O cavalo de três cabeças

7.

Com a proibição, em março de 1937, apenas alguns fotogramas e anota­ções do roteiro de O prado de Bejin foram salvos. Os desenhos feitos por Eisenstein para preparar o filme, os negativos e as cópias de trabalho foram destruídos. Em 1967, 30 anos depois da proibição, a partir das anotações e dos poucos fotogramas preservados às escondidas, Sergei Yutkevitch e Naum Kleiman montaram um mapa cinematográfico de O prado de Bejin. Um mapa, na realidade, com duas versões. A primeira com 30 minutos, a segunda com 60. Existem ainda dois documentos indiretos do que o filme poderia ter sido e do estado de coisas que impediu a conclusão do projeto. O primeiro desses relatos está em Os erros de O prado de Bejin (Oshibki Bejin lovii), retratação que o diretor foi obrigado a escrever depois das acusações e julgamentos públicos na associação dos trabalhadores de cinema nas semanas seguintes ao anúncio da proibição. Publicada em abril de 1937, a confissão dos “erros” escrita por Eisenstein traz uma análise da estrutura de composição. Diz, entre outras coisas, que, no coração do filme, está o episódio onde o pai assassina o filho; que o assassinato, depois de o filho denunciar o pai como inimigo da coletivização da fazenda, não é um epi­sódio impossível de acontecer; que tais coisas não são típicas, mas podem acontecer; que a posição dessa cena no centro do roteiro confere ao epi­sódio o status de ação independente, suficiente em si mesma; que a cena deixa, assim, de ser uma imagem da luta de classes no país; que o assassi­nato do filho se aproxima de algo como o instante em que Abraão sacrifica Isaac; que, como a primeira versão do roteiro não conseguiu demonstrar o triunfo final da fazenda coletiva, trabalhou uma segunda versão; que, na segunda versão, o conflito entre pai e filho apareceu mais claramente como um episódio provocado pela luta de classes no campo; que, ainda assim, não se conseguiu evitar que o assassinato do filho continuasse a ser o foco central de atenção; que a primeira versão tinha eliminado qualquer traço de humanidade na figura do pai, construída com uma brutalidade inveros­símil; que a segunda foi longe demais na direção oposta: por cima de tudo aparece o drama humano do pai, o desespero incontrolável do pai obrigado a matar o filho para lutar contra o socialismo.

O segundo texto, aquele em que o diretor descreve o estado de proibi­ções e julgamentos, é “Palavra e imagem” ou “Montagem 1938” (“Word and Image”/ “Montazh 1938”), escrito em 1937, mas publicado somente em janeiro de 1939, depois da estreia e da boa acolhida a Os cavaleiros de ferro. O texto, mais tarde, foi incluído em Film Sense, editado em Nova York em 1942 e tradu­zido para o português em 1990 pela editora Jorge Zahar.

Para explicar como um diretor ou um ator de cinema compõem uma cena dramática a partir da montagem de fragmentos da vida cotidiana, para demonstrar que a estrutura de uma cena deve ser determinada pela estrutura da emoção de quem faz a cena, Eisenstein propõe um tema – Sou um crimi­noso aos olhos de meus ex-amigos e conhecidos. As pessoas me evitam. Sou colocado no ostracismo por elas – e a partir dele, duas situações: “A primeira situação na qual me imagino é o tribunal, onde meu caso está sendo julgado. A segunda situação será minha volta à vida normal depois de cumprir minha pena.” Enumera, em seguida, “apenas o que veio à minha mente quando esta­beleci para mim mesmo a tarefa”. Na breve descrição, cada frase soa como se fosse um plano de um filme:

O tribunal. Meu caso está sendo julgado. Estou no banco dos réus. A sala está repleta de pessoas que me conhecem – algumas casualmente, outras muito bem. Capto o olhar de meu vizinho fixado em mim. Somos vizinhos há 30 anos. Ele percebe que o vi olhando para mim. Seus olhos resvalam sobre mim com afetada abstração. Ele olha fixo para a janela, fingindo fastio… Outro espectador na sala do tribunal – a mulher que vive no apartamento acima do meu. Encontrando meu olhar, ela baixa os olhos, aterrorizada, enquanto olha para mim com o rabo do olho…

Algumas outras imagens do julgamento, “os sussurros de censura e o mur­múrio de vozes. Como um golpe atrás do outro, caem as palavras da súmula do promotor…” e, então,

a outra cena com a mesma nitidez – minha volta da prisão. A batida dos portões atrás de mim, quando sou libertado… O olhar espantado da empregada, que para de limpar as janelas do vizinho quando me vê entrando em meu velho prédio… Há um nome novo na caixa do correio… O chão do vestíbulo foi recentemente encerado e há um novo tapete em frente à minha porta… A porta do apartamento ao lado se abre… Pes­soas que eu nunca vira antes me olham com suspeita e inquisitivamente. Os filhos se agarram nelas; instintivamente se escondem. Embaixo, com os óculos tortos no nariz, o velho porteiro, que se lembra de mim, olha para cima através do vão da escada…

Três ou quatro cartas amareladas enviadas para meu endereço antes que minha desgraça fosse de domínio público… Duas ou três moedas tilintam em meu bolso… E então – a porta é fechada na minha cara pelos ex-conhecidos que agora ocupam meu apartamento…

E conclui:

E assim por diante. Acima está o resultado apenas de anotações sobre tudo o que passa pela minha mente e sentimentos quando, tanto como diretor quanto como ator, tento me apossar emocionalmente da situação proposta.

Pouco depois da publicação de “Palavra e imagem” na revista A arte do cinema (Iskusstvo Kino, jan. 1939), Eisenstein começou um novo filme, O grande canal de Ferghana (Bolshoi Ferganskii Kanal), mas, em agosto de 1939, momento em que alemães e soviéticos assinavam o pacto de não agressão, também este projeto foi interrompido. Pouco depois, Os cavaleiros de ferro deixava de ser exibido. Em Eisenstein at work Jay Leyda reproduz dois dese­nhos de Eisenstein, datados de 20 de setembro de 1939 e com um título em inglês: “That’s how I do feel”. No primeiro, uma figura em pé dá um tiro na cabeça. No segundo, uma figura dá uma cabeçada numa parede de tijolos. Dois meses depois, em novembro de 1939, Eisenstein voltava a desenhar cavalos teutônicos para a encenação de As Valquírias, de Richard Wagner, no teatro Bolshoi.

8.

Algo na composição de Guernica lembra o processo cinematográfico – talvez o preto e branco dos filmes de então, talvez o fato de o quadro se estrutu­rar por meio de um processo de montagem semelhante ao do cinema. Em Guernica, como um diretor de cinema na sala de montagem, Picasso ordena imagens que filmara em anos anteriores –— touro, cavalo, lâmpada, chama na mão estendida – para representar na estrutura da composição o bombar­deio de Guernica. A montagem convida o olhar a correr pelo quadro, assim como um filme corre na tela do cinema: a porta entreaberta, o punho cer­rado que antes de se quebrar foi lança ou espada, a seta, a mesa, a flor, o telhado, o pássaro abatido e apagado no meio do voo, o braço estendido com o lampião, a cabeça decapitada da estátua de guerreiro, a madeira partida, a pata dobrada, o pé contorcido, a mão contraída, a lâmpada acesa como um olho sobre a cabeça do cavalo, os dentes e a língua que saltam da boca para o grito de dor e os muitos gritos mudos na tela: a mãe com o filho morto nos braços, a mulher na casa em chamas, a mulher que foge para lugar nenhum, a mulher que se debruça para fora da janela –— tudo se move em Guernica.

Algo do processo do cinema, ou pelo menos da experiência do especta­dor no instante da projeção de um filme, encontra-se também nos murais de Orozco em Guadalajara –— talvez as linhas de composição dos painéis e a rela­ção que eles estabelecem com o espaço arquitetônico. A vista não alcança de uma só vez e por inteiro as imagens nas paredes em torno da escada prin­cipal do palácio do governo de Jalisco. A pintura se descobre à medida que o espectador sobe a escada, o que faz cada pedaço do mural ganhar novos contornos, se enquadrar de outro ponto de vista a cada degrau. É como se a pintura, e não o espectador, se movesse. E no Hospício Cabañas, constru­ção de quase 200 metros de extensão, com tetos e paredes curvadas e uma grande cúpula central, é impossível até mesmo a apreensão de apenas parte do mural de um único ponto de vista e de uma só vez. Enquanto caminha no meio da obra, ou aqui e ali se deita num dos bancos de madeira para melhor observar o teto, o espectador é envolvido pela sensação de que o mundo está prestes a desabar sobre ele: o cavalo de ferro, com engrenagens, correntes e fuzis, voa sobre nossas cabeças, pronto a despejar suas bombas. As patas dos cavalos da conquista ameaçam como lanças. O guerreiro no cavalo de duas cabeças empunha a espada para o golpe final.

Algo na construção de Os cavaleiros de ferro lembra o processo da pintura. Não só o fato de o filme ter sido quase todo desenhado antes de ser filma do. Não só o fato de o filme passar como um desenho, com planos em que internamente nada, ou quase nada, se move além da luz: as imagens iniciais do filme, por exemplo – cinco paisagens, quatro delas marcadas pelos esqueletos insepultos de uma batalha há muito ocorrida. Os planos que pre­cedem o avanço da cabeça de porco na batalha do gelo são outro exemplo. São três imagens de uma planície em que a linha do horizonte está colada na moldura inferior da tela, e o quadro é dominado por um céu de nuvens de tempestade, como aquele pintado por El Greco sobre a cidade de Toledo. Algo de pintura, mas não porque cada plano se apresenta como se fosse uma pintura e se deixa ficar na tela por um tempo superior ao necessário para o reconhecimento das pessoas, objetos e paisagens filmadas, mas quase como uma pintura que fica na parede. Não é a ação dos personagens em cena que conta, ou pelo menos não só ela. Importa a ação da imagem em si e per si. O olhar é chamado a agir assim como age diante do jogo expressivo da ausên­cia de cor no Guernica de Picasso ou da exuberância de cor em La conquista de México, de Orozco. De certo modo, a qualidade que Eisenstein identifi­cou em Orozco – “o mundo que ele cria com sua pintura quebra o equilíbrio do universo” –— encontra-se também em Os cavaleiros de ferro: os planos não se referem a uma coisa qualquer que existe antes, fora, independente dele. Quebram o equilíbrio, criam um universo poético, transpõem para o cinema a experiência dos construtivistas (“Na poesia, as palavras e as imagens não são um modo de expressar uma ideia, elas expressam a si mesmas. Não são a sombra de um objeto ou ação, são objeto e ação”). No cinema, a experi­ência da pintura: cada quadro parece partir não do olhar dinâmico da foto­grafia, mas do olhar em profundidade da pintura. Talvez seja possível dizer que Os cavaleiros de ferro foi montado como se tivesse usado Guernica como roteiro, inspiração, convite, desafio para a invenção. Talvez seja certo dizer que, pelo menos em parte, ele foi montado com a memória do bombardeio em Guernica. Em plena Rússia do século 13, entre Pskov e Novogorod, uma cidade basca destruída pela aviação alemã.

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