O cavalo de três cabeças

5.

Arnold Schönberg já tinha apresentado a sua Música para acompanhar uma cena de cinema (Begleitungsmusik zu einer Lichtspielszene, 1930), composição inspirada pelo cinema, mas não uma trilha sonora de um filme. Silvestre Revuel­tas fizera para Fred Zinnemann e Emilio Gómez Muriel a música de Redes (1936), trabalhando ao lado dos direto­res e do fotógrafo Paul Strand durante as filmagens. Virgil Thomson musicara dois documentários de Pare Lorentz, The Plow That Broke the Plains (1936) e The River (1937), com­pondo a música diretamente estimulado pelas imagens do filme, improvisando ao piano durante a projeção de uma primeira versão da montagem. Heitor Villa-Lobos acabara de compor O descobrimento do Brasil para o filme de mesmo nome de Humberto Mauro (1936).

O cinema inspirava a música, e vice-versa, quando Eisenstein e Sergei Prokofiev se reuniram para fazer Os cavaleiros de ferro. O diretor colocava em prática o que havia planejado realizar em ¡Que viva México!, que filmara em 1931 e não pôde montar: trabalhava o contraponto orquestral de imagens visuais e sonoras. A colaboração entre o compositor e o diretor é amplamente analisada em “Montagem vertical” – texto publi­cado em janeiro de 1941 na revista A arte do cinema (Iskusstvo Kino) e, pos­teriormente, retrabalhado e incluído em O sentido do filme com o título “Forma e conteúdo: prática”. Quando escreveu o ensaio, Eisenstein traba­lhava no roteiro de Ivan, o terrível, e talvez tenha retornado à relação entre imagem e música para pensar a colaboração seguinte com Sergei Prokofiev.

Não se trata, aqui, de retomar ou tentar resumir a análise que Eisenstein faz em “Montagem vertical” da relação entre música e imagem no começo da batalha do gelo, nos 12 planos montados imediatamente antes dos três quadros da paisagem de horizonte baixo e muito céu de nuvens carregadas. Mas vale retomar o que o diretor anota sobre aquilo que considera essen­cial na relação entre música e imagem num filme, “encontrar a chave para a igualdade rítmica de uma faixa de música e uma faixa de imagem” e, desse modo, “unir ambas as faixas, vertical ou simultaneamente”.

Depois de esclarecer que existem no filme cenas em que a música foi escrita de acordo com a montagem final dos planos e cenas em que os pla­nos foram montados de acordo com a música previamente gravada, Eisens­tein diz que, para a cena em que os soldados vitoriosos tocam flautas e tam­bores, não conseguiu explicar a Prokofiev o efeito que deveria ser visto por meio da música. Diz então que mandou fabricar “alguns instrumentos-ade­reços”, que filmou os instrumentos “sendo tocados visualmente (sem som)” e projetou os resultados para Prokofiev, que quase imediatamente entregou

um exato equivalente musical daquela imagem visual de flautas e tambores que eu lhe mostrara. De modo semelhante, foram produzidos os sons das grandes trombetas sopradas pelos teutônicos. Do mesmo modo, mas no sentido inverso, seções inteiras da partitura sugeriram soluções visuais plásticas que nem ele nem eu havíamos vislumbrado antes.

No ensaio biográfico sobre Eisenstein que publicou em 1972 (Kniga ob Eizensteine”), Viktor Chklóvski observa que o impulso musical-poético do filme é tão forte que espectadores de todas as épocas não sentem dificuldade em saltar sobre uma lacuna de Os cavaleiros de ferro. Conta que uma noite telefonaram da parte de Stálin, exigindo que lhe enviasse imediatamente o filme; a ordem se executou no ato e, naquela mesma noite, o filme foi exi­bido para ele. Tudo correu bem, continua Chklovski, e o diretor recebeu felicitações pelo telefone, mas uma cena não havia sido mostrada: os dez minutos da guerra entre os moradores de Novgorod foram esquecidos na sala de montagem e, uma vez o filme aprovado sem ela, a cena nunca mais voltou a ser inserida. Lembra Chklovski que, do ponto de vista da lógica da história narrada, surpreende o fato de ninguém, nenhum crítico, nenhum espectador, ter notado a falta dessa cena e de todos terem aceitado uma fala sem sentido (pois se referia à batalha entre os moradores de Novgorod na ponte da cidade). Nevski pergunta como eles, que viviam em guerra uns com outros, esperavam que ele pudesse ajudá-los. A batalha na ponte, diz Chklovski, era uma metáfora da guerra civil que dividiu o país na revolução socialista e criou um mal-estar que se estendia até aquele momento, com perseguições e prisões dos considerados inimigos do socialismo. Ele con­clui que o impulso musical-poético do filme é tão forte que o espectador não tem dificuldade de voar sobre essa lacuna semântica, assim como um esquiador atravessa o espaço depois de saltar do trampolim. Três fotogra­mas da cena da guerra civil entre os moradores de Novgorod encontram-se reproduzidos no livro de Jay Leyda e Zina Voynow, Eisenstein at work.

A música inspirada por instrumentos musicais incapazes de produzir qualquer som e a imagem inspirada pela música, e não por uma lógica qual­quer imediatamente identificável no desenrolar da história: talvez seja pos­sível imaginar que uma solução semelhante, num outro espaço de expres­são, tenha permitido a invenção de uma imagem como a do cavalo tanque de guerra – ferro, engrenagens, armas – de La conquista de México. E a inven­ção da lâmpada acesa e do pássaro apagado no horror da guerra de Guernica.

6.

Terminada a Exposição Internacional de Artes e Técnicas da Vida Moderna, em Paris, em novembro de 1937, Guernica foi enviado para exposições em Oslo, Copenhague e Estocolmo, entre janeiro e abril de 1938. Retornou em seguida ao estúdio de Picasso, que em outubro o enviou à Inglaterra para exposições em busca de fundos para os refugiados espanhóis. A expo­sição de Guernica em Londres foi inaugurada em novembro de 1938, mesmo mês em que, em Moscou, estreava Os cavaleiros de ferro.

Em maio de 1939, Guernica e os mais de 60 estudos feitos a lápis sobre papel e óleo sobre tela chegaram a Nova York. Em setembro, foram envia­dos para uma exposição em Los Angeles. E então, enquanto Los Angeles via Guernica, no mesmo setembro de 1939, Orozco concluía os murais do Hospício Cabañas, em Guadalajara, e na União Soviética, em razão do pacto Ribbentrop-Molotov, Os cavaleiros de ferro era retirado dos cinemas. De certo modo, o pacto de não agressão entre os nazistas e a União Soviética, assi­nado em 24 de agosto de 1939, fora pressentido dois anos antes por Oroz co, que, em O circo contemporâneo, mural do palácio de governo do estado de Jalisco, mostra um político vestido com a suástica e com a foice e o martelo, e outro com uma suástica e uma estrela vermelha. No comício do circo con­temporâneo os militantes debatem armados de foices e martelos, ou de um fascio e de uma cruz católica. A guerra e o pacto foram pressentidos também por Eisenstein, que, em Os cavaleiros de ferro, se serve da decoração de um capacete, a mão estendida sobre a cabeça como uma espécie de unicórnio, para levar um cavaleiro a repetir a saudação nazista diante do grande mestre dos teutônicos, e decora com uma suástica estilizada o chapéu do bispo que abençoa os cavaleiros teutônicos antes da batalha.

Guernica permaneceria nos Estados Unidos, no MoMA de Nova York, até setembro de 1981, quando, “restabelecidas as liberdades públicas na Espa­nha”, de acordo com a condição estabelecida por Picasso, transferiu-se em definitivo para a Espanha. Os cavaleiros de ferro retornaria aos cinemas depois da invasão da União Soviética pelos nazistas, em junho de 1941.

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