Despachando minha biblioteca

Despachando minha biblioteca

PAULO ROBERTO PIRES

Numa mesma semana, resolvi esvaziar estantes e encher o Kindle. Não foi premeditado, mas na medida em que desentulhava prateleiras e chão, muito chão, fui alimentando a maquininha como se ela fosse um tamagotchi faminto. Não me passa pela cabeça uma casa sem livros, mas é cada vez mais sedutora a ideia de uma casa com menos livros de papel e mais daqueles outros, que não viram playground de ácaros e não ocupam espaço.

É difícil acreditar, como os cybercretinos, que o horizonte virtual seja o terceiro segredo de Fátima do mundo editorial. Tão ruim ou pior só mesmo o saudosismo fetichista do papel, a conversa mole sobre a “magia” dos livros e o fascínio até pelo seu cheiro. É justamente porque gosto demasiado de livros que, se conseguir, quero ficar com os que considero realmente essenciais, por um motivo ou outro.

Entre a poeirama e a ascética lista de títulos armazenados no Kindle, me descobri uma espécie de bibliófilo de araque, já que nunca me importou uma primeira edição ou um exemplar autografado por quem quer que seja. O que me faz estocar florestas e mais florestas derrubadas e processadas é a pretensão besta de que um dia aquele volume comprado em 1985 e jamais lido poderia ser útil e essencial – hipótese difícil de justificar quando muitas vezes não tenho a menor suspeita de porque diabos este calhamaço ou aquele folheto foram parar ali.

Há quem sustente que livros, como coelhos, reproduzem-se rápido. Mas diferentemente dos leporídeos, afamados por serem breves porém animados, os livros são movidos pela nossa libido. Pois não é de outro lugar senão de nosso errático desejo, do súbito interesse por temas e autores, que eles nascem e vão chegando em casa, instalando-se em mesa de cabeceira, chão, cozinha e até em estantes. Se Montaigne que era Montaigne tinha pouco mais de mil livros, porque eu, que não escrevi nada perto de uma anotação à margem dos Ensaios, haveria de ter o quíntuplo disso?

A passional relação entre homens e livros é quase um subgênero literário, que tem como pequena obra-prima “Desempacotando minha biblioteca”. Neste ensaio de 1931, Walter Benjamin contempla seus livros desorganizados em mais uma parada de sua vida errante, logo depois da separação definitiva da mulher, Dora. Em cada volume, uma cidade em que viveu, um momento de sua acidentada biografia.

Reflexão sobre a função do colecionador, personagem tão presente em seus escritos, o ensaio faz a diferença fundamental entre livro e exemplar: o primeiro é a obra, imutável; o segundo, o que a faz viajar e, nessa viagem, vai carregando-a de sentidos particularíssimos. Condenado à “tensão dialética entre os polos da ordem e da desordem”, o colecionador estabelece “uma relação com as coisas que não põe em destaque seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas que as estuda e as ama como o palco, o cenário de seu destino”.

Mais de quarenta anos depois, o obsessivo Georges Perec penava para conseguir arrumar sua coleção. “Toda biblioteca atende a uma dupla necessidade que frequentemente é uma dupla mania: a de conservar determinadas coisas (os livros) e a de organizá-las de acordo com certas formas”, escreveu em “Breves notas sobre a arte e a forma de organizar seus livros”. No ensainho, que faz parte do livro Penser/Classer, o autor de A vida modo de usar defende a “desordem simpática” sobre uma ordem que se pretenda universal e a ideia de biblioteca como “um conjunto de livros constituído por um leitor não-profissional para seu prazer e uso cotidianos”.

Na última edição da serrotinha, lançada na Flip de 2012, Rodrigo Fresán comparava a mudança de casa a um trauma tão terrível quanto a morte de um ser querido ou um divórcio – só que tendo as caixas repletas de livros para piorar tudo. “A vida encaixotada”, título que dei ao diário do escritor argentino, tinha muito do meu trauma de uma mudança então recente, quando um dos carregadores, exasperados, resmungou para si mesmo (mas alto o suficiente para ter certeza que eu ouviria): “É isso aí, quem sabe lê. Quem não sabe carrega”.

Ao longo de seu diário, Fresán compra mais e mais livros, alguns repetidos pelo simples gosto de uma nova edição, o que, confesso, tornou sua releitura neste momento particularmente perniciosa para o processo de desintoxicação a que tento me submeter.

Prefiro, portanto, me inspirar em Joseph Epstein, que numa reforma de casa impôs sua biblioteca a um expurgo draconiano – reduzi-la de dois mil para cerca de quatrocentos volumes – relatado no ensaio pessoal “Livros não mobiliariam um cômodo”. Epstein diverte-se, na verdade, de fazer com os livros, concretamente, o que faz com autores ao longo de sua carreira: reiterar suas devoções mais fervorosas – Proust, Henry James, Max Beerbohm, Edward Gibbon e George Santayana, cabendo todos em uma prateleira – e, com o mesmo fervor, destruir unanimidades, ou melhor, expulsar de casa livros dos quais muita gente só abriria mão com dificuldade.

Bernard Shaw, por exemplo, foi posto no olho da rua. De teatro, restaram as peças “dos três caras de Atenas” e as do “camarada calvo e de testa alta daquela cidadezinha à beira do rio na Inglaterra”. Epstein diz não ter sentido a “mínima fibrilação” quando mandou passear Walter Benjamin e Robert Musil. Assim como ao despachar Isaiah Berlin. Lamenta, inclusive, não ter em casa os teóricos franceses da literatura e, por isso, ser privado do prazer de jogá-los fora.

Mas eis que relendo o ensaio de Epstein, cheio de coragem e decisão, descobri que ele decidiu reter uma biografia de Montaigne por Donald Frame. Um clássico. Que eu não conhecia. E que não existe em digital. Foi só uma consulta à Amazon. A um sebo inglês. Que já botou no correio o livro. Mas até ele cruzar o Atlântico, tenho o firme compromisso de doar mais uns dez livros. Ou quatro.

28 respostas para Despachando minha biblioteca

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