Uma noite histórica (do alto de uma janela do largo do Paço)

serrote #8, julho 2011

Uma noite histórica (do alto de uma janela do largo do Paço)

RAUL POMPÉIA


Às três da madrugada de domingo, enquanto a cidade dor­mia tranquilizada pela vigilância tremenda do governo pro­visório, foi o largo do Paço teatro de uma cena extraordiná­ria, presenciada por poucos, tão grandiosa no seu sentido e tão pungente quanto foi simples e breve.

Obedecendo à dolorosa imposição das circunstâncias, que forçavam um procedimento enérgico para com os mem­bros da dinastia dos príncipes do ex-Império, o governo teve necessidade de isolar o Paço da cidade, vedando qualquer comunicação do seu interior com a vida da capital.

A todas as portas do edifício principal, na manhã do sábado, e às portas das outras habitações dependentes, liga­das pelos passadiços, foram postadas sentinelas de infanta­ria e numerosos carabineiros montados. O saguão transfor­mou-se em verdadeira praça de armas.

Muitos personagens eminentes do Império e diversas famílias, ligadas por aproximação do afeto à família impe­rial, apresentaram-se a falar ao Imperador e aos seus augus­tos parentes, retrocedendo com o desgosto de uma tenta­tiva perdida.

À proporção que passavam as horas, foi-se tornando mais rigorosa a guarda das imediações do palácio. As sentinelas foram reforçadas por uma linha de baionetas que a pequenos intervalos estendeu-se pelo passeio, em todo o perímetro da imperial residência, transformada em prisão do Estado.

Novas determinações, anunciadas por ajudantes de ordens que chegavam frequentemente do quartel-general, desenvolviam ainda mais as manobras da guarnição do edifício.

Depois que anoiteceu, foi fechado o trânsito pelas ruas que o rodeiam. Às 11 horas, havia sentinelas até ao meio da grande área compreendida entre o pórtico do palácio e o cais. Por todas as imediações vagueavam soldados de cavalaria, empunhando clavinotes de coronha pousada ao joelho.

Adiantava-se a noite, adiantavam-se gradualmente para o mar os cor­dões de sentinelas.

Um boato oficial, inspirado pela conveniência do interesse público, espa­lhara a notícia de que o sr. d. Pedro de Alcântara (que se sabia dever embar­car para a Europa em consequência da revolução do dia 15) só iria para bordo no domingo de manhã. A polícia excepcional do largo do Paço, porém, durante a noite de sábado, deu a certeza de que o embarque se faria muito antes da hora do propalado consta. Demorados por esta suspeita, muitos curiosos estacionavam pelas vizinhanças do mercado, das pontes das barcas, na rua Fresca, na rua da Misericórdia, na esquina da rua Primeiro de Março.

De uma hora da madrugada em diante, as patrulhas de cavalaria come­çaram a dispersar os ajuntamentos.

Para os últimos passageiros das barcas Ferry não havia mais caminho, do lado do mercado, senão beirando rentinho ao cais. Depois da última barca, o trânsito foi absolutamente impedido. Também os mais renitentes curio­sos tornaram-se muito raros, mesmo nas proximidades do largo sitiado.

Um grande sossego, com uma nota acentuada de pânico, reinava neste ponto da cidade. Para mais carregar a fisionomia do momento, circulavam nessa hora as notícias de um conflito entre marinheiros e praças do exército, havendo trocas de tiros. Apesar da brandura de modos com que os militares convidavam as pessoas do povo a se retirarem, apesar da completa absten­ção de atos de violência que tem caracterizado o sistema policial, enérgico, mas extraordinariamente prudente, do governo provisório, sentia-se ali como que uma atmosfera de vago terror, como se a calada da noite, a escu­ridão do lugar, a amplitude insondável da praça evacuada respirassem a presença de uma realidade formidável. Sentia-se todo aquele imenso ermo ocupado pela vontade poderosa da revolução. Em cima, o céu tristíssimo, povoado de nuvens crespas, muito densas, que um luar fraco bordava de transparências pálidas.

De vez em quando, das perspectivas de sombra, saía um rumor de vozes abafadas, logo feitas silêncio; de vez em quando, um rumor seco de bainhas de folha contra esporas e um estrépito de patas de cavalo, escarvando o cal­çamento, batendo a passos regulares, espalhando-se em estalado galope. Em geral, silêncio de morte.

Entre as poucas pessoas que, iludindo o consentimento da polícia, tinham conseguido ocultar-se em diversos sítios de observação, murmu­rava-se que não devia tardar o embarque do ex-imperador. Duas horas da madrugada, entretanto, tinham marcado os relógios das torres, e nada de novo dos lados do Paço viera agitar o solene sossego do largo.

Pouco antes dessa hora, houvera um grande movimento do lado do mar. Daí soara repentinamente um grito de alarma.

A notícia divulgada, de assaltos prováveis de gente da armada contra a tropa, assaltos que seriam razoavelmente favorecidos pelo negrume da noite, que subia do mar sobre o cais como uma muralha preta, furada apenas pela linha de pontos lúcidos da iluminação de Niterói, dava para impressionar de susto um grito perdido da sentinela. Houve um tropel de cavalos, e logo uma, duas, outra, outra, muitas detonações de espingarda, em desordenado tiroteio.

Nada havia de grave. Um indivíduo, que tentara embarcar-se contra a vontade da ronda, fora preso. Escapando às mãos da patrulha de infantaria que o prendera, tinha-se lançado ao mar para fugir nadando. Alguns solda­dos atiraram a esmo para assustá-lo, enquanto outros tomavam um bote, com o qual pegaram de novo o evadido.

Logo em seguida foi visto o preso passar, à luz dos lampiões, empurrado por guardas.

Houve quem supusesse que os tiros foram um sinal. Com efeito, tal qual se assim fosse, ouviu-se, pouco depois, no meio das trevas da baía, o rebate chocalhado da hélice de uma lancha a vapor. Uma pequena luz vermelha estrelou-se no escuro, diante do cais, e, ao fim de poucos momentos, ao lado do molhe de embarque do Pharoux, vinha cessar o barulho da hélice, com duas pancadas de um tímpano de bordo e a passagem de uma rápida som­bra flutuante sobre a sombra inquieta das águas.

– É a lancha do imperador! – pensaram os que viam, com a opressão natural que devia provocar aquele anúncio da iminência de um grande momento.

Bastante tempo se passou depois desse incidente, antes que de novo fosse alterada a monotonia do sossego da noite. A suspeita de que acabava de atracar a embarcação que devia receber o monarca deposto, a ansiedade de perceber o movimento significativo no portão do Paço prolongaram indefinidamente a duração dessa expectativa.

O profundo silêncio do lugar pareceu fazer-se maior, nessa ocasião, como se a noite compreendesse que se ia, ali mesmo, em poucos momen­tos, estrangular a última hora de um reinado. A tranquilidade que havia era lúgubre. Ouvia-se com certo estremecimento o barulho do morder de freios dos corcéis da cavalaria em recantos afastados. Frouxamente clare­ados pela iluminação urbana, as casas ao redor do largo, os edifícios públi­cos pareciam adormecidos. Nenhuma luz nas janelas, a não ser nos últimos andares de uma casa de saúde.

Apesar disso, que se acreditaria indicar a completa ausência de espectadores para a cena que se ia passar, algu­mas janelas abertas apareciam como retábulos negros, nas mais altas sacadas, e percebia-se uma agitação fácil de reco­nhecer nos peitoris escuros…

Pobre d. Pedro! Em homenagem à severidade da deter­minação do governo revolucionário, ninguém queria ter sido testemunha da misteriosa eliminação de um soberano.

Às três horas da madrugada, menos alguns minutos, entrou pela praça um rumor de carruagem. Para as bandas do Paço houve um ruidoso tumulto de armas e cavalos. As patru­lhas que passeavam de ronda retiraram-se todas a ocupar as entradas do largo, pelo meio do qual, através das árvores, iluminando sinistra­mente a solidão, perfilavam-se os postes melancólicos dos lampiões de gás. Apareceu, então, o préstito dos exilados.

Nada mais triste. Um coche negro, puxado a passo por dois cavalos, que se adiantavam de cabeça baixa, como se dormissem andando. À frente, duas senhoras de negro, a pé, cobertas de véus, como a buscar caminho para o triste veículo. Fechando a marcha, um grupo de cavaleiros, que a perspec­tiva noturna detalhava em negro perfil.

Divisavam-se vagamente, sobre o grupo, os penachos vermelhos das barretinas de cavalaria.

O vagaroso comboio atravessou em linha reta, do Paço, em direção ao molhe do cais Pharoux. Ao aproximar-se do cais, apresentaram-se alguns militares a cavalo, que formaram em caminho.

– É aqui o embarque? – perguntou timidamente uma das senhoras de preto aos militares. O cavaleiro, que parecia oficial, respondeu com um gesto largo de braço e uma atenciosa inclinação de corpo.

Por meio dos lampiões que ladeiam a entrada do molhe, passaram as senhoras. Seguiu-as o coche fechado.

Quase na extremidade do molhe, o carro parou e o sr. d. Pedro de Alcân­tara apeou-se – um vulto indistinto entre outros vultos distantes – para pisar pela última vez a terra da pátria.

Do posto de observação em que nos achávamos, com a dificuldade, ainda mais, da noite escura, não pudemos distinguir a cena do embarque.

Foi rápido, entretanto. Dentro de poucos minutos ouvia-se um ligeiro apito, ecoava no mar o rumor igual da hélice da lancha; reapareceria o cla­rão da iluminação interior do barco; e, sem que se pudesse distinguir nem um só dos passageiros, a toda a força de vapor, o ruído da hélice e o clarão vermelho afastavam-se da terra.

 

RAUL POMPÉA (1863-1895) teve vida curta e intensa. Em 32 anos, deixou um clássico da litera­tura brasileira, O Ateneu, e uma extensa obra jornalística que só seria reunida por Afrânio Couti­nho, em dez volumes, em 1981. Viveu em São Paulo e no Recife, mas fez carreira no Rio de Janeiro, cidade onde nasceu e se suicidou, em 1895. Dois anos mais tarde, foi homenageado como patrono da cadeira 33 da Academia Brasileira de Letras. Uma noite histórica foi publicado originalmente na Revista Sul-Americana (Rio de Janeiro, Ano i, n. 21, 15.11.18 89).

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