Memórias Póstumas Jr.

serrote #6, novembro 2010

Memórias Póstumas Jr.

RONALDO BRITO

 

Fala pouco, um miau aqui, uma palavra ali, resmunga bas­tante. Mora comigo, não, mora aqui em casa. Gordo ao natu­ral, ninguém o chamaria bonachão, tampouco ranzinza. É um gato sóbrio, vira-lata, cioso entretanto de suas origens imperiais. Há muito curei-me da mania fútil de lhe sondar o espírito. Desconfio dos calados, em geral não têm mesmo nada a dizer. Sob pretexto do sábio silêncio, o exame ponde­rado, cachimbo ao canto da boca, pequenos movimentos de cabeça, concordando, duvidando, talvez, talvez, quem sabe. Abanando o rabo ou a cabeça em sinal de reflexão. Desconfio dos calados, repito. Não é o caso do gato. Quando em noites de chuva dividimos o vinho, fala um bocado, sempre do pas­sado, sem menção ao presente ou ao futuro. Com o álcool, mistura três ou quatro, às vezes cinco vidas. Quando chega nesta conta, sei que deixou-se levar pelo entusiasmo. O tom é suspeito. No auge da conversa, invariavelmente, sai sem um boa-noite sequer, recolhe-se a seus aposentos, para gastar a expressão consagrada. Ainda assim, gosto, quebra um pouco a rotina: todo o tempo eu a ler num canto, ele noutro. Eu a ouvir música séria; ele, sem eu saber se ouve ou não, se gosta ou desgosta, e até se domina o conceito de música. E, no entanto, mais de uma vez o surpreendi assoviando, após noi­tadas bem-sucedidas. Era uma das minhas dúvidas perenes. Quando ouço um jazz discreto, civilizado, como convém à idade, abandona a sala. Não digo que corra, esbaforido, ape­nas abandona a sala. Entre nós há um acordo tácito, comum a dois senhores: nada de perguntas. A cada qual suas obrigações, seus deveres kantianos, respeito mútuo. Neste ponto, é preciso reconhe­cer, a conduta de Memórias é impecável: nunca me fez uma única pergunta. O que, por outro lado, limita minha curiosidade. A música é só uma delas. Não sou nenhum abelhudo, pelo contrário. Nem idiota o bastante para supor que possa me desvendar o Ser do felino. Um gato vira-lata de Petrópolis, com pouca instrução. É verdade que o contratei em sítio nobre do Império: a cos­mopolita avenida Ipiranga. É verdade também que supostamente viria dos jardins do palácio imperial, uma ilustre família de gatos vadios que remonta a quase dois séculos. Estava desempregado, emagrecido, o pelo fosco. Vivendo de biscates, não perdia contudo a dignidade. Posso vê-lo ainda, muito senhor de si, meditando com fome no pátio do edifício. O porteiro indicou-o para o cargo, com uma dúbia carta de recomendação de uma velha baronesa, dona de um solar meio decrépito lá no início da rua. Algum dinheiro terá passado na transação, por debaixo do pano. Quantia insignificante, fingi-me de bobo, o que não é difícil. Um tanto, bastante receoso, quase trêmulo na verdade, entreguei-o a Henriqueta, a todo-poderosa criatura a quem pago regiamente para lhe ser o súdito. Entreguei-o, se for este o verbo, e debandei, pretextando a aposentadoria atarefada. Não perguntem o que então se passou entre as his­tóricas paredes da copa e da cozinha. Daí em diante e para todo o sempre. Jamais decifrei o conteúdo de verdade do relacionamento. Na aparência, observo um estrito decoro profissional, ares condescendentes de parte a parte. Está claro que, soberano, não quereria eu imiscuir-me em assuntos relativos a um domínio dentro do qual sou, a rigor, um estranho. Apesar da canja manda­tória das noites de domingo no sossego da copa. Com a ponta indisfarçável de angústia que é o sal da vida. De propósito, ele fica a me espiar, preocupado. Além disso, sou estrangeiro, carioca desgarrado. Entendo o sentimento de superioridade, embora pueril, que lhes inflama (o verbo é exagerado) o espí­rito. Às vezes, ouço ruídos abafados, conversas surdas, e o mal-estar é quase palpável, dias e dias a fio sem se dirigirem a palavra. Mal-estar módico, provin­cial, porém. Os motivos me são alheios, inescrutáveis, nem me diriam respeito. Seria grave risco intervir, de leve que fosse, quem sabe perder um ou outro, talvez os dois. Contento-me com a posição privilegiada do observador impar­cial. Ainda mais aprazível por desmentir-se a si própria e a sua presunção posi­tivista, tão emblematicamente petropolitana, uma das taras notórias entre as inúmeras da família real – não faço ideia mínima, não guardo noção elemen­tar acerca das duas criaturas. Confesso, cheguei a temer um conluio nesse sen­tido –— uma série perversa de pistas falsas, tortuosas, contraditórias, que arrui­navam sucessivamente minhas engenhosas conjecturas e conclusões prematuras. Foi um período difícil, miúdas decepções, manhãs amargas, noi­tes assaltadas por suspeitas e dúvidas. Devo reconhecer que a pequena gra­vura de Goeldi não ajudava em nada. Justo ela, que me anima as noites com seu aspecto sinistro, doméstico e acolhedor. Nem o comissário Maigret, o obeso Nero Wolfe ou o brandy proverbial, bálsamos de comprovada eficácia universal, nem a fúria sublime de Beethoven, não haveria consolo para um orgulhoso intelecto derrotado. Por conta de um gato e uma velha empregada, por Deus! Não saí incólume da experiência, receio a todo instante uma recaída. Razão a mais, agarrar-me aos rigores da aposentadoria, ao trabalho insano de não fazer nada com método e afinco. E cumprir minha parte, como gostam de se reconfortar uns aos outros os bons cidadãos. Em momentos indulgentes, que os tenho como todo mundo, reafirmo a mim mesmo a audácia da tarefa que a ninguém – a ninguém, sussurro exaltado – resultaria simples e tran­quila: conciliar um alto budismo zen e a rígida doutrina cartesiana. O deci­dido espírito positivo e o vício da contemplação inveterada. Fosse eu um frí­volo, um volúvel de saídas fáceis, a solução por si mesma se impunha: iria para a Bahia. Escolho o caminho árduo – Petrópolis e seu glorioso passado iníquo, seu presente remoto, seu futuro especulativo, de teor imobiliário ou metafí­sico, pouco importa. E, em vez do cãozinho de praxe, carente e submisso, rui­doso, um gato altivo e cínico. Tampouco reclamo os méritos duvidosos do ostracismo, mero sucesso mundano invertido. De raro em raro, retorno à poe­sia juvenil. Decerto me auxilia o vinho, inspiro-me, leio em voz alta Pessoa, Cavafys e Keats até faltar-me o fôlego. Nessas horas, admito, Memórias Póstu­mas corre iminente risco de vida, ainda que não o saiba, do que sempre des­confio, grande simulador que é dos caminhos e descaminhos do mundo. Numa dessas madrugadas, impávido, com um sorrisinho sonso, assistindo ao que chama pelas minhas costas meus desvarios, acreditei ouvir algo assim, coisa de maricas. Um pontapé certeiro liquidou, momentaneamente, o assunto. Acordei disposto a tudo, um reles gato preto e branco, por que não despedi-lo, ele e seus sacrossantos direitos trabalhistas? A quem, sobre a rica ração, forneço sardinhas. Portuguesas. E escuto, tolerante, os três ou quatro infames ditos repetitivos, em francês, as únicas palavras que decorou da lín­gua, ouvidas sabe-se lá de qual ancestral, morador, este sim, do lado de dentro do patético palácio afrancesado. Sem esquecer o estereótipo irritante, o típico dar de ombros gaélico, junto ao insuportável buff, com o qual pretende resu­mir sua atitude filosófica perante a vida traiçoeira, atroz, irremediável. A res­mungar Montaigne, Montaigne, a quem não leu nunca. Francamente. Apesar dos pesares, antes isso a latidos histéricos, pondero, pondero e repito. Tudo menos um cachorro, a novela, a estátua do Cristo. Que não me ouça a devota Henriqueta, assídua da catedral, mormente a missa redentora do santo domingo. Já Memórias Póstumas, Memo para as muito íntimas, é um católico hipócrita e sem-vergonha, outro qualificativo não merece o meliante –— fre­quenta somente a catedral noturna, seus jardins e suas escadarias, para atos profanos e conversas escabrosas. A sós com Henriqueta, na cozinha, faz-se contrito, de olho nos acepipes. Ela própria, piamente, tampouco lhe acredito, eu que de fato abomino, abominei ou abominava a religião e tudo o que ia consigo. Com o tempo, por ironia, confundem-se os particí­pios verbais, os pretéritos mostram-se incertos, indecisos. As convicções, os credos, as doutrinas e máximas de vida, em resumo, tudo o que um dia pautou um destino nítido e indis­cutível. Uma existência saudável, doentia, voltada às mórbi­das alegrias da arte e da poesia, da jurisprudência e da buro­cracia. Renegar tudo isso e ir vegetar na Bahia? Sob o sol abusado, irresponsável, frente ao mar exibicionista, a areia promíscua e sua dissipação irrefletida. Antes aqui, em meio aos restos de uma civilização malograda, junto a dois de seus remanescentes arquetípicos. Gosto de declarar-me abstêmio sexual: é mentira. Recebo a visita ocasional de duas ou três ávidas, quase escapou-me, insaciáveis senhoras caridosas. Todas as quatro mimam o gato de maneira indecente, escan­dalosa. De início, o tolo aqui ficava a contragosto cheio de si. Um toque inesperado, ligeiramente excêntrico, a destoar de um personagem insípido, parecido demais consigo mesmo. Um chato que talvez não o seja de todo, pelo menos não leva a passear duas vezes ao dia um ridículo totó. E somava à casa um atrativo. Elas o torturam com carinhos que ele odeia e troca, sem o menor escrúpulo, por latinhas de salmão e, o que deve lhes sugerir a suprema finesse, chocolates da Katz, a famosa deli da avenida. Quando se vão, Memórias mete as garras na imagem piegas do gatinho branco da embalagem até destroçá-la, a rir baixinho, satisfeito. Ecce homo. Uma delas, casada desde o dilúvio, infelizmente, mora em frente. O bichano maquiavélico quase alcança iludir-me: costuma acomodar-se confortável, languidamente, em seu colo macio. E ronrona, quero dizer, finge ronronar. Numa dessas frias tar­des límpidas, lindas, que a serra de Petrópolis como em todo o cosmo nenhuma outra melhor ilustra, desvendei o pseudoe­nigma: lá o surpreendo eu – porque a beleza do céu conduzira longe meus passos de costume estritos, circunspectos – em furtivo encontro com a gata branca e fofa, de extração asiá­tica, adivinhem de quem. Isso aí, da recatada e fogosa vizinha. E é gata, também ela, casada de várias ninhadas. Por favor: detesto o moralismo, pouco se me dá que a coroa e a gata divirtam-se à grande. Até onde eu saiba, os dois maridos dedicam a grave aventura da existência à vulgar metafísica do futebol: consomem o misterioso curso do tempo a dis­cuti-la. E a distorcem, irreconhecível, por via do culto faná­tico à cerveja. Mas a desfaçatez de Memórias Póstumas Jr., o frio calculismo, a manipulação em suma, fere a nossa ética kantiana comparti­lhada, confessa, explícita. Não posso chamá-lo às falas; seria, por meu turno, faltar ao imperativo, ao respeito, e assim incorrer em erro imperdoável. Dito isto, claro que me esbaldo, o enredo sobretudo me parece engenhoso, uma aula de economia política, a envolver-se todo em círculos e elipses. Impossível não evocar a corte e as escaramuças de sua libido desinibida. A meu ver, há que incluir também na gênese de sua conduta irregular a literatura. Desde que o adotei, de modo algum, desde que por aqui resolveu se estabelecer, o acesso à biblioteca lhe foi naturalmente facultado, sem ônus ou contrapartida. Pois muito bem, transcorridos quase dois pares de anos, só retirou de minhas ordenadas estantes dois escassos volumes – a clássica tradução de um autor modernista, cujo nome ora me elide, da Madame Bovary, de Flaubert, e Os Maias, de Eça de Queiroz, na célebre Edição do Centenário, de Lello & Irmão Editores, Porto, 1946, que respeita a grafia original. A princípio, neófito, estra­nhei a demora da operação por parte de um leitor voraz, capaz de me acom­panhar em silêncio quatro, cinco horas seguidas debruçado sobre um livro. Não me ocorria, obtuso no que concerne ao cotidiano prático, as extremas limitações de intelecto do Gato e até, obviamente, suas minúsculas dimensões físicas. Proporcionalmente, quanto tempo não haverá de tomar-lhe percorrer uma página inteira! E páginas de prosa densa, com sofisticados zelos literários. Dobra minha secreta admiração, pessoa tão singular, debuxada em traços tão díspares. Esses dois romances incomparáveis oferecem talvez a chave de lei­tura de suas tramas picarescas, quem sabe forneçam ainda preciosos indícios com vistas a uma análise profunda da personalidade do gato. Figuro entre os que acham que somos, não o que comemos, sórdida concepção fisiologista, e sim o que lemos, o que gastamos a vida a ler. E, na verdade, Memórias leu ape­nas e tão somente uma ou duas páginas de cada um dos romances ao longo de nossa convivência. Pude constatá-lo pelas marcas inconfundíveis. Entretanto, nossas conversas o provam de maneira cabal, ele depreende daí todo o enredo e toda a moral do romance. Adivinha, infalível, o que irá acontecer e especula acerca dos possíveis, eventuais desenlaces. E entra, confiante, a lhes discutir os méritos. Quantas noites insones não o ouvi murmurar, não, não, o escrupuloso, o meticuloso Gustave (Flaubert) não cometeria o despautério, soaria inverossímil… Ou ainda, a águia, o esperto Eça, jamais, jamais… O seu forte, porém, é a pene­tração psicológica, a rápida intuição felina perante a sutileza dos caracteres. Não espanta caiam sempre de pé. Nada lhe parece sinuoso ou obscuro, toda e qualquer conduta, neurótica e aberrante, sublime ou pedestre, encontra explicação perfeitamente lógica e plausível. A mim me ocorre que, ignorando a gramática, se não a própria noção de língua, tenha ele acesso direto ao âmago das almas, intua num átimo o curso fatal dos destinos. Nem por um momento, arvoro-me a deitar cátedra, nadamos aqui em águas turvas. Trata-se de obser­vação despretensiosa, passageira, diante de um fenômeno que ultrapassa minha área de competência crítica. Resisto, e o tenho feito com êxito até aqui, a esmiuçar meus compêndios psiquiátricos e jurídicos. Perdi uma noite ou outra, bem, uma semana, não vou negar, na empreitada vã e humilhante. Logo voltei a mim, como diz, sem saber bem o que diz, o vulgo. Não me custa admi­tir que o tenho em alta estima como discípulo de Hermes, a folclórica figura do hermeneuta. Se por acaso, pelos caprichos da sorte, sem que eu movesse palha, repartimos a mesma sala de leitura, por que não recorrer a seus extraordiná­rios dons? Por que não, coloquialmente, pedir uma dica? Ainda que isso impli­que concessões extravagantes, barganhas, pequenas guloseimas e falsas pro­messas. Para minha felicidade, cedo percebi que, paradoxalmente, Memórias tem uma péssima memória. É o diabo negociar com um felino astuto, paciente, cruel, mestre dos disfarces e dos despistes. Faço o papel do camundongo. Vale a pena, eis a verdade cabeluda. Por exemplo: Ulisses. A soberana autoridade com que o gato descarta interpretações ilustres, centenárias algumas, em favor do sólido bom senso – sim, sim, não passa de um cabotino, o parque está cheio de gatos assim. Melhores, pois ainda estão vivos. No entanto, guarda sincera admiração por sua esposa, Desdêmona (sic), embora evidentemente não lhe guarde o nome. O seu herói literário, nem podia ser diferente, é Aires, o Conselheiro, a quem se acha ligado por estreitos laços de família. Qualquer nota, consignada nos papiros de sua árvore genealógica, que toma por sagrada, acerca do célebre gato de estimação do imortal Conselheiro. Fui paciente, polido, em atenção à sua mentalidade restrita de gato, nem pisquei à menção desse bichano intruso, inexistente, que não casa com a figura esbelta de Aires. Ou casaria, e Machado, por uma só vez, bobeou? Em todo caso, não releio mais o Memorial, nas quatro ocasiões regulamentares, em cada uma das esta­ções, sem lhe acrescentar um gato, a quem nomeei, por picuinha, Ulisses. Memórias Póstumas encrespou-se, protestou indignado, qualquer passante – de Petrópolis, bem entendido – sabe que o gato se chamava Fidélio. Engana-se, lembrei, Fidélia é a viúva tesuda: retrucou que a viúva é que fora batizada em homenagem ao gato. Parei por aí, com medo de enlouquecer. A essa altura, estará patente ao leitor que Memórias considera indistintas realidade e ficção. Ficasse assim, tudo terminaria (relativamente) bem. Mas, não. Hierarquiza: as cenas da memória e da imaginação são infinitamente superiores, detêm um coeficiente de realidade muito mais expressivo. O quiproquó é aparente, nomi­nal. O que denominamos realidade, erradamente a seu ver, é um corre-corre trivial e mesquinho. Muito, muito pouco dessa faina cotidiana virá a alcançar o status da Memória e da Tradição, na acepção insigne, petropolitana, do termo. Republicano e abolicionista, irrita-me sobremodo esse conservadorismo monarquista. Um sujeito que sustento, com quem divido o teto. Por outro lado, conheço meu lugar. Sou um meteco, sob risco constante da acusação mortal de arrivismo. Devo refrear meus impulsos, por exemplo, quando perambulamos pela magnífica avenida Koeller e Memórias Póstumas Jr. me aponta, reverente, o solar do Conselheiro. Ora, é público e notório que Aires nunca foi morador nosso; esporadicamente, subia a serra e hospedava-se, como rezava o figurino, no Bragança. E somente por breves interlúdios, mesmo no verão escaldante da cidade litorânea à qual evito referir-me. Durante um bom tempo, atribuí a impertinência ao sestro da implicância e da discórdia que o notabilizam. Quem sabe é da espécie, não do indivíduo, eu refletia. Hoje, convenci-me do contrário: na esfera do ideal, a única que resiste à escória do tempo, o Con­selheiro Aires deveria com efeito habitar a distinta mansão. Um outro semideus, Jorge Luis Borges, isolado numa hostil comarca vizinha, me dispensaria razão integral. E até aplau­diria incongruências menores, ligeiras discrepâncias, impres­sões ilusórias de que me contradigo, de súbito mudo de opi­nião. Em absoluto. Em absoluto, insisto. Há que distinguir, sim, as duas perspectivas; porém, senhores, fatalmente elas se entrecruzam. Nós mesmos, em nossas acaloradas discus­sões, acontece invertermos as posições originais, e tudo acaba em galhofa e bulha. Austera, sisuda, Henriqueta Dias desa­prova essa dialética divertida. Inútil tentar dissuadi-la. O ponto de vista religioso, sectário, foi, é e sempre será incom­patível com o espírito aberto da filosofia. Já na época de Sócra­tes, que dirá em pleno Iluminismo! Mal profiro o vocábulo, tremo pelas consequências. É tabu. Não sofre Póstumas Jr. ouvi-lo sem miados irados que duram de dois a quatro minu­tos. Em se tratando de mente agilíssima, ferina, uma pequena eternidade. O gato fica puto, perde as estribeiras, não escuta a razão. Já lhe expliquei, vezes sem fim, em vão, a incoerência. Pois se é um ferrenho monarquista constitucional, um liberal à maneira d’Ele (o imperador), inexiste o cisma. Aprendo a controlar-me e procuro, isso sim, em doses homeopáticas, incutir-lhe a fé na República, que, a torto e à direita, vilipen­dia. Logo ele, um libertino, na acepção legítima do termo. Não obstante o temperamento sereno, a linguagem dócil e amena, que os meus bons leitores agradecem e apreciam, no fundo tenho a alma do contra. Tiro proveito das fraquezas inerentes a suas faculdades cognitivas. Sinto um prazer per­verso em vê-lo acuado, vazio de réplicas e tréplicas, presa de raiva impotente. De imediato, perde a tão decantada pose felina, retira-se para a cozinha feito um cãozinho. Desmorali­zado, passa a semana inteira na farra, a lamber as feridas. Foi-se o tempo em que, com sucesso, se fazia de vítima, esnobava a ração, a enroscar-se nas saias engomadas do clássico uniforme de Henri­queta, no intuito flagrante de me deixar culpado. Basta, basta, bradei numa hora morna do crepúsculo estival. O calor, o cachorro, a cidade da estátua cre­tina do Cristo, eis a minha santíssima trindade negativa. O gato, insensível, nem está aí – subsume o universo ao estômago e ao cio. Em minha opinião opinião de herege, Henriqueta sublinha –, Memórias desconhece o amor. Nunca o vi suspirar, nunca. Em relação às mulheres, é o prototípico porco chauvinista. Sofre, se é que sofre, por puro egoísmo. É particularmente ciu­mento da gata fofa, adúltera, que já conheceu melhores dias. Tampouco o sinto preocupado em constituir família. É o gato estroina, Memórias Póstu­mas Jr., quem está na berlinda, alto lá com insinuações e sofismas. Sou um tipo específico, de contornos mui nítidos: celibatário inato, vocacional, predesti­nado aos estudos. E a eles devotei-me por completo em gabinetes e auditórios, bares e cabarés, salas de aula e alcovas de luxo. Ao longo de quarenta, eu disse, quarenta anos. Quatro decênios, é mole? Se acaso desfrutei em excesso os pra­zeres da carne foi por conta da atração involuntária que exercia sobre a alma feminina. Atração da qual fui, sem dúvida alguma, a principal vítima. A com­paração por si só é absurda, insultuosa e absurda: jamais me esgueirei entre ruelas e becos escusos à cata de amores fortuitos. Nem cultivei a lábia insi­diosa, que não hesita recorrer a mentiras pérfidas, marca registrada de nosso amigo felino. A comparação é maliciosa, absurda, repito, encerremos o assunto. Necessário fosse, os depoimentos sigilosos de Dalva e Estela, Cristina e Maria do Céu o confirmariam amplamente. Ademais, mencionei-o acima, aspiro à graça da castidade e intento alcançá-la até o próximo verão, pelo menos, durante toda a maldita estação. Que fique o registro inequívoco, reco­nheço-lhe os atributos marcantes – trata-se de gato asseado, nascido para o ofício, extremamente inteligente, boa companhia, embora não jogue bridge. Imbatível em sessões do plenário que versam sobre a ética. Espanta-me a extensão de seus conhecimentos nesse campo, a argúcia, a presciência intui­tiva com que se move entre seus meandros notoriamente abstrusos. O supers­ticioso senso comum talvez levante a suspeita de algum pacto diabólico. Ele é preto e branco, não é branco e preto. Perder tempo com esse gênero de cren­dice! Fato é que o homem é um perito, mestre consumado dos casuísmos jurí­dicos. E acumulou o embasamento teórico imprescindível: Platão, Aristóteles, os estoicos, Sêneca em especial. Montaigne e, como não podia deixar de ser, o seu querido La Rochefoucauld, com quem inevitavelmente se identifica, pela vida em corte e a moral plástica, flexível, que a beneficia. É humano, orgulha-se de seu saber ímpar; como sempre, entretanto, exorbita – torna-se afetado, enrola-se com o francês e o latim, enfim, beira o ridículo. O que empana um tantinho seu brilho inegável. É graciosa companhia também fora de casa, em nossas raras incursões ao que adora intitular o demi-monde. Circula aí com aisance, personagem espirituoso e ilustre. Deplora, com toda a razão, o aspecto gasto, degradado, dos bordellos atuais se comparados aos de suas três últimas vidas. Aquilo, sim, era a glória: espanholas, polacas, reinando entre elas, as francesas e seu requintado savoir-faire. Basta de saudosismo, interrompo, vamos ao que interessa. Olha-me compassivo, abana o rabo e sorri, paterna­lista. Nesses domínios, é ele o sumo pontífice. Acordo alegre, mas, no decorrer da jornada, a proverbial ressaca e a ancestral culpa bíblica se apoderam de mim. Ao crepúsculo, enfio-me na poltrona da minha melancolia, parafrase­ando o jurista emérito, sumidade na matéria – será necessário declinar-lhe o nome? – Fernando Pessoa. Vacila-me a mão ao digitar o patronímico supimpa. Perdoe-me a simpática choldra ignóbil, ele nos pertence de direito, por licença poética, autêntico cidadão do espírito de Petrópolis –— posso vislumbrá-lo a percorrer, vago e rápido, a emblemática capa esvoaçante, nossas soturnas vie­las e majestosas avenidas, o ar enevoado de histórica melancolia, a descer depressa uma pinga e mais outra na Casa D’Ângelo. Em seguida, célere, partir à consecução de seu destino: escrever, escrever e nos redimir a todos por des-cumprirmos a tarefa impossível de cumprir – viver felizes a vida. Caramba, só de imaginar me inspiro. E recordo, condoído, o inexplicável descaso de Memórias Póstumas pela poesia. Que lhe tem custado, aliás, provações físicas. Nem por isso se emenda, me poupa o riso escarninho. Como de hábito, aleato­riamente, se contradiz e declama versos sem que eu lhes enxergue o nexo, a pertinência mínima com a pauta em questão. De costume, Memo não é um errático, muito alerta às circunstâncias, safa-se ao menor sinal de perigo. Um estalar de dedos, some de vista. Em momentos íntimos, confidencio a Estela o enigma. É pessoa boa, um tanto atirada ao mundo para os meus códigos rigo­ristas. É só um gato, querido, meiga, ela murmura. A quem pretende enganar desfiando tais platitudes? Está claro que é só um gato, eis o problema todo e infinito! Depois, antes de partir no horário preestabelecido, agarra-se a ele, sôfrega, quase lasciva. O bruto não se furta ao contato, pouco lhe importa o juízo pífio da criatura, contanto venham as sardinhas, fartas e saborosas. Fui impiedoso, chamei-o epicurista; deu de ombros e sentenciou: epicurismo e estoicismo são credos afins, rezo pelos dois. Desconcertou-me, quedei mudo. Cristina é mais prudente – já enterrou dois maridos e meio –, examina a fundo o dilema, em suas múltiplas interfaces. Adota o infame dialeto cibernético. De quando em quando, acompanha-me às soirées no respeitável Teatro D. Pedro, desconfio, à falta de qualquer outro programa mais excitante. Vocábulo real­mente detestável. Amo de paixão Memo – palavras dela, por favor –, embora seja um grande dissimulado. Um gato que cochila com um olho aberto! Estra­nha também a atenção suspicaz, especulativa, que ele concede à tela do fami­gerado laptop que arrasta consigo noite e dia, chuva e sol. Escusa de acariciá-lo ao colo depois de certo episódio: ele toma liberdades, cicia. Chega a comovê-la, porém, o seu amor inconteste pela literatura, tocante em um felino. Sim­plesmente não sei o que pense a de Cristina. Híbrido de socióloga e viúva, entorna cerveja em botequins de quinta com o que cogno­mina a rapeize (substantivo pagão, tribal, cujo significado exato ignoro); ato contínuo, faz-se muito circunspecta e vem escutar Glenn Gould comigo. Termina a noite a jogar dominó desatenta com Memo, incansável nesse gênero de entreteni­mento. Por fim, atira ao alto as pedras e chora baixinho. Aten­cioso, solícito, ele permanece a seus pés. Quanto a mim, ador­meço à hora estipulada, não falho com minha rotina. As outras três desmioladas, misturo talvez os números, limi­tam-se a entrar e sair, trazendo os indefectíveis mimos a Memo. Peço perdão ao leitor pelo trocadilho. A tresloucada Dalva, creio, cometeu a gafe terrível, o desplante, presenteá-lo com um novelo de lã vermelha, você me ouviu, um novelo de lã vermelha. Por um longo minuto, gelei, temi o pior. Dois séculos de subordinação à etiqueta, à rotina inquebrantável da chancelaria, todavia prevaleceram. Memórias curvou-se, agradeceu e despediu-se, deixando atrás de si o mimo ofen­sivo. O meu senso de tato natural, habilidade desenvolvida em salões e prostíbulos, logrou contornar a situação delicada, o anticlímax, e tudo passou quase despercebido. Tomei pro­vidências, que o incidente diplomático jamais se repetisse. Encareci junto a minhas castas, libidinosas amigas: Memo é sui generis, há que relevar-lhe o esnobismo, afinal é um dos últimos representantes da estirpe do intelectual libertino do século 18. Porra, basta de lembrancinhas! Salmão, chocolate e sardinha, ok? De resto, entretenho planos e sonhos, como qualquer cidadão, defendo meus interesses, oníricos inclu­sive. E as coisas nem sempre se desenrolam como previsto. Quando firmamos o contrato, no cartório tradicional da ave­nida xv, conscientemente, não me lembra que acalentasse expectativas ou ambições explícitas. Em verdade, reputava a manobra tíbia, diversionista, flagelava-me até; ao fim e ao cabo, a medida assinava um atestado de óbito, desfechava o golpe de misericórdia no projeto de toda uma vida: habitar em campo amplo, suserano, na companhia fabulosa do Cavalo. Em comparação, francamente, o que haveria de com­pensar um gato? Já a palavra rala, inócua, entre as primeiras que uma criança (sic) balbucia, duas sílabas, duas vogais… A distância era incomensurável, do Médoc ao Miolo, do tricolor saudoso ao rubro-negro crasso e conspícuo. Cobria-me, então, um manto sombrio. Em público, trazia a figura irre­prochável, como sempre, distinta e digna; o traje correto, as maneiras reticentes, modicamente receptivas. Em corte, reinam as aparên­cias. Encarei o desafio, como andam a falar hoje em dia. Diminuído, acossado por vozes, pensamentos molestos, humilhado em suma, saía intrépido à rua. Vejo-me a rondar a Casa D’Ângelo ao crepúsculo, à hora do footing, a fazer-me discretamente visível – a écharpe ao vento, o paletó de veludo castanho, asmá­tico senhor elegante, um tanto aloof. Olhares perspicazes saberiam descobrir a aura da clássica boemia sob a correção convencional do jurista. Entrava em cena, nem moroso nem afoito, sorvia o meu chá, roía as torradas inigualáveis, por isso mesmo chamadas Petrópolis; um demorado cognac concluía a visita protocolar. Esmerava-me em atingir o grau algébrico, infinitesimal, de ar des­preocupado. Tarefa hercúlea: inquieto, aflito, fingir-me à vontade, descontra­ído, mas suficientemente compenetrado. Desautorizo amizades pretéritas. Louvo aqui os três ou quatro fidalgos, seletos e diletos, que combatem a meu lado. Testemunhas brandas, avoadas, solidárias, do que denomino, com rasa simplicidade, “a crise”. Nem a idade semiprovecta consentiria dar uma de gênio incompreendido, essa não. Bastos, do clã Bastos Ferreira, recolheu-se a Correias, para todo o sempre, quero crer. Nobre empobrecido, isso em defini­tivo. Homem de espírito, não lhe frequento a casa por conta da esposa, megera irascível. Semibêbada, desperdiça os dias a evocar os tempos áureos, a balbu­ciar… Cannes, Cannes e Nice. Promotor implacável, depois teria sido juiz mode­radamente venal. Não desfruta o supremo privilégio natalício, mas a família de escol, desde os primórdios, foi veranista opulenta e assídua. A acreditar-lhe, criança brincava nos jardins, tuteava os pequenos príncipes. Foi, talvez o seja ainda, meu conselheiro-mor. A regra de ouro, Brito querido, é prudência, pru­dência. As camadas são finas, sutilíssimas, bem como os desvios; os atalhos, escorregadios; portas abertas, tentadores abismos. A precipitação será fatal, isso é seguro, em um principado onde tudo é história e, portanto, intriga. Pedra de calçamento talvez inexista que não guarde memória das pegadas de um príncipe, um conde, no mínimo. Claro, claro, relativizo. Bastos sublima, idealiza, acorrentado a um mundo volvido, que lhe foi pródigo em muitos aspectos. Até o funesto casamento com uma torpe nouveau-riche, arrivista inconsequente da Copacabana dos anos 1950. Espoliou em demasia suas faculdades volitivas. Tem lá seus dilemas com o líquido. É embaraçoso assisti­lo beliscar garçonetes, cantar as meninotas do supermercado e outras fêmeas do mesmo quilate. Mais ou menos sóbrio, em momentos de gala é dono de charme irresistível; com enorme aplomb, capaz de dominar, conservar sob o seu encanto minutos a fio, simpósios de vinte ou trinta convivas. O primeiro degrau, congratulou-me, você o galgou em grande estilo: habitar o primeiro distrito. O endereço aproxima-se da perfeição: a modelar avenida Ipiranga. Schiller seria sua perfeita antítese, não fossem os traços atávicos em comum: as origens vagamente nobres, o bolso vazio, o culto subentendido, por isso mesmo arraigado até a medula, à corte e sua vultosa relevância contemporânea. É o inconsciente profundo, a verdade recôndita da nação, berra convicto. À primeira vista, na promiscuidade das ruas, é um democrata descarado, extrovertido, querido por todos – do pitoresco flanelinha a um Orleans y Bourbon, do burguês endinheirado e ressentido ao transeunte anônimo e dis­traído. Devo-lhe um mundo, seria falacioso negar. Jamais deparara com seme­lhante poder casual, fulminante, de observação e classificação. O universo social lhe surge à luz de uma hierarquia fluida e infinita –— um parafuso, um botão de camisa, o Palácio de Cristal, Cézanne ou um capacho de cozinha, cada coisa merece um rápido exame acurado que lhe garante posição especí­fica dentro da escala axiomática dos valores humanos. E o perfaz com impres­sionante desenvoltura, impressionante lucidez, sob a enganosa aparência dis­plicente, sábia paródia do vulgar e do popularesco. Nasceu numa aldeola austríaca, et pour cause reclama afinidades instintivas com Petrópolis. É goe­thiano, simples como um bom-dia: sinto o seu magnetismo, seus humores, partilho seus remorsos antigos, antecipo-lhes os desejos e as intenções secre­tas. A matéria é grave, controversa, espinhosa, palpitante, provocativa. Uma aldeola no Tirol e Petrópolis, com sua mística ateniense, como assim, protes­tam veementes, em uníssono, os catedráticos de nossa vetusta universidade? Adepto da dialética de Hegel – os testemunhos são unânimes, consagra-se um ás ao esgrimi-la –, Schiller responde metade em alemão, metade em portu­guês. Metade sim, metade não. Nesse ínterim, sub-reptício, estuda, classifica, hierarquiza: cada peça de vestuário, a marca e a idade do relógio de pulso, a qualidade do xampu e do aparelho de barba e até, graças ao olfato prodigioso, a nacionalidade da manteiga que lhes impregna o hálito erudito. Esplêndido potencial de extorsão e chantagem que, seguindo o more aristocrático, Schil­ler abstém-se de instrumentalizar. No entanto, sobrevive de trampos e escam­bos, com frequência vexatória vê-se compelido a descer a biscates no dantesco balneário do Cristo. Também cultua Goeldi, esse espírito gentil e compa­nheiro que, inconcebivelmente, cria cachorros. Em plena, irrepreensível Fazenda Inglesa! Jamais piso lá os pés por horror às criaturas, todas perfeita­mente loucas, aliás, portadoras de vícios redibitórios que Schiller finge igno­rar. A alma bondosa da esposa padece, em calado pânico, temente às minúcias absolutas, aos detalhes todo-poderosos: o foie gras menos que único, a dobra inexata no lençol de algodão egípcio, a espuma inferior do café moído na cafe­teira italiana há meses obsoleta. Quanto a mim, vítima conformada de seus olhares inquisitivos, resguardo-me na medida do possível: submisso, acolho, aprendo e decoro. Nada adquiro sem consultar-me, em espírito, com o gigante ruivo encanecido – do pano de prato à écharpe indispensável, dos sapatos e estofados à soberba lixa de unha manufaturada em Hamburgo. Neste ponto (aos desavisados, cito o príncipe Hamlet, de Shakespeare) entra o terceiro assassino: Pedro Paulo Quintas, exegeta severo, femeeiro de memoráveis con­quistas. Recluso em Villaboim – ao que me conste, trecho favorável de um bairro passavelmente cível em uma infernal megalópole de província –, comunicamo-nos por meio de extemporâneas missivas, desencontrados telefonemas e lacônicos e-mails, a forma oficial de misantropia do Estado democrático. Tudo o que é humano me é estranho. Quintas foi-me, via negativa, sumamente útil. No idioma castiço de Trás-os-Montes, ins­tou-me que fosse à merda, nada tinha a ver com isso –— Petró­polis ou Paris, Sapucaia ou Três Rios, que diferença faria isso no curso risível do destino? Detesto gatos, analfabetos ou pseu­doeruditos. Faz sérias restrições também ao resto do universo, à exceção das ostras e dos livros, os autores precocemente defuntos, é preferível. Estarreço Memórias repassando-lhe, na íntegra, os ditirambos e aforismos. Certa feita, miou-me para pronto envio a Quintas uma extensa cursiva, meticulosa, extraordinariamente complexa, acerca da fatuidade do ceti­cismo e das virtudes patafísicas da monarquia. Uma comoção sacudiu a lúgubre comunidade da cultura: o taciturno Quin­tas tomou a peito o desafio. Quinzenalmente, redige a Memo, pois a ele já se dirige pelo apelido familiar, uma réplica poé­tica. Há muito, porém, o desmemoriado Memórias esqueceu-se do missivista, o gato ingrato. Quintas quem?, inquiriu o cínico. Quando emprego tal apelativo, vai às cordas, despreza-me como a um poodle, dada a etimologia canina do filosofema, há cerca de duas décadas e meia esvanecida. E vou adiante, a instilar a peçonha da qual, ao que parece, detenho uma reserva inesgotável –— o que é que há, ficou mordido? Pesquisa­dor infatigável – corretivo terapêutico, imprescindível, uma vez que os tempos verbais puseram-se a interagir de forma esdrúxula –, parti a investigar as remotas causas clandestinas que conduziram Quintas à inaudita ojeriza pela Cidade de Pedro. Quanto à sua opinião cáustica sobre o que sobra do cosmo, não me comprometo, não é da minha alçada; de resto, é cogitável, talvez cabível e até louvável. Lá pelos idos de 1960, 1970 ou 1930, pasmem, Quintas militava entre as almas do município. Em sítio subalterno, Nogueira; não obstante, den­tro do olímpico perímetro. Após escassos meses –— o texto do arrazoado é incisivo –, cassaram-lhe a cidadania. Doeu, calou fundo a rejeição, a jubilação sumária e irreversível. Compre­endo agora sua amarga disposição de espírito, peculiar aos que respiram aliviados no desterro, sob o influxo da perni­ciosa e deliciosa preguiça do exílio. Quase desculpo o bom humor feroz com que afasta, exibindo um sorriso mordaz, as minhas perorações, haverá quem as chame súplicas, em favor da cidade impe­rial. Ora, ora, Petrópolis, conheço-lhe de cor, um a um, os sebos medíocres, decadentes, e as ostras, quando as há, sofríveis. A qualquer mortal teria sido um golpe rude, irreparável, do destino. A uma alma sensível… Finalmente, finalmente ingênuo, crédulo Brito, lhe acode o óbvio: carece a Quintas o pre­cioso visto, como iria ele atender-me os insistentes pedidos para visitar-me, hóspede às minhas expensas de uma suíte de solteiro no prestigioso Hotel Casablanca? Quem se eximiria, de moto próprio, a tamanha honraria? Em casa, não obsequiamos hóspedes: ameaçam a integridade da rotina. Forçoso é reconhecer o impasse, a aporia: confessar a inconfessável desdita, ou entrin­cheirar-se numa simplória denegação freudiana, patente a olhos vistos? Vis­lumbro, afinal, a intenção velada das cartas periódicas a um desdenhoso gato, os e-mails intempestivos, gratuitos, comentários jocosos a respeito de notícias desprovidas de um grão de metafísica. Não, isso não ficará assim, creia-me, Quintas: incontinenti, ponho em marcha as tratativas. Os deveres kantianos da amizade, preguei-os vida afora, impõem sacrifícios. Percorrerei, indômito, os intermináveis corredores do palácio, os ministérios, a Câmara, a prefeitura; disponho ali de inúmeros conhecidos e, discretamente, duas ou três escritu­rárias íntimas. Além disso, ecoando Maria do Céu, se não me engano, amo de paixão a burocracia. O êxtase das esperas eternas e incertas, o suspense dos adiamentos súbitos, as desculpas arbitrárias, esfarrapadas, a amável afronta de funcionários intratáveis. Tardes e mais tardes, estéreis, anódinas, suaves, a se esvair sem pressa, nas miúdas expectativas de papéis bizantinos e docu­mentos com prazo de validade vencido. O sábio, os sagazes distinguem aí um sabor picante, um arrière-goût agridoce; no plano existencial, um sartriano para si. Nas nuvens, Bastos Ferreira haverá de acompanhar-me quando o per­mitir. Por amor à proporção e à simetria, prefiro esperar a sós, devaneando, sonhando acordado (a frase, genial, é e só podia ser do maior entre todos os baianos, Rui Barbosa). Uma entre cada cinco oportunidades, estipulo a pre­sença providencial de Bastos, que domina como ninguém as sutis artimanhas do que designa, com muita propriedade, “as artes eróticas da burocracia”. De hora em hora, larga-me de lado e sai a tomar um aperitivo, segundo ele um simbólico gesto mimético em solidariedade à Presidência da República. De antemão, folgo em revê-lo (a Pedro Paulo Quintas, sejamos precisos) no retorno triunfal à sua mesa cativa no D’Ângelo, inconfundível em seu très chic paletó de veludo verde-musgo, absorto, perdido na contemplação desinteres­sada des poules. Maneja destro, arrojado, o idioma de Baudelaire e Racine. A descer um Domecq atrás do outro, reeditando performances inesquecíveis, cantadas em verso e prosa. Noitada dessas, chego ao zênite, ao ápice, ao cume: a cifra cabalística dos quinze. E torno a vê-lo, ao soar a meia-noite os alegóri­cos sinos, trôpego, eminentemente digno, a interrogar, perplexo, a estátua de d. Pedro e o Cruzeiro do Sul. Sim, sim, haveremos de assistir à aurora desse fabuloso dia. Faço, desde logo, a ressalva: nunca em prejuízo de meu próprio Olimpo – a naturalização, certificada em cartório, a posse de todas as prerro­gativas de cidadão imperial. Ao longo do sibilino percurso das tratativas, surja algum empecilho de monta que interfira em meus negócios, adeus, fique por aí mesmo, Quintas, na roça faraônica, ou retorne, rosnando, à terrinha pro­gressista. Fostes, afinal, declarado culpado de crime hediondo – o crime ina­fiançável de lesa-majestade. Receio que vossas cartas teimosas, obsedadas, indisponham-me com o demônio do gato, prima-dona vingativa. Dependo de Memórias Póstumas Jr., e muito, no afã de cumprir o mais alto desígnio: a espiritual compenetração física –— próton, elétron, nêutron e demais subpartí­culas – aos ares petropolitanos e, em consequência, a consecução do projeto kantiano de “paz perpétua”. Paz dolente, fervorosa, hiperativa, que há de erguer-me acima de mim mesmo e justificar-me o fado transcendental, modesto, ímpar. Justo, justíssimo tributo aos infortúnios que, diuturnamente, em bom português, aturo. Na Antiguidade, em vara cível, a título de recurso derradeiro, lavrava-se a sentença: “incompatibilidade de gênios”. Entre mim e Memórias, a sentença alcança porventura a plenitude da figura jurídica. Em meus sazonais momentos de acídia, acabrunhado, meditabundo, digo de chofre, deprimido, invariavelmente, Memo mostra-se feliz e contente. Em verve exuberante, irreprimível. Aos saltos, aos pulos, a esbanjar energia, um frenesi sísmico que abala os alicerces morais de um recinto, por natureza, pacato e pudico. Das três da tarde, após a sesta reparadora da devassidão ves­pertina, até as onze da noite, pontualmente, quando vai à luta, Memórias Pós­tumas Jr. dedica-se a espicaçar-me a alma enferma. A puxar conversa a propó­sito de tudo e nada, a política, os quadrinhos, as senhoras ingratas que não dão mais as caras – ele bem o adivinha, o ímpio, que não é de caras que careço e necessito –, o aquecimento global, a invasão iminente do exército de Napo-leão. Já os preveni, ele mistura as vidas pregressas, e nem nisso confio: será talvez hábil manobra diversionista com o fito de ludibriar os espíritos. E con­tinua por aí afora, ad infinitum, a mixórdia inextricável. Observem bem, por caridade, formulem veredicto. Nas datas incontáveis em que amanheço dis­posto, expansivo, pronto a congraçar-me com quem quer que seja por dividir­mos o mundo, aposto a minha aposentadoria, vou encontrá-lo desanimado, esquivo e mudo. Emprego o termo técnico, neutro, subscrito pelo douto e pelo vulgo: macambúzio. Esparramado no chão, inerme, ostenta um ar de arrogante fastio pós-existencialista. Só quando, ensandecido, apelo a um for­midável chute de bico, dá sinais de vida, emite gritinhos quiméricos, ininteli­gíveis, e foge da varanda a estampar a evidente satisfação da missão cumprida. É infantil, concordo, entro a consultar Henriqueta sobre a possibilidade (nula) de comprarmos um cachorro. Pobre vítima indefesa de Mimo, ela concorda assanhada – são amigos fiéis, os cães, e têm serventia: a guarda da casa. Nos tempos que correm… Alongamos ao máximo a conversa, provando o doce fruto da vingança, a concertar meios e modos, os respectivos méritos das raças: o labrador afetuoso, o belo setter irlandês e até o medonho buldogue. O que de fato nos convém, minha cara Henriqueta Dias, é um sadio exemplar do insuperável pastor-alemão. Vou logo me entender com Schiller, autori­dade indiscutível no (repugnante) assunto. Memo estremece, é visível, põe-se a lamber o leitinho ou qualquer outra igno­mínia. Tendo me estragado o dia, contemporiza: venha, venha, mia, andemos a ler um bom policial e ouvir o Mozart divino. O traste, o velhaco, o patife, em síntese, o gatuno. Não me iludo. Memórias Póstumas Jr. – nome e sobrenome com que o agra­ciei e que, gosta de alardear, teriam sido obra da pena do pró­prio Assis, avaliem o anacronismo –— percebe com o sétimo sentido felino o quanto dele dependo. E, em parcela menor, da carola Henriqueta Dias. De saída, na dimensão atmosférica, no plano meteorológico-existencial, se preferirem. Sem os dois nativos puros a lhe insuflar o sopro autêntico, perderia o apartamento a identidade, o pneuma, mero acampamento de ciganos, praticamente um terreno baldio. Transportado sorrateiramente, na calada da noite, de uma pequeno-bur­guesinha Laranjeiras, nos subúrbios da zona sul da cidade inominável, aos cumes historiais da avenida Ipiranga. Qual­quer fiscal secundário da burocracia municipal do espírito, desses que vemos circular de uniforme pelas ruas, facilmente daria pela falcatrua. Eu estaria perdido. Ao acompanhar os emocionantes trâmites em curso, verdadeira orgia de altos e baixos burocráticos, há muito aprendi a apreciar o ritmo vagaroso, ardente, intrínseco ao Império e sua crença inabalá­vel no que o abaianado Braudel apelida a “longa duração”: um século, um dia. Temerário seria, se não leviano, ou pior, indecoroso, alterar a ordem universal das coisas. Por enquanto, sonho e sou-lhe imensamente grato por isso. Em moeda de troca, atendo os imperiosos caprichos do gato, os humores abusivos, alternados –— Póstumas Jr. é o bipolar típico –, suas aviltantes idiossincrasias. Em uma palavra, eu o bajulo. Porque há ainda a considerar, com o merecido cari­nho, a opinião pública. Com efeito, graças ao discreto brasão da família Britto, de bom gosto irretocável, que ostenta ao pescoço por onde passe – e os sítios variegados que aborda elevam-se do fausto imperial à sarjeta e à boca do lixo –, Memórias Jr. torna-me a mim, indireta mas irrefutavelmente, personagem da cidade. Ao que tudo indica, inclusive, uma terceira ou quinta avó, na linha baixa feminina, uma Barros Costa, haveria aqui nascido em púrpura, na brilhante Petrópolis da imperatriz Leopoldina. Ao andor ralentado do coche, como aliás conviria, arrastam-se as lídimas tra­mitações. Um gato petropolitano de quatro costados me é de enorme valia. Henriqueta, por sua vez, para quem Juiz de Fora é a Lua, justamente por essa fidelidade canina (sic). No âmbito natalício, só faz reforçar aos olhos cúpidos e vorazes do público minha sacra determinação de radicar-me nesses pagos. Privo-me há trinta e oito meses, sete dias e uns poucos minutos dos colóquios homéricos com o cordial e colérico Quintas. Seja pelo tom inflamável, sem ranço de monotonia, ora hilariante, ora belicoso, no limiar do desforço físico, seja pelo conteúdo gravíssimo, nas raias do patafísico, colóquios a rigor insubstituíveis. Muito eventualmente, Póstumas Jr. mostra-se um sucedâneo à altura. Ademais, há a viagem extenuante àquela turbulenta vila, onde um pouco de calma encontra-se à mão apenas entre a multidão contrita de fiéis dos shoppings, consoante a liturgia do consumo. O azáfama das démarches alfandegárias enfastia sobremaneira o homem de estudo, autocentrado, empenhado em aprofundar o seu conhecimento dos livros, das mulheres e da genealogia dos cavalos de corrida. Entrado em anos, hesita lançar-se numa temível aventura de desfecho imprevisível. Complacente, caridoso, respondo aéreo, uma vez na vida outra na morte, às copiosas mensagens eletrônicas de Quintas, pecadilho perdoável por parte de um escriba consciencioso, eremita ilibado que, em matéria de mulheres, não brinca em serviço. Entre um trago e outro, pausada, cautelosamente, o senhorial Bastos conforta-me nas horas tormentosas em que algum arcano documento se extravia nos labirintos do almoxarifado imperial. Arrebatado pelos fluidos da aguardente, o seu barí­tono melodioso destila sabedoria. Um pouquinho pastosa, a voz maviosa exerce efeito catártico, extremamente gratificante à autoestima da pessoa humana. Caro, caríssimo, felicito-o, nesses conturbados tempos pós-bastilha, modernos ou pós-modernos – o quanto duram rótulos impressos em papel jornal? –, o sr. combate o bom combate. Há um soldo a despender, todavia, investir contra a maré desses tempos permissivos, deletérios, em que os valo­res se acham por completo, in totum, invertidos. Cito um exemplo, en passant, porque atual e premente – eis-me aqui, um Bastos de Sá Ferreira, a adular um merceeiro avaro a quem devo, em tese, seiscentos cobres, as onipotentes uni­dades contábeis do vil metal, que amanhã somarão setecentas, em progressão crescente. Eu, que lhe prestigio amiúde a pocilga, concedo o lustre da minha presença a um frustro estabelecimento cuja estrela fenecida é uma deleitosa eau-de-vie. Não discorro à toa, a fábula é instrutiva. Veja você, sujeitado às mãos rasteiras de almas administrativas. Respeito, reverencio as instâncias monárquicas superioras superiores, bem como, você é testemunha, a própria Presidência da República, a quem dedico, por empatia, cinco ou seis diários brindes. Porém, Fernandes Brito, a alma livre, sobranceira, é o Império supremo e último. Louvo-lhe a pertinácia, o denodo com que batalha pela sublime comenda: a cidadania petropolitana, súdito pleno, imune a cláusulas restritivas. A chave da cidade, assim como foi a mim agraciada em priscas eras, haverá também de ser sua. Isso é tácito, seguro, questão de tempo; e a nós, libertos da usura do trabalho, tempo é o que deveras sobra e, solene, angustia. E o barítono ressonante, embargado de emoção e pinga, pontifica: no que a rigor importa –— o foro íntimo –, já é sua, a chave, sinto-o no fundo do coração. E, Deus sabe, detenho autoridade para tanto! Gastar palavras será preciso, descrever o indescritível, o exultante estado d’alma, as lágrimas que procurei inutilmente esconder, depois de aturar tamanha ladainha? A essa altura, por companheirismo, teria também eu emborcado as minhas. Quatro, oito vezes rodei o principado, digamos, em euforia, no ardor da conquista. Tornei a meus sóbrios aposentos, à la Hamlet, indeciso: comemorar à larga com Memórias, caviar e champanhe, em camaradagem masculina, ou doá-lo gene­rosamente ao município, alguma praça abandonada, bem longe, a perder de vista? Uma chuva fina característica, nostálgica, promissora, me aguardava na manhã seguinte. O céu, cor de cinza. Lembrai, concidadãos, lembrai, não esqueçais nunca a grandeza do poeta da Vila, Noel Rosa. Recomeço, fugiu-me ao controle a veia lírica. O céu cinzento, o Sol convenientemente oculto, é bom presságio: amplia os horizontes ao exercício otimista da melancolia. Cir­cunspecto, comedido, contemplo à janela de vidraças embaçadas o cristal do futuro. Dilui-se a véspera no éter da folia, glória transitória da vaidade e da pinga? Ou, sob os auspícios dos deuses das legendárias brumas do primeiro dis­trito, Bastos Ferreira, promotor aguerrido, juiz de sentenças melífluas, transfi­gura-se em visionário a antecipar-me o venturoso destino? Sim, sinto-me, principio a sentir-me, um legítimo renunciante, na nobre linhagem de Saint-Simon, gozo enfim o luxo, “o intervalo piedoso entre a vida e a morte”. Topei com a sentença premonitória, fatídica, em um volume puído de autoria de um tal Ladurie ou coisa parecida. Eram duas horas de uma madrugada igual a todas as outras, isto é, única e irrepetível. Garantiu-me o balconista: as traças são autênticas, pós-estruturalistas, basta atentar ao modo como atacam o texto, a desconstruir toda e qualquer leitura possível. Bem a seu feitio, Memo diz que sim e que não. Ou vice-versa. Talvez, talvez, arremata, taxativo. Exa­mino, inspeciono-lhe os olhos oblíquos, alheios, fixos e longínquos. A atenção flutuante, expediente matreiro da escuta psicanalítica, serve à mera apatia da besta ou a uma lição de filosofia estoica, distanciada e lúcida? Nesse item, Pós­tumas Jr. é lacaniano ortodoxo: repudia apoios imaginários, o paciente que se vire, no simbólico e no real, sobretudo no último. A sua presença, porém, é resoluta – aí está ele, irremovível, à espera de comida. Convoco a tempo o sen­timento moral do respeito: não interprete, não julgue. O renunciante que se preze, digno do nome augusto, conduzirá a máxima aos limites do perfectível. Já enxerga de cima o mundo, specie aeternitatis, humilde, imparcial, recita de cor suas vaidades corruptas. E o ensinam as pedras excelsas, o vento e as nuvens de uma cidade de outrora que se resigna ao presente com a dignidade indecifrável de um gato – e, creiam-me, isso diz tudo – que atende pela alcunha de Memórias Póstumas Jr. Quando atende, que o bicho é de veneta. Invoco o lamento civil, corrosivo, de Machado: “Valha-me Deus, há que se explicar tudo”. Senhoras e senhores, o gato é um sím­bolo. Descontemos a população empírica, de todo desprezí­vel. Os reinóis dividem-se em dois tipos primários: os que habitam em claustro, junto à televisão, e os que saem à rua para fazer ruído. Exógamos, copulam entre si, com o resul­tado que todos conhecemos. A sua atividade precípua con­siste em espionar, incomodar e caluniar o próximo. A cotejá-lo talvez com as criaturas reais, de carne e osso, nascidas e criadas na televisão. A hipótese de psicose coletiva é sedutora. Em ocasiões festivas – a Copa do Mundo, os velórios célebres, a Páscoa e o Natal, enormes catástrofes naturais –, se agregam e se agitam feito doidos do hospício. Conservo-me à parte, afável no trato, inteiramente acessível. Falam mal de mim, como de todos os outros; forasteiro, gozo de certo privilégio nesse sentido. “Velhote maníaco”, ao que parece, é a expres­são consagrada, a súmula do consenso público. Agrava-se segundo o humor volátil das gentes e meus raríssimos desa­certos de conduta. Bastam cinco minutos de atraso no meu passeio matutino, doze minutos de carência no footing do crepúsculo, já escuto o buchicho. Os rumores. Ecoando outra vez Clarice, amo de paixão a rotina. Eles mesmos obedecem, beatos, aos capítulos e versículos da bíblia televisiva, sem lhes tirar uma vírgula. Destemperam e riem muito, nem sempre às escondidas, de minha paixão retórica pela enumeração sis­temática. Vá lá, inveterada. Vício inofensivo, se alguma coisa, áulico, pedagógico. Sequela de hábitos salutares: a métrica da poesia, os silogismos da filosofia, os procedimentos regulares, sinistros, da burocracia, os passos trocados da malversada jurisprudência. O leitor escrupuloso, exasperado, que chegou até aqui, terá notado minha estima pela discriminação com­pulsiva das horas e dos dias. Pergunto: de que é composto o estofo do tempo? Como se administra, calcula e computa a vida terrena, a única em que, por enquanto, acredito? O meu catolicismo romano, pio, compungido, é de cunho legalista – a religião oficial da pólis à qual juram os súditos estrita obser­vância. Livre-pensador, atrevido, na tribuna das barbearias e dos inferninhos, vitupero sem clemência o clero, bando de borrachos, obscurantistas, concupiscentes, não encontrarão lugar ao sol no mundo vindouro do progresso esclarecido. Em nome de qual instituição ou benfeitoria sacrificaria eu o dom afrodisíaco da enumeração? Renunciaria ao opiáceo do número pitagórico, platônico, que regula e promulga a vida temperada e justa? Contabilizo os gritos orgásticos das senho­ras que consumo, desculpem-me, desfruto. A cifra exata, con­signada em cadernos de notas, eles próprios enumerados, das releituras dos oito ou doze livros que coroam o ócio diligente da aposentadoria. Não lhes quero mal, entendam. Magoa-me apenas, altero-me, fico puto, o modo abjeto como destratam a língua de Drummond e Eça. Saberão quando muito cin­quenta, duzentos e trinta palavras do vernáculo; o resto é o vocabulário esotérico dos telejornais, da internet, da axé music e das biroscas. Segredou-me Henriqueta, acusam-me de arcaísmo, linguagem empolada, pedante, e até hermética, essa é demais. Há ainda os que dizem que vario, que deliro.

 

RONALDO BRITO (1949) estreou na crítica de arte no início da década de 1970. Foi colaborador do Opinião do primeiro ao último número e editou o jornal A parte do fogo e a revista Malasartes. É autor de ensaios que são referência sobre o movimento neoconcreto e artistas como Amilcar de Castro, Sergio Camargo e Iberê Camargo. A coletânea Experiência crítica (Cosac Naify, 2005) reúne parte importante de sua produção ensaística. Como poeta, é autor dos livros O mar e a pele (1977), Asmas (19 82) e Quarta do singular (1989). Na serrote, estreia como ficcionista.

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