações dessa natureza que Derrida afirmava ser o direito objeto possível de uma desconstrução que visa a expor as superestruturas que “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os interesses econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”. Quem pode dizer em sã consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e suspender o direito? Quem pode dizer, em sã consciência, que o embate social de forças na determinação do direito termina necessariamente da maneira mais justa?
Por essas razões, a democracia admite o caráter “desconstrutível” do direito, e ela o admite pelo reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da “violação política”. Pacifistas que se postam diante de bases militares a fim de impedir que armamentos sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação); ecologistas que seguem navios cheios de lixo radioativo a fim de impedir que seja despejado no mar; trabalhadores que fazem piquetes em frente a fábricas para criar situações que lhes permitam negociar com mais força exigências de melhoria das condições de trabalho; cidadãos que protegem imigrantes ilegais; ocupações de terras improdutivas e prédios públicos, feitas em nome de novas formas de atuação estatal – em todos esses casos, o Estado de direito é quebrado em nome de um embate em torno da justiça. No entanto, é graças a ações como essas que direitos são ampliados, que a noção de liberdade ganha novos matizes. Sem elas, certamente nossa situação de exclusão social seria significativamente pior. Nesses momentos, encontramos o ponto de excesso da democracia em relação ao direito. Uma sociedade que tem medo desses momentos, que não é mais capaz de compreendê-los, é uma sociedade que procura reduzir a política a um mero acordo referente às leis que atualmente temos e aos modos de que atualmente dispomos para mudá-las (como se a forma atual da estrutura política fosse a melhor possível –levando-se em conta o que é o sistema político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da colocação). No fundo, esta é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituir a política pela polícia. Pois a violação política nada tem a ver com a tentativa de destruição física ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal contra setores descontentes da população ou em golpes de Estado. Antes, ela é a força da urgência de exigências de justiça.
Por isso, a esquerda sabe que a verdadeira democracia não se mede por instituições fortes, mas por um poder instituinte soberano e efetivo. Nesse sentido, o verdadeiro desafio democrático consiste em institucionalizar tal poder instituinte, criando uma dinâmica plebiscitária de participação popular. Tal dinâmica é desacreditada pelo pensamento
conservador, pois ele procura vender a inacreditável ideia de que o aumento da participação popular seria um risco à democracia. Como se as formas atuais de representação fossem tudo o que podemos esperar da vida democrática. Contra essa política que tenta nos resignar às imperfeições da nossa democracia parlamentar, devemos dizer que a criatividade política em direção à realização da democracia apenas começou. Há muito ainda por vir.
VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, professor visitante das Universidades de Paris vii, Paris viii, Toulouse e Louvain, autor de Fetichismo: colonizar o outro (Civilização Brasileira, 2010), Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008), Lacan (Publifolha, 2007) e A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006; versão francesa, Georg Olms, 2010).
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