O cavalo de três cabeças

3.

Nos estudos para a realização do mural do Hospício Cabañas, desenhos a lápis e guache sobre papel, o cavalo de ferro tem um nome: A Espanha de Carlos v. No mural, a figura – máquina de guerra, não gente ou animal, um cavalo e um cavaleiro feitos de engrenagens, correntes e fuzis – ocupa um dos seis painéis do teto do Cabañas, no extremo esquerdo do prédio. Abaixo de A Espanha de Carlos v, nas paredes laterais, em torno da janela, retratos de Cervantes e de El Greco. Os dois painéis que se seguem à Espanha de Carlos v mostram uma cena de batalha – nos estudos, anotada com o nome de Belicosidade – e um retrato de Hernan Cortés, figura formada pela montagem de um rosto humano sobre uma engrenagem metálica idên­tica à do cavalo de engrenagens e correntes. No outro extremo da constru­ção, à direita da cúpula central, os painéis do teto mostram as figuras de um padre, um retrato do rei Filipe n de Espanha e, entre um e outro, o painel que nos estudos tem o nome de Os cavalos na conquista: um guerreiro de espada e armadura de ferro num cavalo de duas cabeças.

Eisenstein não chegou a ver os murais de Guadalajara, eles ainda não existiam quando ele esteve no México, entre dezembro de 1930 e fevereiro de 1932, para as filmagens de ¡Que viva México!. Nem chegou a se encontrar pessoalmente com Orozco. Mas viu trabalhos do pintor nos Estados Unidos – o mural da New School for Social Research, em Nova York, e o Prometheus do Pomona College, na Califórnia. O breve comentário poético que fez num ensaio, que se refere também a Rivera e a Siqueiros e tem como título Prometheus, pode ser tomado como expressão do que toma conta do espec­tador diante de La conquista de México do Hospício Cabañas. Diz Eisenstein que “não há nada mais fascinante do que observar os voos fulgurantes de Orozco na parede, porque o mundo que ele cria com sua pintura quebra o equilíbrio do universo, surge como uma faísca brilhante no lugar do sol plácido de cada dia”.

A conquista do México, anotou Orozco em sua autobiografia, “parece que foi ontem: a destruição de Tenochtitlán parece ter acontecido um ano antes, não no começo do século 16”. No tempo da conquista, o ferro e o fogo; no presente, as correntes e os fuzis. O passado como experiência presente ou, uma vez que se quebra o equilíbrio do universo, o presente como uma experiência do passado. Os guerreadores e as vítimas: as imagens que no Hospício Cabañas contam a chegada de Cortés e da Espanha de Carlos v são idênticas às que compõem as lutas fratricidas e as forças tenebrosas nas pare­des do palácio de governo. As vítimas sob as patas dos cavalos e o conquista­dor no teto do Cabañas são como O povo e os líderes na parede do salão nobre da universidade. Na guerra da conquista do México, Orozco pinta também a Guerra Civil Espanhola, a guerra na Ásia e o que já se anunciava nesses conflitos, a Segunda Guerra Mundial. No mural, uma operação de fusão e deslocamento semelhante à realizada por Picasso em Guernica.

Os jornais continuavam a publicar fotos da destruição de Guernica no bombardeio de 26 de abril de 1937 quando Picasso, em 1o de maio, riscou, lápis sobre papel, o primeiro esboço da tela que começaria a pintar uma semana mais tarde: a figura retorcida de um cavalo. Logo, lápis sobre papel e óleo sobre tela, novos esboços: o detalhe da cabeça de um cavalo, boca aberta, língua e dentes projetados para fora num grito de dor. Em Guernica, o cavalo seria a figura dominante. As fotos de Dora Maar que registram o pro­cesso de trabalho de Picasso revelam as seguidas alterações da tela em busca da forma e da posição exatas do cavalo. No primeiro instante, ele aparece dobrado, retorcido, caído no chão. No quadro finalizado, ele é uma cabeça que salta para fora do corpo num último grito. Em Guernica, enfim, nem armas, nem soldados, nem aviões, nem bombardeios: uma cabeça de cavalo que grita. Mãe com o filho morto no colo, mulher em fuga, braços erguidos em desespero, mas, principalmente, cabeça de cavalo. Não a guerra, mas o horror da guerra, operação de fusão e deslocamento próxima da realizada por Orozco em La conquista de México e não muito distante da realizada por Eisenstein em Os cavaleiros de ferro.

4.

Em fevereiro de 1937, perto de concluir a montagem de O prado de Bejin, Eisenstein começou a pensar em seu próximo filme com uma série de dese­nhos. Seria sobre a Espanha, então há sete meses em guerra civil. Alguns desses desenhos são esboços de vida independentes, figuras de um só traço sob o tema “bombas e terror na Espanha”; outros são estudos de cenas do filme, que se passaria quase inteiramente na plaza Mayor de uma cidade atacada por soldados franquistas. O ator e cantor americano Paul Robe­son, em Moscou para uma série de concertos, colocara-se à disposição para trabalhar entre julho e outubro no filme. Robeson estava então em evi­dência, tanto por seu trabalho no teatro (interpretara Otelo, em Londres) e no cinema (como protagonista da adaptação para cinema de The Empe­ror Jones, de Eugene O’Neil), quanto por seu ativismo político –— atuara em espetáculos de solidariedade às Brigadas Internacionais e contra o racismo e o nazismo. Ao passar por Berlim a caminho de Moscou, ele fora agredido pelas tropas de choque do partido nazista. Alguns anos antes, em 1932, Eisenstein tentara fazer um filme com o ator, Black Majesty, mas o projeto fora proibido. Em Hispania, Robeson faria o papel de um soldado marro­quino – contou o diretor em carta a Jay Leyda, datada de 1º de fevereiro de 1937: “Um tema cola com perfeição no outro, a luta contra o racismo e contra o nazismo na guerra revolucionária na Espanha”.

Da mesma forma que os episódios de ¡Que viva México! foram inspirados em Posada, Siqueiros, Rivera e Orozco, o filme sobre a Espanha seria, muito provavelmente, em alguma medida inspirado em El Greco. E, por isso, Eisens­tein começou a redigir, ainda em fevereiro, anotações para um ensaio sobre o pintor, originalmente com título em espanhol, El Greco y el cine”, que termi­nou de escrever em setembro de 1937.

No ensaio, entre várias outras observações, Eisenstein diz que El Greco pinta como se filmasse com uma lente de 28 milímetros; diz que essa obje­tiva cria um conflito entre o objeto e sua aparência: a mão de uma pessoa estendida na direção da lente aparece incrivelmente grande em relação ao corpo inteiro; que, no cinema, a lente de 28 milímetros permite repre­sentações expressivas, deformadas, como as dos quadros de El Greco; que Tempestade sobre Toledo é uma tela que resulta não de um único ponto de vista, mas de um passeio pela cidade e pelos arredores, ou, em outras pala­vras, da montagem de diferentes pontos de vista; que esta é a primeira pai­sagem da história da pintura, a primeira paisagem em si e per si; que, por ser uma das primeiras paisagens sem uma figura humana, é uma imagem de forte presença humana; que Tempestade sobre Toledo é de fato um autor­retrato, não um registro de uma nuvem de tempestade sobre a cidade, mas um retrato do que o pintor sentia enquanto pintava.

Eisenstein observa ainda que El Greco e Orozco vão além da reprodu­ção das formas da natureza, que se servem de uma igual arbitrariedade no uso das cores e na relação entre as cores da obra e aquelas do modelo. Orozco muito provavelmente teria gostado do paralelo. No relato da viagem que fez em 1932 à Europa, ele se refere com entusiasmo à simplicidade geométrica do Cristo adorado na cruz, de El Greco, no Museu do Louvre, e com entusiasmo ainda maior a O enterro do conde Orgaz, na igreja de São Tomé, em Toledo. Diz, em sua autobiografia, que, em Toledo, continuam a enterrar todos os dias o conde Orgaz; diz que El Greco continua vivo ali, continua a pintar seus apóstolos todos os dias.

“El Greco y el cine” é, de modo indireto, uma anotação para pensar Hispania. Outras anotações para esse pro­jeto não realizado encontram-se nas séries de desenhos A Guerra Civil Espanhola, Bombas e Terror na Espanha, lápis preto sobre papel, com alguns detalhes traçados em ver­melho. Feitos entre fevereiro e maio de 1937, os últimos a partir das notícias do bombardeio de Guernica, os desenhos foram expostos na Espanha durante o Festival de Cinema de Huelva, em novembro de 1989, por iniciativa de Naum Kleiman, responsável pelo arquivo de Eisenstein e diretor do Museu de Cinema de Moscou. São, simultaneamente, um estudo do filme a ser feito, uma nota ou comentário visual de uma notícia de jornal sobre a Guerra Civil Espa­nhola e uma referência ao que desabava sobre a cabeça das pessoas com impacto idêntico ao de uma guerra civil na União Soviética de então. Na Espanha dos desenhos de Eisenstein, Franco e Stálin são um só personagem.

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