O ensaio e sua prosa

O ensaio e sua prosa 

MAX BENSE

 

Que ninguém se admire ao ver um lógico a ponto de dizer duas ou três coisas sobre as questões mais sutis da prosa, sua forma e seu estilo – duas ou três coisas que se costuma ouvir apenas da parte de críticos ou mestres da criação lite­rária. Parece-me que é chegada a hora de examinar, tanto ao espelho do esprit géométrique como ao espelho do esprit de finesse, os elementos e os resultados do gosto literário e poético. Podemos nos valer das ideias de Pascal para traçar distinções precisas no domínio verbal e chegar a uma com­preensão de certas formas características. Não seria bom que os poetas e os escritores se exprimissem de vez em quando sobre seu material, suas criações, sobre prosa, poesia, frag­mentos, versos e frases? Creio que daí poderia surgir uma teoria respeitável, no âmbito da qual o processo estético se apresentaria não apenas como fruto da criação, mas tam­bém como fruto da reflexão sobre a criação. Além do mais, tal teoria teria a vantagem de ser de origem ao mesmo tempo racional e empírica. 

Assim, bem podemos perguntar em linhas muito amplas: o que distinguiria uma passagem de prosa pura de uma de poesia pura? Como Sulzer já demonstrou, o verso por si só é insuficiente como fronteira entre uma e outra. A constatação é esclarecedora, mas, dito isto, é só com grande esforço que consigo acompanhar, ao longo das obras literárias, o traço sutil da transição contínua da poesia à prosa. Podemos tentar capturar a perfeição íntima disso que ora chama­mos de prosa, ora de poesia, definindo a prosa como uma espécie de poesia generalizada. Desse ponto de vista, o ritmo e a métrica, que caracterizam toda poesia, se transfeririam em suave continuidade para os períodos bem articulados e para as cesuras bem cortadas do estilo prosaico; a ser assim, aquilo que Lessing chamou, numa fór­mula tão bela, de “discurso sensível levado à perfeição” [vollkommene sinnliche Rede] se metamorfosearia na ordem de uma prosa que atinge sua densidade máxima e seu auge clássico nos fragmentos de Pascal, nos discursos de Galileu, nas meditações de Descartes, nos romances de Goethe e na metafísica de Hegel – ao mesmo tempo que neles atinge os limites da dispersão do fenômeno prosaico. Con­cluo que, em última instância, o poeta não pode ser compreendido senão a partir da poesia, assim como o escritor não pode sê-lo senão a partir da prosa; uma e outra exigem alguns comentários, antes que eu chegue a meu objeto propriamente dito. 

O intelectual é ou bem um criador ou bem um educador. Ou bem cria uma obra ou bem defende uma convicção. Para a obra, o tempo é indiferente; para a convicção, não. Há uma diferença essencial entre o poeta e o escritor; num sentido ontológico, o poeta acrescenta ao ser [das Sein vermehrt], ao passo que o escritor, por obra de suas convicções, tenta manipular a essência do ser, tenta fazer valer o espírito concreto que ele representa. 

Estou convicto de que a criação é uma categoria estética, ao passo que a convicção tem na ética o seu lugar natural, o que confere a cada qual uma autonomia ontológica. A arte interessa por suas cria­ções, e todo estado estético produzido pela arte constitui uma apro­ximação ao ato de criação de um ser; por sua vez, o estado ético (em todos os seus graus, da convicção à revolução, da cultura à superação da mesma) está sempre às voltas com a essência desse ser [das Wesen dieses Seins]. A poesia consumada é expressão de um estado estético, ao passo que a prosa magistral trai sua origem ética. Portanto, a distin­ção sutil entre o estilo estético e o estilo ético (que se espelha na dife­rença entre o estilo idealmente poético e um estilo idealmente épico) é sempre uma distinção qualitativa entre modalidades, a despeito das sabidas transições entre uma e outra. 

O escritor se volta para um espaço mais limitado e pacífico que o do poeta, mas nem por isso seu olhar é de comunhão ou meditação, ao contrário: ele é seletivo, imperativo, destrutivo, construtivo, inquieto. Só o escritor movido por uma convicção pode igualmente ser cientista, filósofo, crítico político ou religioso. Talvez seja preciso ter deixado para trás o prazer profundo da criação pura para substituir o canto pela vontade, pela meta ardorosamente perseguida. A mira posta no leitor desvia o escritor da criação, assim como a mira na utilidade des­via a ciência da verdade intocável. A paixão sem peias que responde pela criação da obra não se comunica facilmente com a vontade sem peias do espírito que representa uma convicção. A história das ideias nos ensina que o intelectual, o representante de uma convicção, ganha influência e se faz necessário nas épocas difíceis. A constatação beira o supérfluo. Ao contrário da prosa, a compreensão da poesia depende menos do contexto de época. Nesse sentido preciso, Lessing, Herder, Kierkegaard, Marx e Nietzsche são grandes escritores, interessados e empenhados no trabalho de tornar visível a essência humana. Hoje em dia, pertencem a essa mesma categoria autores como Gide, Sartre e Camus, na França, ou Unamuno e Ortega, na Espanha, ou ainda Gottfried Benn, Ernst Jünger, Walter Benjamin, Theodor Haecker e Karl Kraus, no âmbito da língua alemã. 

Ora, pode-se observar nesses mesmos escritores uma peculiar coincidência de convicção e criação. Esses autores são todos casos intermediários, no sentido mais genuíno da palavra. Em sua criação reside inegavelmente a poesia, mas a expressão, a forma como a cria­ção se dá e se apresenta, é da ordem do argumento porfiado – não do argumento fundado no páthos ou na demonstração cabal e gran­diosa, mas do argumento que se articula discretamente, por meio da repetição incansável. Tal prosa lança luz e vida sobre os objetos de que ela fala e que ela gostaria de dar a conhecer; ao mesmo tempo, ela fala sobre si mesma, ela se dá a conhecer como expressão autên­tica do espírito. É característico que esse modo de proceder se intro­duza mesmo nas construções verbais. As convicções estão embuti­das na expressão do pensamento, que procede por meio de signos; no todo, a prosa se mostra como uma configuração de palavras, ela manipula signos e os associa a determinadas construções, períodos, passagens, em cujo âmbito devem se manifestar certos conteúdos determinados; ela respira o ar da mais estrita precisão, mas, ao fim e ao cabo, é apenas criptorracional. Ela oculta sua própria raciona­lidade. Por quê? Porque ela não quer ser pura convicção, porque ela ainda é poesia, porque ela só se remata no afã por uma criação sem mácula. Não pode ser de outra maneira quando se persegue uma meta ditada não apenas pela intenção, mas também pela forma, quando não apenas o conhecimento, mas também sua expressão e comunicação põem em movimento a vontade do autor – e o fazem a tal ponto que não será de admirar que a vontade vá mesmo “além do espírito”, para dizê-lo nos termos da censura cartesiana. Em si e para si, a vontade literária é dominada pela razão, mas aqui a razão deve se ocultar, por amor à forma, que é da ordem do estético; de outro modo, ganharia evidência demais o aspecto ético, que não deve ser exclusivo, em que pese a adesão do autor aos pensamentos proclamados. Dito em outras palavras: a intenção de educar e influenciar por meio da forma introduz no espaço estético a repe­tição, a manipulação de signos, o cálculo, mas a impres­são de racionalidade que assim se cria apenas simula o projeto ético, que deve permanecer oculto. Donde uma questão essencial: uma convicção derivada de meras formas estéticas é capaz de se fazer valer a longo prazo? A convicção não é sempre ideia, conteúdo? O problema das formas é um problema de abstração estética, e há sempre um ponto em que a abstração se converte no mais concreto dos atos. Uma vez que, por natureza, a convicção é manifestação de uma vontade que vincula a ideia à vida, a convicção é sempre um fenômeno exis­tencial. Se for autêntica, ela não tem como suprimir esse seu momento existencial, e é por isso que sempre chega o ponto em que uma convicção – mesmo uma convic­ção estética – adentra o estado ético. 

Podemos então admitir que entre a poesia e a prosa, entre o estado estético da criação e o estado ético da convicção, há um terreno intermediário que é digno de nota. De aspecto iridescente, oscilando numa ambi­valência entre a criação e a convicção, ele se fixa na forma literária do ensaio. E com isso chegamos a nosso objeto. O ensaio é uma peça de realidade em prosa que não perde de vista a poesia. Ensaio significa tentativa. Podemos bem nos perguntar se a expressão deve ser entendida no sentido de que aqui está se tentando escrever sobre alguma coisa – isto é, no mesmo sentido em que falamos das ações do espírito e da mão – ou se o ato de escrever sobre um objeto total ou parcial­mente determinado se reveste aqui do caráter de um experimento. Pode ser que ambos os sentidos sejam ver­dadeiros. O ensaio é expressão do modo experimental de pensar e agir, mas é igualmente expressão daquela atividade do espírito que tenta conferir contorno pre­ciso a um objeto, dar-lhe realidade e ser [Sein]. Nem os objetos nem os pensamentos a seu respeito se dão em âmbito eterno ou absoluto, uns e outros se mostram como objetos relativos e pensamentos relativos. Por isso mesmo, o ensaio não chega a formular leis; contudo, seus objetos e pensamentos vão se orde­nando lentamente, de modo tal que podem um dia vir a ser tema de teoria. Todo físico sabe que o experimento conduzido sobre um caso particular pode servir para a dedução de uma teoria, de certas leis; da mesma maneira, o ensaio prepara substratos, ideias, sentimentos e formas de expressão que algum dia virão a se tornar prosa ou poesia, convicção ou criação. O ensaio significa, nesse sentido, uma forma de literatura experimental, do mesmo modo que se fala de física experi­mental em contraposição à física teórica. Por isso, o ensaio não se con­funde com a tese ou o tratado. Escreve ensaisticamente quem tenta capturar seu objeto por via experimental, quem descobre ou inventa seu objeto no ato mesmo de escrever, dar forma, comunicar, quem interroga, apalpa, prova, ilumina e aponta tudo o que pode se dar a ver sob as condições manuais e intelectuais do autor. O ensaio busca apreender um objeto abstrato ou concreto, literário ou não literário, tal como ele se dá nas condições criadas pela escrita. 

Deve-se entender por procedimento experimental a tentativa de extrair uma ideia, um pensamento, uma imagem abrangente a par­tir de certa massa de experiências, considerações e reflexões. O autor fareja uma verdade, sem contudo tê-la em mãos; o autor vai fechando o círculo em torno delas por meio de sucessivas conclusões, fórmulas verbais ou mesmo reflexões digressivas que descobrem lacunas, con­tornos, cernes, conteúdos. A prosa que nasce daí não é transparente como uma teoria. No melhor dos casos, vamos ao encontro da gênese de uma teoria, presenciamos um nascimento e não nos livramos da impressão de que o processo criativo em alguma medida impede a visão unitária do todo. A mestria consumada no ensaio consistiria, pois, em levar o procedimento experimental encarnado na expres­são verbal às raias do teórico, até o limite em que começa uma outra espécie de prosa – a teoria. 

Desse modo, a reprodução linguística do pensamento experi­mental ou bem representa a gênese de um pensamento ou bem põe à prova a verdade desse pensamento num determinado contexto. Assim sendo, o ensaio pode ser visto como conclusão ou origem de uma ordem de pensamentos. E o ensaio tem sempre o caráter de uma prova, de uma prova que procede por meio de experimentos, tenta­tivas – portanto, não uma prova de caráter dedutivo, mas uma prova de caráter experimental, ensaístico, pragmático. É claro que, assim como acontece com a capacidade de dedução, a capacidade de condu­zir experimentos com ideias demanda um aprendizado prévio. Não basta escrever um punhado de poemas para ser ensaísta. É preciso ter ideias para escrever um ensaio, mas de nada serve entregar-se ao ecle­tismo das ideias. É preciso ter uma ideia de partida, a cujo nascimento estivemos presentes, para que se possa fazer experimentos com sua verdade; o sentimento, por si só, não basta. 

Nesse sentido preciso, o ensaio é também um modo de comuni­cação experimental, de modo que deixa de depender formalmente do conteúdo de seus objetos: ele é o resultado de uma combinação dos contornos e dos contrastes desses objetos. O ensaio tem o direito formal de se valer de todos os meios de construção racional e emo­cional, bem como de todos os meios de comunicação racional e existencial – da reflexão, da meditação, da dedução, da descrição –; pode lançar mão tanto de metáforas como de sinais abstratos, da dúvida como da prova, da destruição como da provocação; tem o direito de levar uma tese ao extremo teórico, como pode também encobri-la para ganhar em concretude; a óptica perspectivística e a mecânica da montagem formam o aparato tecnológico dessa arte do experimento. 

É claro que em todo ensaio ocorrem belas frases, que são como que seu germe, sua origem. É por essas frases que se sabe que essa prosa não tem fronteira fixa em relação à poesia. Essas frases elementares per­tencem tanto à poesia como à prosa, são momentos de “discurso sen­sível levado à perfeição”, momentos de um corpo linguístico que nos comove como se fosse a própria natureza, ao mesmo tempo em que são momentos de um raciocínio aguçado, de uma dedução rema­tada que nos comove como uma ideia platônica. Devemos aprender a ler nessas duas línguas se quisermos chegar a fruir plenamente de um ensaio… Caso contrário, acabamos por converter o ensaio numa sequência de aforismos, cada qual contendo um pensamento levado ao extremo, como se pode observar em Lichtenberg, Novalis ou Goethe – ou, senão, numa sequência de imagens poetizadas que, à maneira das Iluminações de Rimbaud, coligem os membros dispersos de uma “poesia infinita” levada quase à perfeição. 

Chegamos a um novo momento de definição. Não salta aos olhos que todos os grandes ensaístas foram também críticos? Não salta aos olhos que todas as épocas marcadas pelo ensaio foram também, essen­cialmente, épocas críticas? O que isso quer dizer? 

Avancemos por partes. Na França, o ensaio desenvolveu-se a partir do trabalho crítico de Montaigne. Suas indicações sobre como viver e morrer, pensar e trabalhar, desfrutar e penar são obra de um espírito crítico. O elemento em que se move sua reflexão é aquele dos grandes moralistas e céticos franceses. Montaigne é um espírito fundador, o iniciador de uma tradição crítica que determinou intei­ramente os séculos 17 e 18. Há uma linhagem que leva de Montaigne a Gide, Valéry e Camus. Na Inglaterra, coube a Bacon desenvolver o ensaio; todos os seus ensaios comportam uma segunda intenção, que pode ser astuciosa, moralista, cética, iluminista – em suma, crí­tica. No fundo, foi ele que suscitou autores como Swift, Defoe, Hume, W.G. Hamilton, De Quincey e Chesterton, para não falar de modernos como Poe, Bertrand Russell, A.N. Whitehead, T.S. Eliot, Strachey, e assim por diante. Na Alemanha, pode-se assistir como Lessing, Möser e Herder a um só tempo inauguram e dominam a nossa forma de literatura experimental. No caso de Herder, sobretudo nas inesgotáveis Cartas sobre o progresso da humanidade, que certamente constituem a mais sig­nificativa reunião de ensaios clássicos; é bem sabida a abundância de ideias críticas contidas neles. Friedrich Schlegel – ele mesmo um mestre da crítica e do ensaio – caracteriza Herder como o tipo puro do crítico e vê nele um protestante no sentido mais vasto do termo; Adam Müller, por sua vez, aponta Lessing e sua conferência sobre o surgimento da crítica alemã como uma fonte decisiva. Já mencionamos Dilthey, Nietzsche, Ortega y Gasset. A eles, seguem-se os mais jovens: Gottfried Benn, oriundo do expressionismo; Hofmiller, o crítico literá­rio; Karl Hillebrand, que sabia partir do momento con­temporâneo para chegar a uma visada analítica; Ernst Jünger, cujos ensaios conduzem experiências no tom sereno, meio cínico, meio cético, de um Montaigne; o precocemente falecido Eugen Gottlob Winkler, crítico de Jünger e de Stefan George; Rudolf Kassner, o incan­sável, sempre disposto a sublinhar, naquele seu tom ligeiramente velhusco, as vantagens históricas da inteli­gência analítica; Walter Benjamin e sua prosa grandiosa, rítmica, feita de imagens claras e reflexos perturbado­res (basta citar dois exemplos, “Infância berlinense” eSobre alguns motivos em Baudelaire”, em que a atmos­fera [Stimmung] e a racionalidade são mantidas separa­das, e um terceiro, “Rua de mão única”, em que uma e outra se confundem); Thomas Mann, cujos perío dos longos vertem a essência do épico no âmbito do ensaio, e isso num leque temático que compreende arte, história, psicologia e política; e finalmente os ensaístas austríacos, de Kürenberger e Speidel a Karl Kraus, Hofmannsthal e Stößl – este último chegou mesmo a consagrar ao gênero uma espécie de teoria, segundo a qual o “instintual” e o “consciente” se equilibram “harmoniosamente” no interior do ensaio. 

O ensaio nasce da essência crítica de nosso espírito; seu prazer em experimentar deriva simplesmente de uma necessidade do seu modo de ser, do seu método. Para dizê-lo de forma mais ampla: o ensaio é a forma da categoria crítica do nosso espírito. Pois quem critica deve também, e necessariamente, conduzir um experimento, deve criar condições sob as quais um objeto se mostra a uma nova luz, deve tes­tar a força ou a fragilidade do objeto – e é por isso que o crítico sub­mete seus objetos a ínfimas variações. Se pedíssemos a um crítico lite­rário que estipulasse certas leis e preceitos para a crítica à imagem do que as velhas poéticas faziam para outros gêneros literários, ele decla­raria que em toda boa crítica vige a lei que conserva a variação mínima do objeto – variação que intervém justamente ali onde a grandeza ou a miséria do objeto literário se tornam plenamente visíveis. O ensaísta trabalha sob a mesma lei, ela define o método de sua experimentação. Nesse sentido, o ensaio comporta tudo o que pertence à categoria do espírito crítico: a sátira, a ironia, o cinismo, o ceticismo, a argumenta­ção, o nivelamento, a caricatura, e assim por diante. Ao privilegiar a forma literária do ensaio, o crítico se instala naquele terreno interme­diário entre o estado ético, de um lado, e o estado estético-criativo, de outro; não pertence a nenhum dos dois, seu lugar é essa zona interme­diária, o que, de um ponto de vista sociológico, significa que ele se situa entre as classes e entre as épocas, que ele encontra seus confrades ali onde se preparam as revoluções (explícitas ou silenciosas), as resistên­cias, as subversões. 

Já dissemos o que se alcança por meio do ensaio. Mas o que se torna visível por meio dele? A prática ensaística torna visíveis os contornos de uma coisa, os contornos de seu ser interior e exterior, os contornos do “ser-assim” do objeto. Mas os contornos que se desenham assim não cor­respondem a um limite, a uma fronteira substancial – ao menos não necessariamente. Em si mesmo, o experimento ensaístico independe da substância e pode até conviver com certa heterogeneidade desta; à maneira de uma sequência de aforismos, por exemplo, não é preciso ordenar tudo segundo princípios, sistemas, deduções. Não estamos sugerindo, porém, um parentesco entre o ensaio e o aforismo. As duas formas diferem quanto à amplitude, à densidade, ao estilo e ao fim: de um lado, reina a fórmula aguçada; de outro, reina ainda o épico. Só pode ser esse o sentido da declaração de Hofmiller, para quem o ensaio não tem como ser científico: ali onde a ciência se apresenta como suma, sistema axiomático-dedutivo operando num âmbito objetivo bem definido, o ensaio não é possível. Mas, na medida em que toda ciência fixa para si uma objetividade e faz dela um tema de reflexão crítica, o ensaio científico conserva a sua razão de ser. Há exemplos suficientes na Alemanha, na França e na Inglaterra. Vale citar o ensaio de Goethe sobre o granito. Max Weber, uma das últimas grandes cabeças cientí­ficas a cultivar o grande estilo, deu-nos dois exemplos desse ensaísmo de espírito científico em suas conferências sobre a “Política como vocação” e a “Ciência como vocação”. Da mesma forma, os ensaios de Werner Heisenberg sobre “O desenvolvimento da mecânica quântica” e “As transformações dos fundamentos das ciências naturais” são exem­plos modelares da prosa científica em alemão. Osensaios históricos de Strachey, por sua vez, ilustram a arte anglo-saxã de experimentação lite­rária aplicada ao domínio da ciência. Tal enumeração permite entender por que, em vez de uma distinção entre ensaio científico e ensaio literá­rio, preferimos distinguir entre o espiritual [schöngeistig] e o perspicaz [feingeistig]. O ensaísmo espiritual aborda um tema estranho ao âmbito científico; a reflexão, muitas vezes digressiva, intuitiva e irracional, não deixa de ter clareza, mas essa não é a clareza da definição conceitual, e sim a de um olhar que atravessa o espaço poético ou intelectualem pauta. O ensaísmo perspicaz, fruto de um esforço de definição e axio­matização aplicado a um objeto mais ou menos bem determinado e per­tencente a uma dada ciência, manifesta, por sua vez, uma índole lógica; seu estilo é o da clareza racional, ao qual ele não renuncia jamais. Ele analisa, reconduz aos fundamentos, descasca a substância, sem jamais perdê-la de vista. Talvez fosse o caso de acrescentar uma terceira catego­ria, a do ensaio polêmico, que não faz experiências com seu objeto para submetê-lo à iluminação crítica, mas para atacá-lo e destruí-lo. Nada se opõe a tal adição. Esse tipo de ensaio lança mão de todos os meios para levar o objeto a uma posição em que sua fragilidade, sua vulnerabili­dade, sua instabilidade aparecem sob uma luz suicida; para tanto, ele não desdenha nenhum dos recursos do gênero e maneja tanto a reflexão espiritual como a análise perspicaz. Lessing possuía esse dom no mais alto grau, e quase todos os grandes polemistas da literatura universal foram também grandes mestres da experimentação polêmica. 

Podemos agora dizer sem maior dificuldade o que caracteriza o ensaio de um ponto de vista literário e o que constitui sua substância. O ensaísta é um combinador que cria incansavelmente novas configu­rações ao redor de um objeto dado. Tudo o que se encontra nas proxi­midades do objeto pode ser incluído na combinação e, por essa via, criar uma configuração nova das coisas. Transformar a configuração em que o objeto se dá a nós, esse é o sentido do experimento ensaís­tico; e a razão de ser do ensaio consiste menos em encontrar uma definição reveladora do objeto e mais em adicionar con­textos e configurações em que ele possa se inserir. De resto, esse procedimento não é despido de valor científico, pois o contexto e a atmosfera em que uma dada coisa se produz também merecem ser conhecidos e têm algo a dizer sobre essa mesma coisa. A configuração é também uma categoria da teoria do conhecimento, uma categoria a que não se chega por via dedutiva e axiomática, mas tão somente por meio dessa combinatória literária que substitui o conhecimento puro pela imaginação. A imaginação não cria novos objetos, ela confere certas configurações aos objetos – configurações necessárias do ponto de vista da experimentação, não da dedução. Todos os grandes ensaístas associaram o gênio da combinação a uma extraordinária potência imaginativa. 

É bem verdade que não é fácil julgar se uma ideia e uma forma foram realmente trabalhadas de modo experimental; podemos sempre nos perguntar se estamos diante de um ensaio autêntico e até que ponto o escritor soube ir além do mero resumo. O ensaio é a forma literária mais difícil de se dominar e a mais árdua de se avaliar. Tomemos uma coisa qualquer, uma criatura como o pica-pau-verde. Uma descri­ção analítica não leva a mais que um trecho de Brehm,[1] mas basta, ao observarmos um pica-pau-verde, que pensemos na noção de ritmo e imaginemos que ele, no instante da Criação, encontrava-se no ponto de separação entre ritmo e melodia: o elemento experimental misturou-se ao mero resumo, ao trecho à maneira de Brehm. Passamos a expe­rimentar com a ideia, examinamos a atividade cadenciada do pássaro de vários ângulos e, de repente, no meio de uma frase, nos damos conta de que tais combinações podem vir a ser pequenos modelos de um outro modo de ver as coisas. Então nos dizemos que estamos diante de “um autêntico [Ernst] Jünger” e nos perdemos deliberadamente nos mais ínfimos detalhes, ao mesmo tempo que não perdemos de vista uma ideia perfeitamente recortada e um homem cheio de convicções – o autor que, em O coração aventureiro,[2] dedicou um ensaio ao “raciocínio combinatório” e mostrou ser ele mesmo um mestre desse procedimento. É graças a essa técnica que a subjetividade do escritor, do homem de letras (no melhor sentido do termo), introduz-se na arte combinatória, de tal modo que a convicção teórica se transforma, aberta ou secretamente, em existência. 

A convicção se faz ouvir às maravilhas no ensaio. Ter convicções significa também ser um sedutor, um ten­tador.[3] E com isso se fecha o círculo de nossa reflexão. O objeto é posto em evidência por via experimental, à luz de uma combinatória de conceitos e ideias, imagens e comparações; as convicções vão se desenhando na trama da escrita, antes de interpelar o leitor; assim nasce um autêntico escritor, o autêntico homem de letras no sentido de Lessing – um espírito e um coração que por­fiam para possuir uma dada coisa. O ensaio rompe sua forma literária para ganhar fôlego ético, existencial, ao mesmo tempo que a categoria ética do tentador, com sua imagem e seu método próprios, ganha forma literária. 

O intelectual que não visa à criação, mas à expressão de convicções, persegue um fim concreto, existencial. Como vimos, toda convicção tem viés existencial – e quer, portanto, agir sobre o existente. Sua ação é de ins­piração socrática, mas, ao contrário de Sócrates, que dizia o que queria dizer por meio de diálogos à beira do dramático, o intelectual de hoje prefere o ensaio, uma vez que o esforço de tornar visível um aspecto da exis­tência reveste-se de um caráter experimental. O ensaio substitui o diálogo dramático. Como gênero de monó­logo reflexivo, ele possui uma forma dramática em que o aspecto dialético se transfere para a dimensão expe­rimental. O conteúdo e a forma essenciais do ensaio consistem em fazer valer uma ideia segundo o modelo socrático ou em produzir um objeto por via experimen­tal. Não se enuncia diretamente o que se quer dizer, como fórmula pronta, como lei, mas progressivamente, à luz da inteligência do leitor, por meio de sucessivas variações sobre o ponto de partida. O processo é seme­lhante, de um lado, à demonstração experimental de uma lei física e, de outro, à construção de uma dada con­figuração por meio do caleidoscópio. 

Afirmei anteriormente que o ensaio, como indica seu nome, opera por via experimental, que ele não repre­senta outra coisa senão a realização de um experimento, e acrescentei que não se trata exclusivamente de expe­rimentos sobre ideias. Lichtenberg, que era mestre do gênero, afirmou certa vez que é preciso incluir a si mesmo no experimento. Ao fazê-lo, o ensaio autêntico vai além do ato estético ou ético; o procedi­mento intelectual desdobra-se no páthos existencial do autor. A teoria fica para trás, penetramos na esfera dos casos concretos, que se dão em carne e osso, num tempo e num espaço determinados, conforme exigia Kierkegaard, na contramão de Hegel. O que o ensaio faz? Ele busca uma realidade con­creta que se destaca da teoria, a ocorrência concreta de uma ideia, refletida no próprio ensaísta. 

Chegamos ao termo de nossa reflexão, cuja meta era assinalar a necessi­dade e a seriedade de um gênero literário desprezado por alguns. Essa forma não é fruto de uma época de fôlego curto e leviano, no geral destrutiva, ape­sar de digna de estima; é a situação crítica, a crise da vida e do pensamento, que faz do ensaio um gênero característico do nosso tempo. Ele serve à crise e à resolução da crise ao levar o espírito a experimentar, a rearranjar as coi­sas em novas configurações; ao fazê-lo, ele se torna mais do que simples expressão da crise. Reduzir o ensaio a uma arte da divulgação popular seria o mesmo que não compreender a que ele vem. Por sua essência crítica, o ensaio vai além da oposição entre o popular e o não popular. 

 

 

MAX BENSE (1910-1990) fez confluir física, matemática, semiologia e estética em sua obra. Foi um dos principais professores da Escola de Ulm, referência para os estudos do design, sobretudo entre as décadas de 1950 e 1960. Manteve intensas relações intelectuais com o Brasil, onde deu aulas em temporadas que inspiraram o ensaio Inteligência brasileira (Cosac Naify). É autor de Pequena estética (Perspectiva). Inédito em português, este ensaio foi publicado pela primeira vez em 1947 na revista Merkur, número 3, e, em versão modificada, integra a coletânea Plakatwelt. Vier Essays (Stuttgart: Deutsche Verlagsanstalt), de 1952. 

Tradução de SAMUEL TITAN JR. 

 



[1] Alfred Brehm, ornitólogo alemão do século 19, autor de Vida ilustrada dos animais, publicada a partir de 1864. [N. do T.]

[2] Das abenteuerliche Herz, publicado originalmente em 1929 e – numa versão profundamente alterada – em 1938.

[3] Em alemão, “sedutor” é Versucher, da mesma família que Versuch, “ensaio”, “tentativa”, “experimento”. [N. do T.]

4 respostas para O ensaio e sua prosa

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