A ensaificação de tudo – por Christy Wampole

A ensaificação de tudo
por Christy Wampole

 Michel de Montaigne

É notável que, nos últimos tempos, uma série de artigos e livros venha abordando o ensaio como uma forma literária flexível e mais humana. Dentre aqueles, estão “The Wayward Essay”, uma resenha de livros de ensaios, e as reflexões de Phillip Lopate sobre a relação entre ensaio e dúvida; dentre estes se destacam Como viver, de Sarah Bakewell, elegante retrato de Montaigne, o patriarca do gênero no século XVI, e a antologia Essayists on the Essay: Montaigne to Our Time, organizada por Carl H. Klaus e Ned Stuckey-French.

É como se, mesmo diante da proliferação de novas formas de comunicação e escrita, o ensaio tivesse se transformado num talismã de nosso tempo. O que explica nossa atração por ele? Teria o ensaio propriedades terapêuticas? Será porque ele proporciona delicados prazeres para seu autor e leitor? Ou porque ele é pequeno o suficiente para caber no bolso, portátil como nossas próprias experiências?

Acredito que a longevidade do ensaio hoje se deva principalmente a este fato: o gênero e seu espírito são uma alternativa ao pensamento dogmático que domina grande parte da vida política e social na America contemporânea. Na verdade, eu defendo uma aplicação consciente e mais reflexiva do espírito do ensaio a todos os aspectos da vida como uma resistência à zelosa limitação das cabeças fechadas. A esta aplicação chamarei “ensaificação de tudo”.

O que quero dizer com essa expressão?

Comecemos pela origem do gênero. Essai, a palavra que Michel de Montaigne escolheu para descrever suas ruminações em prosa publicadas em 1580, significava naquele tempo simplesmente “tentativa”, uma vez que o gênero literário ainda não havia sido codificado. Esta etimologia é significativa, pois aponta para a natureza experimental da escrita ensaística: envolve o processo nuançado  de tentar produzir algo. Mais tarde, no final do século 16, Francis Bacon importou o termo para o inglês como título de sua prosa mais quadrada e solene. Foi então selado o acordo: o que eles faziam era ensaio e assim continuaria a ser chamado. Havia apenas um problema: a discrepância em estilo e substância entre os textos de Michel e Francis era, como o Canal da Mancha que os separava, profunda o suficiente para que alguém se afogasse. Sempre torci pelo Time Michel, aquele cara que provavelmente perderia as estribeiras, te contaria umas piadas pesadas e perguntaria o que você acha da morte. Imagino, talvez equivocadamente, que o Time Francis tenda a atrair uns torcedores mais pretensiosos e empertigados, com frases como “Aquele que tem mulher e filhos entregou reféns ao destino; é que eles são um obstáculo aos grandes empreendimentos” e outros babilaques.

Diante de progenitores tão díspares, o ensaio nunca se recuperou de sua indecidibilidade crônica. Enquanto gênero surgido para acomodar as necessidades de expressão do Homem da Renascença, o ensaio tem que lançar mão de todas as ferramentas e habilidades disponíveis. O ensaísta sampleia mais do que um DJ: um loop de épico aqui, um curto replay da voz ali, um break polivocal e citações de um passado glorioso, tudo isso encimado por um scratch bem pessoal.

Certamente não há um consenso em torno da questão hesitante sobre o que pode ou não ser considerado ensaio. Para cada regra que consigo estabelecer para o ensaio, geralmente surge uma dúzia de exceções. Recentemente dei um curso sobre o tema na pós-graduação. No fim das aulas, todos nós, armados com nossa panóplia de teorias canônicas sobre o ensaio e nossas próprias conjecturas, fomos forçados a admitir que, diante da pergunta “O que podemos dizer sobre o ensaio com absoluta certeza?”, nossa resposta é: “Quase nada”. Esta é, no entanto, a força do ensaio: ele o leva a encarar aquilo sobre o que não se pode ter certeza. Ele exige que você esteja confortável com a ambivalência.

Quando digo “ensaio”, falo de uma prosa de não-ficção curta, com um tema meditativo em seu centro e uma tendência a se afastar da certeza. Muito do que hoje se considera “ensaio” ou “parecido com ensaio” é tudo menos ensaio. Estes textos incluem o tipo de escrita esperado em provas de acesso à universidade, em papers, dissertações, na crítica profissional e em outras formas acadêmicas; ou são ainda textos politicamente engajados ou outras formas peremptórias que insistem em seus argumentos e não dão espaço para a incerteza; ou outras formas breves de prosa em que a subjetividade do autor é propositalmente apagada ou disfarçada. O que estes textos têm em comum é, em primeiro lugar, o ocultamento consciente do “eu” sob o manto de objetividade. Pretende-se que as opiniões e conclusões de alguém tenham emanado de uma espécie de departamento da mais alta verdade, um escritório chefiado pelo rigor e pela ciência.

Em segundo lugar, estes textos não têm nada de experimental: eles sabem o que querem dizer antes de começar, constroem furtivamente seu ponto de vista, antecipando qualquer objeção, almejando o hermetismo. Estes textos não são tentativas, são obstinações. São fortalezas. Ao deixar o leitor de fora desta espécie de encontro no texto, o autor deixa claro que ele, o leitor, deve se conformar em beber sozinho.

Mas o que talvez seja mais interessante sobre o ensaio é o que acontece quando ele não pode ser contido em suas fronteiras genéricas, transbordando da prosa breve para outros formatos, como, por exemplo, o romance ensaístico, o filme-ensaio, a fotografia-ensaio e até mesmo para a vida em si. Emseu romance inacabado, O homem sem qualidades, Robert Musil, o escritor austríaco do início do século 20, cunha um termo para este transbordamento. Ele o chama de “ensaísmo” (Essayismus em alemão) e, aqueles que o praticam, de “possibilitários” (Möglichkeitsmenschen). Este comportamento é definido pela contingência e pela digressão, seguindo este ou aquele caminho que se bifurca, vivendo a vida sem uma ambição específica: não se trata de descobrir, conquistar ou provar alguma coisa, mas simplesmente experimentar.

O possibilitário é um virtuose do hipotético. Thomas Harrison, um de meus orientadores, escreveu um belo livro sobre o tema. Em Essayism: Conrad, Musil and Pirandello, ele observa que o ensaísmo descrito por Musil era uma “solução na ausência de uma solução”, uma espécie de resposta à precariedade da Europa ao longo dos anos em que o escritor trabalhou em sua obra-prima inconclusa. Eu diria que muitos de nós na América de hoje cultivamos esta inclinação para o ensaísmo sob diversos disfarces, mas sempre no espírito de uma cabeça fechada e com sérias reservas em se comprometer, seja lá com o que for.

O ensaísmo consiste em um egoísmo em relação à vida, exercitando o que Theodor Adorno chama de “a intenção tateante do ensaio”, abordando tudo de forma experimental e com pouca atenção, fazendo analogias entre o particular e o universal. Fenômenos banais e cotidianos – aquilo que comemos, coisas com que topamos, coisas que postamos no Pinterest – se acotovelam implicitamente com as Grandes Questões:  quais são as implicações da experiência humana? Qual o sentido da vida? Por que existe algo ao invés de nada? Assim como o Pai do Ensaio, deixamos a cabeça e o corpo pular de coisa em coisa, navegando de um hiperlink mental para o outro: se Montaigne fosse vivo, talvez ele também fosse diagnosticado com transtorno de déficit de atenção.

O ensaísta está interessando em pensar sobre si mesmo pensando sobre as coisas. Acreditamos na grande importância de nossas opiniões sobre tudo, de política à pizzaria. O que explica nossa generosidade em oferecê-las a completos estranhos. E assim como a cultura do faça-você-mesmo encontra hoje sua linguagem própria, podemos reconhecê-la no preceito de Arthur Benson, de 1922, segundo o qual “um ensaio é uma coisa que alguém faz por conta própria”.

Em italiano, a palavra para ensaio é saggio e tem a mesma raiz do termo assaggiare, que significa provar, experimentar ou beliscar comida. Hoje nós gostamos de provar, experimentar ou beliscar experiências: encontros amorosos marcados na Internet, encontros de speed dating, compras online e consumo “buy-and-try”, mash-ups e samples digitais, a garantia do dinheiro de volta, a tatuagem temporária, o test-drive, o shareware. Se você não estiver satisfeito com seu produto, sua escrita, seu marido, você pode devolvê-lo/deletá-lo/divorciar-se. O ensaio, como muitos de nós, é notoriamente avesso a se comprometer.

Não estou dizendo, é claro, que ninguém se comprometa nos dias de hoje; bastam poucos momentos de exposição ao discurso político americano contemporâneo para entender a extensão do comprometimento dogmático com este ou aquele partido, com esta ou aquela plataforma. No entanto, a certeza com que os dogmáticos fazem seus pronunciamentos parece para muitos cada vez mais um enfadonho vestígio do passado. Podemos nos aferrar a categorias em dissolução ou deixar que a ambivalência nos inunde, permitindo que sua maré nos conduza para novas configurações da vida que seriam inconcebíveis há apenas 20 anos. Quando imaginado como uma visão construtiva da existência, o ensaísmo é uma espécie de capa conscientemente atada sobre o mundo.

O ensaísmo pressupõe pelo menos três coisas: estabilidade pessoal, estabilidade tecnocrática e instabilidade social.

Montaigne certamente tinha a primeira. Cresceu em uma família privilegiada, aprendeu latim antes do francês e teve meios educacionais, financeiros e sociais para levar uma vida de engajamento cívico e literário. Ainda que a maioria de nós provavelmente não tenha sido fluente em latim quando criança (e nem chegue a ser um dia) e não tenha a qualificação para ser um funcionário de alto escalão, vivemos hoje em um mundo com um índice relativamente alto de alfabetização e um nível de acesso sem precedentes a tecnologias de comunicação e reservas de conhecimento. Além do mais, como uma espécie de contra-narrativa ao nosso suposto estado de atarefação, há indícios de que tenhamos em mãos um considerável tempo ocioso. Apesar de buscarmos qualquer tipo de distração, estas horas desocupadas nos dão tempo para contemplar as dificuldades da vida contemporânea. Uma vez encontrados os meios favoráveis, as ideias simplesmente fluem.

No que diz respeito à tecnocracia, o amadurecimento da cultura impressa durante o Renascimento possibilitou que os grandes textos da Antiguidade e outras novidades filosóficas, literárias e científicas alcançassem um público mais amplo, ainda que formado principalmente pelos mais privilegiados. Os especialistas em ciência e tecnologia daquela época foram os condutores de parte do poder até então monopolizado pela Igreja e pela Coroa. Pode-se fazer uma analogia com os dias de hoje, quando o Silicon Valley e todo um universo de negócios tecnocrático acaba forçando a Igreja e o Estado a dividir parte de seu poder cultural. É nestas condições que o ensaio prospera.

Quanto à instabilidade social, a vida fora do castelo de Montaigne não era um mar de rosas: as guerras religiosas entre católicos e protestantes grassavam na França desde a década de 1560. Tumulto e incerteza, dogmatismo e sangue: tais circunstâncias podem levar à reflexão sobre o sentido da vida, mas às vezes é difícil demais encarar este tipo de questão. Em vez disso, há quem prefira refletir obliquamente, divagando sobre as pequenas coisas que constituem a experiência humana. Hoje, questões ainda não resolvidas de classe, raça, gênero, orientação sexual, filiação política e de outros tipos criaram uma dinâmica social volátil que, impulsionada pela atual instabilidade econômica, faz parecer arriscado a muitos de nós o engajamento sincero em uma ideia ou empreendimentoem particular. Finalmente, as sangrentas guerras de religião e ideologia continuam a se espalhar em nossa época. No início do século 20, quando o escritor francês André Malraux previu que o século 21 seria um século de renovado misticismo, ele talvez não tenha imaginado que a busca de Deus assumiria uma forma política de tamanha volatilidade.

O ensaísmo, como uma forma de expressão e um estilo de vida, acomoda nossas inseguranças, nosso egoísmo, nossos prazeres simples, nossas questões mais sensíveis e a necessidade de comparar e dividir nossas experiências com outras pessoas. Eu argumentaria que o elemento mais fraco no ensaísmo não-textual de hoje é sua deficiência meditativa. Sem o aspecto meditativo, o ensaísmo tende ao egotismo vazio e à falta de vontade ou à incapacidade de comprometimento, um tímido adiamento do momento de escolha. Nossa rapidez, frequentemente irrefletida, significa que pouco tempo é gasto interrogando coisas que nos tocaram. As experiências são vividas e depois abandonadas. O verdadeiro ensaísta prefere uma abordagem mais cumulativa; jamais algo é realmente descartado, apenas posto de lado temporariamente até que sua mente digressiva convoque-o de novo, use-o desta forma e a uma luz diferente, vendo que sentido ele assume. O ensaísta oferece um modelo de humanismo que nada tem a ver com lucro ou progresso e não propõe uma solução para a vida, mas antes formula incontáveis perguntas.

Temos que dar uma resposta convincente ao renovado dogmatismo da paisagem política e social. Nossa atração intuitiva pelo ensaio talvez esteja nos conduzindo em direção a ele e seu espírito como uma solução provisória. Esta tendência ensaística de hoje – uma série de tentativas frequentemente superficiais e destituídas de pensamento – não faz jus à sua corrente iteração. Uma versão à la Montaigne, mais meditativa e calculada,  nos empurraria para uma percepção da vida mais tranquila, livre do reflexo instintivo de estar inabalavelmente certo. A ensaificação de tudo significa transformar a vida em si em uma prolongada tentativa.

O ensaio, como este aqui, é uma forma de experimentar o que até agora não foi tentado. Seu espírito resiste ao pensamento hierárquico e finalista e encoraja tanto o escritor quanto o leitor a adiar seu veredito sobre a vida. Trata-se de um convite a manter a elasticidade da mente e sentir-se confortável com a ambivalência inerente ao mundo. E, o mais importante, é um ensaio imaginativo daquilo que não é, mas poderia ser.

 

Christy Wampole é professora-assistente de língua francesa na Universidade de Princeton. Sua pesquisa tem como principal foco a literatura e o pensamento francês e italiano dos séculos XX e XXI. “The essayification of everything” foi publicado originalmente no blog Opinionator, do The New York Times, em 26 de maio de 2013. 

 

Tradução de Paulo Roberto Pires

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